Emergência dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada como resistência à ditadura militar sob a perspectiva da dialética de Hegel.

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico João Vitor Libório da Silva

A ditadura militar marcou um período de 21 anos (1964 a 1985) no qual os militares comandaram o país e os direitos políticos e civis dos cidadãos foram cerceados. Esse ínterim marcou a cisão entre uma sociedade pré-1964, democrata social burguesa, para uma sociedade marcada pela opressão e concentração do poder na junta militar. Em oposição à opressão, o período foi marcado pela emergência de movimentos sociais e da sociedade civil organizada que lutavam pelos direitos fundamentais até então suprimidos. O levante popular, à época designado “processo constituinte de 1987/1988”, foi marcado pela ampla participação popular nos processos de debate e redação da então nova carta magna. Nesse contexto, meu argumento nesse short paper será: “Análise da emergência dos movimentos sociais e do (re)ssurgimento da sociedade civil, como resposta ao regime ditatorial, sob a ótica do processo dialético de Hegel.”
Movimentos Sociais na luta pelos direitos
A dialética é destacada pela compreensão da realidade por meio de um processo marcado por três principais momentos colocados por Hegel – autor idealista, diferentemente do também autor dialético Marx, o qual é materialista. Como assinala Foulquié (1978) esses momentos são: a tese (afirmação), a antítese (negação) e a síntese (negação da negação). Nesta última, os dois principais momentos são
Quem quer algo de grande, deve saber limitar-se.
Quem, pelo contrário, tudo quer, nada, em verdade,
quer e nada consegue - Hegel.
conservados num processo de integração marcado pelo movimento dos argumentos/ideias. Dessa forma, não há verdade estanque, ou seja, aquela que não possa ser refutada ou agregada com novos elementos. Sendo assim, a realidade é representada pelo movimento de ideias, que em certa medida são contrapostas com antíteses, formando assim novas sínteses e ideias, que suscitam outras novas. Essa característica peculiar, o movimento das ideias que fazem as coisas mudarem, é crucial no argumento de Hegel.

O período militar, ao mesmo tempo que foi caracterizado pela forte opressão e ditadura, marcou também a emergência da rearticulação da sociedade civil no levantamento e acompanhamento de vários projetos sociais que lutavam pela retomada da democracia e dos direitos fundamentais. Dentro do contexto teórico abordado anteriormente, põe-se em discussão os movimentos sociais como antítese ao regime militar predominante até os anos de 1980. Isso se dá principalmente pelo fato dos movimentos oriundos de grupos sociais, à época, fazerem oposição ao regime militar, caracterizado como tese, por ser algo estabelecido, vigente e normatizado (por meio da opressão).

O processo de dialética é predominantemente marcado pela contradição, como assinala Foulquié (1978). Sendo a contradição o mais profundo e essencial elemento do processo, pois é por meio dele que haverá o movimento das ideias e a antítese se forma, através do choque entre tese e antítese. Em consonância a esse pensamento, Gurvitch (1987) assinala que nenhum elemento no processo da dialética é idêntico a si mesmo. Sendo assim, o levante popular da sociedade civil pela conquista de direitos democráticos demonstra uma contradição clara que, dentro de um cenário de luta, suscitou no acompanhamento e elaboração da Constituição Federal de 1988. Esta foi nomeada como Constituição Cidadã justamente por ter sido elaborada com ampla participação da sociedade civil. 

Nesse processo, a Carta Magna de 1988 pode ser vista como uma síntese ou resultado da interação entre elementos contrários – a ditadura militar e os grupos sociais. O movimento da dialética é justamente o que permite constatar que esse curso de formação da realidade por meio das ideias e pensamento não é um processo efêmero. Sendo assim, apesar da síntese expressar-se por meio da pronulgação da CF/88, esse processo pela busca de direitos é incessante, pois a todo momento terão novas teses e novas ideias para contrapor (antíteses).

                                              Participação popular na construção da Carta Magna

Referências
FOULQUIÉ, P. A dialética. Lisboa: Europa-América, 1978, p 42-66.
GURVITCH, G. Caracterização prévia da dialética. In: Dialética e sociologia. São Paulo: Vértice, 1987, p. 29-32.

A Fenomenologia e o choque cultural reverso

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Renato Pereira Lima de Carvalho

Ao falar, ouvir, ler ou simplesmente pensar na palavra experiência, me remeto automaticamente à experiência, que até o presente momento, mais mudou a minha visão de mundo e me tornou, de certa forma um estranho assim que voltei à minha terra de origem, o meu intercâmbio de ensino médio nos Estados Unidos. Ao voltar para o país de origem após um período de estudos no exterior, experienciando diversos fenômenos culturais, sociais e educacionais, viramos pessoas “chatas”
Figura 1 – Autor e host family no
 deserto da Califórnia em 2007
perante o olhar de amigos e familiares, pois carregamos aquela experiência conosco para sempre, em cada conversa com um grupo de amigos, em cada novo gesto ou nova reação para coisas que antes, passavam despercebidas ou eram consideradas normais. Ao falar em experiências, não basta falar em coisas que simplesmente existem e apenas precisam ser vistas, mas sim de vivência, que integra questões individuas como a percepção, a fantasia, as recordações e predicações (HUSSERL, 2008).

Neste contexto, considerando o grande impacto das experiências vividas em um período de estudos no exterior, gostaria de explorar, junto à fenomenologia, o processo de choque cultural reverso. Este processo é o reajuste, readaptação e assimilação cultural, social e educacional de uma pessoa tem ao voltar ao seu país e realidade de origem, após um período de estudos e vivência no exterior. Segundo Carlise-Frank (1992), este processo pode ser vivenciado e experimentado em intensidades diversas, alguns indivíduos podem sentir pouco o quase nenhum choque cultural reverso, alguns sentem por um curto prazo de tempo e outros demoram anos ou nunca se recuperam deste processo. Gaw (2000) identifica na literatura alguns sintomas ou problemas associados ao choque cultural reverso incluem problemas acadêmicos, conflito de identidade cultural, isolamento social, depressão, ansiedade e dificuldades em relações interpessoais, alienação, desorientação, estresse, raiva, hostilidade e descriminação.

Entre os inúmeros fenômenos que podem acontecer durante uma vivência no exterior, vale destacar que o choque cultural reverso é somente um deles, dentro de um universo infinito de prós e contras de uma experiência assim. Podemos considerar o processo do choque cultural reverso como um fenômeno social, como esclarece Schutz (1979), que explica que todo momento da vida de uma pessoa é uma experiência determinada em que esta está inserida, sendo o ambiente físico e sociocultural definido por esta pessoa, dentro do qual ela tem sua própria posição física, moral e ideológica. A experiência pode ser descrita como a relação entre a pessoa e seu mundo. A figura abaixo ilustra bem a entrada na fase de choque cultural reverso, que pode ser identificada no ítem 6, assim como as fases de recovery e adjustment, que são as fazer de readaptação à realidade local.
Figura 2 - Fases de ajuste durante e após vivência no exterior
Desta forma, podemos compreender que o choque cultural reverso é um fenômeno sociocultural passageiro, sendo que perante a experiência fenomenológica cada indivíduo terá sua forma individual e única de gozar desta experiência e encontrar formas de readaptação às suas respectivas culturas. Com o aumento da facilidade para se ter experiências de vivência no exterior, a “diminuição” das distâncias do mundo, este é um fenômeno cada vez mais comum e este aumento avoca uma demanda para sistemas de suporte a pessoas passando e procurando superar a ocorrência deste fenômeno com elas. Entre os principais artigos utilizados de apoio para este short-paper, foi possível encontrar pelo menos uma menção à palavra counseling – que em tradução literal significa aconselhamento, porém em inglês o conceito é um pouco diferente, sendo uma prestação de serviço psicológico para auxiliar uma pessoa a fazer escolhas acertadas no âmbito pessoal.

Dentro do âmbito acadêmico, podemos considerar o choque cultural reverso como mais um dos fenômenos que os estudantes devem enfrentar durante suas jornadas educacionais que podem durar por décadas e até por uma vida inteira, caso sigam a carreira acadêmica. Presbitero (2016), coloca a crítica de que as instituições de ensino deveriam ter programas mais adequados de aconselhamento para seus estudantes, pré e pós experiência internacional, mesmo que estes sistemas de suporte já existam, é colocado que o trabalho nesta área deve ser mais proativo, garantindo que estes serviços cheguem àqueles que precisam do mesmo. Assim, fica a reflexão à preocupação que não deve ser só de enviar estudantes para o exterior e receber estudantes de fora como números focados em rankings e classificações, mas também ter um sistema de suporte para as pessoas que passam por este tipo de experiência que retornem com a sua saúde mental em ordem, para que o conhecimento adquirido no exterior tenha validade.


Referências:
CARLISLE-FRANK, P. L. (1992). The relocation experience: Analysis of factors thought to influence adjustment to transition. Psychological Reports, 70.
CHRISTOFI, V.; THOMPSON, C. L. You Cannot Go Home Again: A Phenomenological Investigation of Returning to the Sojourn Country After Studying Abroad. Journal of Counseling & Development, v. 85, n. 1, p. 53–63, 2007. Disponível em: <http://0 search.ebscohost.com.umhblib.umhb.edu/login.aspx?direct=true&db=eue&AN=508024872&site=ehost-live>. Acesso em: 16/10/2018
GAW, K. F. Reverse culture shock in students returning from overseas. International Journal of Intercultural Relations, v. 24, p. 83–104, 2000.
HUSSERL, E, A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados.
PRESBITERO, A. Culture shock and reverse culture shock: The moderating role of cultural intelligence in international students’ adaptation. International Journal of Intercultural Relations, v. 53, p. 28–38, 2016. Elsevier Ltd. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1016/j.ijintrel.2016.05.004>. Acesso em: 16/10/2018.
SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
SCHUTZ, A. Don Quixote e o Problema da Realidade In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

O Utilitarismo e os Dilemas Morais

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Doutorado Barbara Lorenzoni Basso

Você é o maquinista de um trem desgovernado e sem freio. Você vê nos trilhos à sua frente 5 trabalhadores ferroviários e você sabe que não consegue deter o trem e que inevitavelmente irá atropelá-los. Segundos antes que isso aconteça, você percebe que há uma bifurcação nos trilhos e você pode optar por desviar o trem para essa bifurcação, onde há apenas 1 homem trabalhando. Assim, você atropela apenas 1 e não 5 trabalhadores. O que você faz? Esse dilema abre uma famosa aula de Michael Sandel em Harvard¹. A maioria dos alunos opta, evidentemente, por matar apenas 1 trabalhador ao invés de 5. 

                                                 Justiça com Michael Sandel em Harvard¹.

O dilema segue, e na segunda versão você não é mais o maquinista, você está em uma ponte que passa sobre os trilhos e está assistindo a cena. Dessa vez não há bifurcações, mas há um homem corpulento com você sobre a ponte. Nessa versão a sua opção é empurrar o homem que está com você na ponte, pois ele cairá em frente ao trem desgovernado e o fará parar, salvando os 5 trabalhadores – mas o homem morrerá. Nessa opção, as opiniões dos alunos passam a divergir sobre a melhor escolha. 


Os problemas propostos por Sandel ilustram muito bem o utilitarismo de Bentham (1979) e Mill (2007), bem como suas limitações e críticas. A justiça, na visão utilitária, visa a maximização da felicidade/prazer para o maior número de pessoas. Assim, os alunos, ao responder ao primeiro dilema, seguiram a lógica utilitária pura, de Bentham (1979): matando 1 pessoa para salvar 5, maximizariam a felicidade geral das pessoas, aumentando a utilidade. No segundo dilema, no entanto, alguns passam a achar que o utilitarismo não é a melhor resposta, ainda que a lógica permaneça a mesma: matar 1 para salvar 5.

O utilitarismo exerce uma grande influência na forma como organizamos nossa sociedade. Um claro exemplo é quando colocamos na balança custos e benefícios para tomar uma decisão. Somados todos os benefícios e subtraídos todos os custos, o melhor resultado traria a maior felicidade geral para a sociedade. Aplicamos esse pensamento em nosso dia-a-dia, na escolha do restaurante onde vamos almoçar, da roupa que vamos comprar, da escola onde nossos filhos irão estudar – qual o melhor custo-benefício? E a resposta a essa pergunta guia nossas escolhas.

Mas e quando o cálculo de custo-benefício pode ser “injusto” ou controverso? Sandel, na continuidade de sua aula, apresenta um exemplo emblemático: o governo da República Tcheca gostaria de aumentar os impostos sobre as empresas tabagistas. A Phillip Morris, em sua defesa, apresentou um cálculo de custo-benefício para o governo tcheco: se permanecer como está, as pessoas continuarão fumando e isso aumentará os gastos com a saúde pública a curto prazo (para tratar os casos de doenças respiratórias dos fumantes); se houver taxação, haverá maior arrecadação, com os novos impostos, mas também um maior gasto com saúde pública e previdência a longo prazo (já que, se parte da população deixar de fumar, viverão mais). Na conta apresentada pela empresa, o governo teria melhor custo-benefício se não aplicasse os impostos e a população continuasse fumando (e morrendo cedo). Como aplicar a lógica do custo-benefício nesse caso?

E como calcular custo-benefício quando o que está em questão não é “precificável”? Como colocar na conta utilitária, por exemplo, “vidas humanas”? Quanto vale uma vida? Como calcular o custo e o benefício das vidas?

Um outro dilema apresentado pelo professor Sandel mantém a lógica de salvar 5 sacrificando 1, mas dessa vez da seguinte forma: em um hospital há 5 pacientes precisando de transplantes de órgãos, um precisa de um rim, outro de um fígado, o terceiro precisa de um pâncreas, o quarto de um coração e o último de um pulmão. Todos eles morrerão caso o transplante não seja feito. Dessa vez você é o médico cirurgião que faz os transplantes e você não tem nenhum desses órgãos disponíveis. No entanto, no quarto ao lado, você tem um homem saudável que está sedado porque acabou de fazer um exame. Ele possui todos os órgãos que você necessita e você poderia, sem que ele acorde, retirar todos os órgãos que necessita, salvando seus 5 pacientes e matando apenas o homem que está sedado. Qual sua decisão dessa vez? Dificilmente a resposta a esse dilema se manteria puramente utilitária, salvando os 5 e matando o homem saudável.

A lógica utilitária, portanto, tem limitações, e isso pode ser visto nas reações que os dilemas causam: ao mesmo tempo que parece ser a opinião geral desviar o trem para matar 1 ao invés de 5, não parece
certo matar um homem que veio fazer um exame médico para salvar 5 que precisam de transplante de órgãos. Por que não parece certo? O utilitarismo de Bentham (1979) recebeu diversas críticas, que foram discutidas por Mill (2007). 

Uma das críticas trabalhadas por Mill foi a questão da “qualificação” dos prazeres: como dizer qual prazer traz mais ou menos felicidade? Ao que Mill responde que existem prazeres superiores e inferiores, sendo os superiores aqueles ligados ao intelecto. E Mill explica que a forma de definir qual seria o prazer preferível é através do voto universal das pessoas que já experimentaram ambos. Mas será que essa lógica se aplica sempre? Entre ir à praia e assistir a um concerto de música clássica, será que a escolha seria unânime pela segunda opção entre todas as pessoas que já experimentaram os dois prazeres? 

Mill também acrescenta a questão sobre respeitar os direitos individuais da outra pessoa. No caso do transplante de órgãos a decisão de salvar os 5 implicaria desrespeitar os direitos individuais daquele que foi apenas fazer um exame e por isso a escolha utilitária não necessariamente seria sacrificar o homem saudável, até porque sacrificá-lo poderia gerar infelicidade no longo prazo, já que as pessoas poderiam deixar de fazer exames de rotina e, no longo prazo, adoeceriam mais. Mas e se houverem casos onde o desrespeito a um direito individual puder de fato gerar maior felicidade geral a longo prazo - como na prisão de um terrorista – o que deveria ser feito? Quais seriam os direitos individuais que realmente merecem ser respeitados e quais são os que poderiam ser desrespeitados em prol da felicidade geral?

Podemos ver, portanto, que apesar de exercer grande influência na forma como lidamos com a moral e a justiça em nossa sociedade, nem tudo é passível de ser resolvido através de uma lógica utilitarista e outras teorias relacionadas à moral se fazem necessárias para resolver certos dilemas, entendendo que o indivíduo não se resume a uma questão utilitária. Outros filósofos desenvolveram suas teorias sobre justiça, como o libertarismo, ou a moral categórica de Kant. Não abordarei aqui tais teorias, mas entendo que elas apresentam outros pontos de vista sobre o que é justo e o que é moral e podem ser consideradas de forma complementar ao pensamento utilitário ao se definir a moral de uma sociedade.

Referências:
BENTHAM, J. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. In: Jeremy Bentham. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 3-18.
MILL, S. O que é o utilitarismo? In: MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.

Do Conhecimento a Moralidade.

Pequeno ensaio produzido pelo aluna de Mestrado Acadêmico Mariana Carneiro Fraga

A existência humana foi e continua sendo, ao logo da história, um dos maiores mistérios do universo. A partir deste anseio, surgem hipóteses concernentes à suas realidades temporais e espaciais que são construídas paralelamente à construção do conhecimento sobre o sujeito e sobre o objeto. Um dos fatores que tornam o assunto complexo é a ligação entre a origem e a causa da existência e a sua influência na construção dos valores e princípios adotados enquanto sujeitos, passíveis de consciência e de intuição. 
As discussões tomam caminhos distintos, e a partir da modernidade há uma modificação na forma de conceber o conhecimento até então antagônica marcada pelo empirismo oriundo de Bacon e o racionalismo de Descartes. 
Um dos maiores influenciadores desta mudança foi Immanuel Kant, fundador do Criticismo, e o responsável por reunir estas duas vertentes, predecessoras, em um fenomenismo absoluto. Kant questiona a natureza do conhecimento humano e a possibilidade da existência de uma razão pura, independente da experiência (KANT, 1781). O criticismo de Kant foi responsável por uma das mais importastes rupturas teóricas de todos os tempos: a revolução do pensar e a capacidade de interpretar o conhecimento. 

Kant vai à contramão tanto do racionalismo absoluto quanto do empirismo, construindo sua teoria crítica com base na afirmação de que o conhecimento não é inato, e que o conhecimento vem integralmente dos sentidos (PADOVANI & CASTAGNOLA, 1990). Ao mesmo tempo em que o autor contraria Descartes e seus sucessores, também o faz com o empirismo, afirmando que, apesar do conhecimento não ser inato, os sentidos nada são sem a interpretação dos dados, o que só é possível através da razão humana. 
A partir destas afirmações, é possível supor que para o autor, o sujeito e sua racionalidade tem um papel central na construção do conhecimento, a partir da interpretação dos objetos.Assim como Copérnico tira a terra do centro do universo, Kant tira o objetivo do cetro e coloca o sujeito. Se até então o sujeito se orientava pelo objeto, agora o objeto é que é determinado e orientado pelo sujeito.
As investigações de Kant vão caracterizá-lo, segundo Padovani e Castagnola (1990), um problematicista, o qual concebe a filosofia como uma investigação perpétua da ciência do mundo e do homem, a partir do imanentismo, naturalismo e humanismo, porém dentro dos limites da experiência.  
Em meio às críticas e inquietações características de seu percurso filosófico, Kant propõe boa parte de suas investigações a tentar entender a relação do conhecimento a partir da metafisica (KANT, 1781), e com isso acaba entrando no campo prático da moral. Para Kant, ideias universais embora não inatas passam pela cultura, ou seja, a realidade em determinado tempo e espaço.As necessidades práticas de viver em sociedade é que criam o senso de moralidade e determinam a ação, a priori, ou seja, antes da experiência.
Para Kant, a metafisica – a qual de certa forma introduz a teoria do conhecimento - só é possível ser explicada a partir de uma Critica da Razão Prática (1788).  A partir da analise sobre a metafísica, Kant concebe ao campo prático também os conceitos do valor e da moralidade, a qual é dada sinteticamente, a priori a partir de um imperativo categórico, isto é, incondicionado e absoluto. Diferentemente de outros imperativos práticos, que são condicionados a partir de uma relação de troca, o imperativo categórico tem por fim somente o seu valor moral e racional, onde o objetivo da ação é o próprio cumprimento do dever, levando em conta os pressupostos éticos individuais (PADOVANI & CASTAGNOLA, 1990).
Seguindo a linha de contraposição crítica do próprio Kant, que muitas vezes soa contraditória (FRANCA, 1955 apud PADOVANI & CASTAGNOLA, 1990), e propondo abarcar outro ponto de vista, Nietzsche, um filósofo que esmiúça o tema da moralidade, traz algumas contribuições – por vezes polêmicas - para o debate.  Guardadas as devidas realidades históricas, Nietzsche rompe com vários paradigmas com relação aos valores morais. Primeiramente o autor defini duas vertentes da moral, uma aristocráticas, onde a moral é definida enquanto seus desejos e a religiosa, onde a moral é suprimida e se fundamenta a partir da abnegação dos desejos. Para Nietzsche a moral está fortemente ligada ao anseio pelo poder, e se fundamenta a partir das definições dos certos e os errados.
Ao contrario de Kant, o qual parte da metafísica para entender a origem do conhecimento, Nietzsche (2015) trabalha a metafísica se negando a interpretá-la, e buscando o entendimento sobre a existência a partir da realidade, sem com isso buscar, necessariamente, o porquê da existência. Nietsche parte do pressuposto de que não existe nenhum motivo transcendente, nenhum Deus que veio revelar ao homem princípios de como agir. Sua critica se opõe tanto a ética cosmológica dos gregos quanto a ética teologia dos medievais e também a ética racionalista dos modernos.
Uma possível razão de seu ceticismo pode contextualizar-se pelo contexto histórico de sua época. O século XIX se caracterizou fortemente por uma ideia de “morte de Deus”, isto é, tudo que antes vigorava e sustentava a humanidade cai, deixando um vazio e uma crise a partir do esvaziamento de crenças e valores e uma suposta “desorientação” humana. 
A partir da compreensão deste esvaziamento que até então construía a moral dominante, emerge uma ruptura paradigmática, onde a liberdade torna-se o princípio base da existência(NIETZSCHE, 2015). Com isto, Nietzsche concebe a ideia de uma espécie de “super-homem”, um sujeito análogo, questionador da ausência e do vazio moral, que inicia um processo de transvaloração dos princípios morais, criando sua própria essência e buscando um sentido para sua própria existência. A partir desta afirmação, o autor cria a ideia de um suposto equilíbrio entre os desejos e os deveres, onde os desejos e os instintos não devem nem ser deixados de lado nem serem supervalorizados.
Neste sentido, o autor concebe uma dupla origem, para o nosso juízo de valor,distinta:1) o bom e o ruim; 2) o bom e o mau (NIETZSCHE, 2015). Discute a origem da moralidade a partir do antagonismo de duas classes diferentes: os aristocráticos e os religiosos. Se até então, Kant afirma que os imperativos da moralidade são incondicionados e sistematizados a priori, para Nietzsche os imperativos estão profundamente ligados aos conceitos de valor: fraco e forte; nobreza e pobreza. Sua conexão com a moralidade a partir destes valores tem um contexto histórico e de linguagem, muito profundo, atrelada também a um desejo de poder. 
O ponto de vista da moral religiosa, Nietzche (2015), afirma que apesar de ressentida, esconde um desejo de poder tão grande quanto a moral aristocrática. Ressentida, por que segundo o autor a moral religiosa parte do porto de que tudo que é divergente do seu Eu, é mau. E inclusive declara que existem duas maneiras do por que a moral ressentida prevalece sobre a moral aristocrática. Primeiro, pelo fato de constatar, através da história, que os pensamentos socráticos e plantonistas partem de uma negação dos sentidos, definindo-os como enganosos, a partir da exaltação do mundo das ideias e do ideal ao invés do real.Isto suscita um afastamento do mundano, do carnal e dos elementos do mundo terreno.  Sua segunda constatação histórica, admiti que a moral religiosa, também denominada como ressentida, nos tempos de Roma era muito potente e favorável às classes dominadas. Com a popularidade da moral ressentida instaura inclusive o cristianismo e com ele a perpetuação da moralidade com base de um divino legislador e culpabilizador. 


Para Kant (1788), a ética e a moral se alinham de forma que as convenções e os consensos sociais sejam praticados de forma individual, ou seja, agir de forma que qualquer um em seu lugar pudesse agir da mesma forma, e com isso não impactar negativamente ninguém. Parte do principio de que, se apenas a ética individual fosse levada em conta, o mundo poderia se transformar num caos, e por isso a importância de agir em beneficio do bem comum, independente do tempo e espaço. Apesar de pontos bastante divergentes, os autores concordavam em esvaziar suas teorias de um suposto legislador divino sobre a moral, concebendo a razão humana como autônoma, mesmo em sua universalidade e pureza, ou sua individualidade e linguagem histórica. O espírito humano não só legisla o mundo dos fenômenos mediante a sua sistematização das experiências como também legisla o mundo absoluto, criando seus supremos valores morais. 


Referencias
FIGUEIREDO, Vinicius de. Kant e a critica da razão pura. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
KANT, I.Crítica da Razão Pura. Ebook, Editora Acrópolis, 1871.
KANT, I. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Editora S.A., 1959.
PADOVANI, U; CASTAGNOLA, L. Historia da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990.
DECARTES, R. Discurso Sobre o Método. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia de Bolso, 2015

Correntes Filosóficas e os Super-Heróis

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Renato Pereira Lima de Carvalho

O utilitarismo foi um tema controverso na filosofia, como doutrina moral, como comportamento e modelo ético. O ato de realizar o cálculo utilitário antes de agir, seria o único pensamento moral que deveria preceder qualquer ação, pois segundo Bentham (1979) a qualidade humana mais rara é a coerência e a consistência no modo de agir e pensar. Ainda segundo o autor, o gênero humano é governado por dois senhores soberanos, a dor e o prazer, que governam tudo o que fazemos. Neste contexto, vivemos em tempos de grande popularidade dos filmes, livros e games de super-heróis, estes que em seus universos agem de acordo com o principio utilitarista de beneficiar o maior número de pessoas, contrariando os vilões que buscam o caos de forma violenta.

A vasta maioria dos super-heróis não tem vaidade, utilizam máscaras para disfarçar as suas identidades e buscam o bem maior, quando poderiam na verdade utilizar seus poderes apenas em benefício próprio. Como define Mills (2007), que o padrão do utilitarismo não é a maior felicidade do próprio agente, mas a quantidade maior de felicidade conjunta, não havendo dúvida de que ele faz as outras pessoas mais felizes, e que o mundo em geral ganha imensamente com ele. Em algumas histórias os heróis vão além da maior felicidade conjunta e tem como objetivo salvar todo o planeta terra. Este tipo de ação também remete à opinião utilitarista que tem como finalidade para a ação humana, a moralidade, que pode, portanto, definir as normas e preceitos das condutas cuja felicidade na maior escala possível, deve ser assegurada à toda a humanidade, e não apenas a ela, mas até onde a natureza das coisas admite, a toda criação sensitiva (MILLS, 2007).

Outra corrente filosófica que podemos fazer conexão com os super-heróis é o hedonismo Epicurista, este intimamente relacionado ao utilitarismo, trazendo a ideia do princípio da felicidade máxima (Bentham, 1979). Neste contexto, os heróis buscam a diminuição da dor e sofrimento das pessoas, buscando a paz, a tranquilidade, deixando de lado o prazer imediato e mais individualista e visando a 
paz e a luta contra o mal. Esta qualidade é tão forte nos heróis que eles arriscam suas próprias vidas e a vida de pessoas próximas, por um bem maior, sem esperar nenhuma compensação por seus atos de benfeitoria. Entrando mais especificamente na realidade de um dos mais populares super-heróis de
todos os tempos, o Homem-Aranha, figura presente na infância, adolescência e mais recentemente na vida adulta das pessoas, incluindo a minha, podemos identificar em suas histórias algumas correntes filosóficas também ligadas ao utilitarismo. Em uma de suas histórias, Peter Parker, identidade do super-herói, conversa com seu Tio Ben, que lhe dá um conselho que marca Peter e toda a audiência do filme: “Lembre-se, com grandes poderes, vem grandes responsabilidades”. Frase possui tanta fama, que já foi utilizada em decisão judicial na Suprema Corte americana, e uma decisão sobre pagamentos de royalties em brinquedos que soltavam espumas das mãos, em referência a um dos superpoderes do Homem-Aranha,a Juíza utilizou a frase para embasar a sua decisão (BBC, 2015).
Esta notável frase no mundo dos heróis pode ser atribuída ao pensador positivista Augusto Comte, que repetidamente traz a mesma em seus diversos volumes do Sistema de Política Positiva. Comte (1890), traz com a frase a ideia de que os poderosos, ou aqueles que tem poder de riqueza, devem beneficiar a sociedade e não usufruir egoisticamente de seus recursos.

Nesse sentido, podemos encontrar traços marcantes das correntes em quase todo o universo de super-heróis, as histórias dos personagens possuem grande embasamento nas correntes filosóficas, desde de os modos de agir dos heróis, até os conselhos de pessoas próximas. Talvez seja daí que venha toda a sua popularidade, pois lida com paradigmas humanos, decisões éticas e heroicas, além de muito padrão utilitário com pitadas de epicurismo.

Referências: 
BBC. Suprema Corte dos EUA cita Homem Aranha ao preferir decisão. 2015. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/06/150622_decisao_judicial_homem_aranha_rm>. Acesso em 30 Setembro 2018.
BENTHAM, J. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. In: Jeremy Bentham. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 3-18.
COMTE, A. Système de politique positive ou traité de SociologieinstituantlaReligion de l’Humanité. T.II :ContenantlaStatiqueSocialeou leTraitéabstrait de l’ordrehumain. 3ème ed.Paris : Larousse.1890.
COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. Porto Alegre: Editora Globo; São Paulo: Editora da USP, 1976. p.1-57. 
MILL, S. O que é o utilitarismo? In: MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.
RAIMI, Sam. Homem-Aranha (Spiderman). Direção: Sam Raimi. Columbia Picture, 2002. 1 DVD (121 min.), cor.
WESCHENFELDER, G. V. Os Super-Heróis e essa tal de filosofia. Instituto de Desenvolvimento Educacional do Alto Uruguai – IDEAU Vol . 7 – No 15 - Janeiro - Junho 2012

Separação das brincadeiras infantis por gênero analisada sob a perspectiva de “fato social” de Durkheim

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico João Vitor Libório da Silva

O desenvolvimento da subjetividade infantil marca um período peculiar da vida da criança, no qual a mesma tem contato com diversos fenômenos culturais que a cercam. Nesse processo, a criança molda sua identidade e interioriza certos comportamentos que contribuirão para a forma com a qual ela irá agir, comportar-se e encarar o mundo a sua volta. Sendo assim, a infância – e as brincadeiras inerentes a essa fase - apresentam-se enquanto um campo fértil para a inserção de culturas que servirão de base para a identidade do ser. Sob esta perspectiva, questiona-se acerca da existência de
Durkheim em "cores de meninos ou meninas"
estigmas sociais de determinação dos brinquedos/ brincadeiras “de menino” e “de menina” em nossa sociedade, e como esses estigmas impactam na formação subjetiva do indivíduo. Dessa forma, meu argumento nesse
short paper será: “A coerção cultural no uso de brinquedos/brincadeiras de criança analisada sob a ótica do ‘fato social’ de Durkheim.” 

A vida em sociedade é marcada por “regramentos” sociais, os quais muitas vezes não estão institucionalizados ou formalizados, mas que por meio de um processo de coerção (“violenta” ou não) são interiorizados de tal forma que moldam o comportamento geral em sociedade e impactam em muitas dimensões do ser. Nesse sentido, as brincadeiras infantis podem ser analisadas como formas lúdicas de expressão do mundo a volta da criança, isso é, por meio das brincadeiras o ser vai criando formas de representar o mundo, as pessoas, as relações, etc. Isso caracteriza um processo no qual a criança busca a realidade e, por conseguinte, a “ciência” se faz essencialmente presente. Desde criança é comum escutar dos mais velhos os dizeres do que é convencionado brinquedo/brincadeira “de menino” ou “de menina”. A partir disso, cria-se critérios de gênero que delimitam até aonde a criança pode chegar com as brincadeiras ou não; da mesma forma, delimita-se papéis típicos para as meninas e meninos. Ao analisar histórica e essencialmente a questão, remonta-se a lógicas machistas e sexistas que são passadas às crianças, reforçando, por conseguinte, um comportamento cultural com tais características; os estigmas socialmente imperativos são chamados por Durkheim (2007, p. 41) de “condições constantes”.  


Para que se analise o fato social como tal, segundo Durkheim (2007), é necessário que se parta do princípio de que o mesmo é uma coisa. Ao dizer isso, o que se busca assinalar é que o fato social é produto da atividade humana, ou seja, “materializa-se” por meio da relação entre os homens. Sendo assim, o estigma imposto sobre o uso de brinquedos para as crianças sob um viés de gênero, assim como outros institutos (família, Estado, justiça), seriam simplesmente o desenvolvimento das ideias que temos sobre esses mesmos institutos, num processo construído coletivamente (DURKHEIM, 2007). Esses constructos desenvolvidos historicamente já foram tão interiorizados socialmente que já se convencionou o que é “brinquedos de menina” e “brinquedo de menino” como um fato social. Algo que toma uma força externa de coerção tão grande ao ponto de muitos núcleos familiares criarem critérios “por gênero” ao apresentarem aos filhos os diversos tipos de brinquedos e brincadeiras existentes.  

Nesse contexto, Durkheim (2007) reconhece que no processo de coerção pode haver resistência de alguma forma, mas que para libertar-se das regras imperativas ao ser, este tem de lutar. Ainda assim, segundo o autor, esse processo de resistência é apenas mais uma prova do caráter imperativo do fato. Sendo assim, mesmo que alguns núcleos familiares primem, de alguma forma, por educar seus filhos de maneira a não considerar os critérios de gênero, esses mesmos pais encontrarão barreiras para tal. Isso porque a criança ao interagir com outras – na escola, por exemplo – terá contato com outras educações, que provavelmente já terão essa coação social cristalizada.  

Sob esta perspectiva, faz-se a discussão da dicotomia entre o subjetivo do ser e o aspecto objetivo. Por estar em um estágio peculiar de desenvolvimento da subjetividade, a criança ainda não possui suas faculdades de vida formadas; o fato é que esta faculdade (assim como a subjetividade) é limitada a uma objetividade ligada a um comportamento social normatizado que é passado a ela pela educação. Como assinala Durkheim (2007), o fato social tem uma propriedade de formar-se fora das consciências individuais – aqui caracterizado como subjetividade – a qual é “dominada” pela força exterior, entendida como a coerção objetiva passada pela educação. Ao possuir essa característica, o fenômeno deixa de ser orgânico e natural, já que passa a ser simples representações de condutas convencionadas na vida em sociedade. 

Fugindo de lógicas puramente deterministas, o debate suscita algumas questões pertinentes, como: “em que medida certas convenções culturais impactam nas faculdades e no comportamento do ser adulto?”; “quais escolhas futuras do ser podem estar condicionadas a limitadores impostos desde criança?”; “a relativização da liberdade do sujeito”. 


Referências 

DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 

Interdisciplinaridade como base da construção de um saber imparcial e relevante.

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Mestrado Elize Jacinto

A ciência e tudo o que ela envolve eventualmente será pauta de concordâncias e discordâncias, de certa forma, uma disputa para a prevalência de determinada vertente científica no campo do conhecimento, como que o importante sempre será o destaque e a credibilidade daquilo que se estuda e prega como ser a fonte de saber, e o restante por vezes, é dado como irrelevante.  

Boaventura de Sousa Santos (2004) aponta de maneira muito pertinente que o embate entre as ciências naturais e sociais não trouxeram alguma construtividade para o desenvolvimento da ciência, pelo contrário, a incapacidade de dialogar e a necessidade de sobreposição da primeira à segunda, resultaram em perdas de oportunidades relevantes para os campos do conhecimento, pois como comenta o autor, a “guerra das ciências” passaram de largo dos espaços e dinâmicas de um debate sadio e sobretudo de diálogos e colaborações mútuas, uma vez que os guerreiros da ciência, estariam em “trincheiras opostas”  

Boaventura (2004) reflete que o verdadeiro caráter motivador da “guerra das ciências”, apesar de ter sido travada por cientistas, eram mais sobre questões políticas e culturais, complementando que a “guerra” era em si mesma desnecessária, pois o diálogo crítico e a capacidade de alinhar as convergências e divergências, aprendendo de toda a forma seria muito mais eficaz, a entrar em um embate onde todos saem perdendo, principalmente a construção do saber.  

Em diversos momentos da leitura de Sousa Santos, é possível observar que ele se direciona a um saber inter e multidisciplinar, onde os campos do conhecimento são capazes de convergir não apenas para o aperfeiçoamento científico e do saber para os próprios cientistas, mas para toda a sociedade, visto que ela é parte fundamental do realizar do conhecimento. Mesmo que da perspectiva dos cientistas a sociedade seja um mero acessório, as pessoas e o meio ambiente são partes fundamentais para que a ciência exista e se concretize, uma vez que nosso sistema atual, muito mais complexo, não 
permite que o pesquisador se isole do mundo. Ele é parte do dele e isso precisa ser considerado.

Interdisciplinaridade
Jiapiassu (1976) comenta que a “interdisciplinaridade caracteriza-se pela intensidade das trocas entre especialistas e pelo grau de interação real das disciplinas no interior de um mesmo projeto de pesquisas”. Para Edgar Morin (2000) o parcelamento e compartilhamento dos saberes impedem a compreensão da complexidade da totalidade. E é bem perceptível notar que o desmembramento das áreas do saber estão intrincadas na realidade e são tratadas, por vezes, como algo positivo. Tais episódios estão presentes nas escolas e faculdades, e por fim, o ensino tem adotado esse modelo como verdade. Os cientistas também, e os resultados não mentem: é catastrófico e empobrecedor para a prosperidade do saber.  

Em relação ao ensino fragmentado e solitário repassado aos estudantes de diversas fases, dos mais variados cursos e instituições, Morin (2000) argumenta que as disciplinas, da forma em que estão estruturadas atualmente, apenas servirão para isolar os objetos de seu meio e isolar as partes do todo. Conclui que a educação deve romper com tais fragmentações a fim de mostrar as correlações entre saberes, a complexidade da vida e os problemas que hoje existem. Caso contrário, sempre será ineficaz e insuficiente para os cidadãos do futuro.  

Trilhando por esse caminho, Boaventura (2004) explora a necessidade de uma ciência que seja capaz de se tornar ferramenta que se coloca ao alcance de pessoas “comuns” para a solução de problemas em uma dimensão local da sociedade, de tal modo se concretizem as “iniciativas que procuram mobilizar recursos científicos cognitivos de origens diversas para responder a problemas de populações locais, de comunidades, de grupos de cidadãos, através de formas de participação de todos os interessados e de processos democráticos de decisão”.  

Para além das “guerras da ciência” Boaventura (2004) destaca frequentemente a necessidade de convergir os saberes, a importância da interdisciplinaridade, o que vejo ser também, como ponto fundamental do estudo do saber, para o desenvolvimento sólido da epistemologia, pois ela mesma tem como base, pilares que envolvem a busca por interpretações do significado do complexo, ainda mais com seus alicerces, que envolvem distintas terminologias tais como a transdisciplinaridade, interdisciplinaridade e multidisciplinaridade, que se encontram intrínsecas em nossa busca pelo conhecimento.  

Seguindo os passos de Morin (2003), tratando-se da importância e convergência dos múltiplos conhecimentos nos processos de aprendizado, concordo com o autor quando o mesmo afirma que para a educação do futuro, é preciso incentivar as consciências da necessidade de se reconectar os conhecimentos oriundos das ciências naturais, “a fim de situar a condição humana no mundo e dos conhecimentos derivados das ciências humanas para colocar em evidência a multidimensionalidade e a complexidade humanas”. 

Infelizmente fomos condicionados a pensar que a fragmentação do saber é a melhor alternativa para aprender e produzir aprendizado, contudo, mais do que antes, temos a necessidade de pessoas capazes para compreender a complexidade da realidade em que estamos inseridos, tornando-nos aptos a assumir uma postura crítica - e de certa forma, desenvolver um olhar parentético ante à nossa existência no mundo.  

Como futuros educadores, é nossa responsabilidade o ato de procurar religar os conhecimentos, tanto mitológicos, quanto científicos, artísticos, religiosos, éticos e estéticos, para que futuramente, possamos formar profissionais que não sejam cegos politicamente, e que se habilitem a assumir a conduta necessária como bons cidadãos.  

“É longo ainda, sem dúvida, o caminho que poderá conduzir a uma valorização simétrica e não desqualificante das várias formas de conhecimento”(SOUSA SANTOS; 2004), contudo é preciso que o reconhecimento da necessidade de uma transformação seja compreendido para que, de fato, o despertar torne-se palpável e quase tangível para nós. Estamos no caminho. 


Referências

JAPIASSÚ, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 

SOUSA SANTOS, B. Introdução In: SOUSA SANTOS. B. Conhecimento Prudente para uma Vida Decente. São Paulo: Cortez, 2004, p. 17-27. 

MORIN, E. A religação dos saberes. O desafio do século XXI, SP. Bertrand Brasil, 2000. 

MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, repensar o pensamento. 6ª Ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil Ltda., 2003 a. 

NUNES, J.A. Um discurso sobre as ciências 16 anos depois. In: SOUSA SANTOS. B. Conhecimento Prudente para uma Vida Decente. São Paulo: Cortez, 2004, p. 59-62. 

A política educacional no Brasil: um diálogo entre Guerreiro Ramos, Bacon e Descartes.

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Mestrado Elize Jacinto

“Mas, ao contrário, os doutos, homens indolentes e crédulos, acolheram para estabelecer ou confirmar a sua filosofia sobre certos rumores, quase mesmo sussurros ou brisas de experiência, e que, apesar de tudo, atribuíram valor de legítimo ao testemunho” (BACON, 1979).  Nesse momento minha mente refletiu de certa maneira angustiada, sobre a situação que me encontro como humano, em minha relação com a política e como tal influencia não só a minha vida, mas a de todos que me rodeiam, e também aqueles que não consigo enxergar. 

Inevitavelmente, o despertar se deu ao imergir nos conceitos de redução sociológica e homem parentético de Guerreiro Ramos, que de certa forma, em muito se aproximam das passagens escritas por Bacon em Novo Organum e Descartes em Discurso do Método. Sob uma primeira impressão, tais conteúdos parecem conter um imenso abismo entre si, pois entre séculos de distância, como podem conversar Guerreiro Ramos e estes dois autores? Mais uma vez, é preciso permitir-se imaginar e refletir, que por cima da superfície, existe uma ponderação muito válida a respeito da realidade e da beleza que encontra-se em se superar o tempo para construir nosso próprio aprendizado histórico a
respeito daquilo que nos foi deixado. 

Em princípio, é importante compreender a redução sociológica, o termo “redução” como destaca Ramos (1996). Em seu aspecto mais genérico, redução baseia-se na eliminação de “de tudo aquilo que, pelo seu caráter acessório e secundário, perturba o esforço de compreensão e a obtenção do
Guerreiro Ramos foi sociólogo, político e jornalista
essencial de um dado”
. A redução sociológica não é ditada apenas pela aspiração de conhecer, mas, contudo, pela necessidade social de uma comunidade que na consumação dos objetivos de sua existência, tem de certa forma, a necessidade de servir-se da experiência de outras comunidades (RAMOS, 1996). Guerreiro fez fortes censuras quanto à assimilação crítica da produção estrangeira, onde importa-se determinado costume externo à realidade presente - no caso o Brasil - e toma-
o por verdade, desconsiderando peculiaridades fundamentais concernentes àquele povo, história, contexto social, econômico, enfim. 

Ramos sugere a reflexão sobre uma determinada teoria - ou política - e dela extrair pressupostos a adotados pelo autor em questão, compreender o contexto histórico e geográfico em que estava firmado, críticas à teoria dele, lacunas, debilidades e limitações. Se ainda assim, fizer sentido o pressuposto estudado, faz necessário aplicá-lo àquela outra realidade. A importação acrítica de determinadas políticas no cenário brasileiro, acaba por tornar incapaz a compreensão da sociedade e governantes de perceber fenômenos da realidade, estagnando conhecimentos e competência para compreender fatos que se apresentam diante de seus olhos. 

Sob essa perspectiva, Bacon (1979) enfaticamente, coloca em xeque toda e qualquer capacidade humana de transcender a realidade ao uso exímio de seu intelecto. O estudioso afirma ser a razão humana constituída de “uma farragem e massa de coisas”, onde algumas delas advém de muita credulidade, outras do acaso e também de noções fúteis, inocentes e banais. Bacon deixa transparecer uma certa angústia quando a fragilidade do estudo da ciência à partir da natureza de sua época, propondo, ele mesmo, uma nova maneira de se estudar a ciência, procurando transcender os limites do conhecimentos impostos em sua época. Para ele, é de extrema importância o conhecimento a respeito de seu objeto de estudo e procurar por si próprio descobrir as inferências, variáveis, métodos, o nele saber incutido a fim de desenvolver a metodologia, sem se entregar imprudentemente a interpretações que se pretendem melhores, porém, melhores para qual contexto e situação? 

Descartes (1979) no excerto Método do Discurso, também aponta, de maneira metafórica, que “não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que só um trabalhou” e prossegue concluindo que os edifícios empreendidos e finalizados por um só arquiteto, tendem a ser mais admiráveis e “melhor ordenados” ante aqueles que “muitos procuraram reformular”. Descartes afirma que o acumular de diversas opiniões, não são sinônimo concreto de verdade. E também ele mesmo, desenvolve seu próprio método relativo ao estudo da ciência. 

Á partir desses pressupostos, torna-se compreensível a fraca formulação de políticas públicas brasileiras. Quais são as referências que os formuladores buscam para desenvolvê-las? Consideram de fato a multiplicidade do território brasileiro? Reconhecem as distintas necessidades entre nosso povo? Conhecem, os nossos governantes a nós? Lamentavelmente, ano após ano, o Estado tem se distanciado cada vez mais de seu povo, adotando medidas pertinentes a ele, não à sociedade. 
Reforma da Educação
Em exemplo do despreparo e até certo ponto, descaso, está na Reforma de Educação realizada no Brasil, de acordo com dados do jornal online Estadão (2017), que revela que o ensino médio brasileiro “deve ficar mais parecido com modelos adotados na Europa e América do Norte” no que diz respeito ao formato do currículo, oferecendo ao aluno a especialização em áreas do conhecimento por ele escolhidas, contudo, apesar de parecer excelente, nossa realidade é dura. De acordo com dados do IBGE, o Brasil tem 11,8 milhões de analfabetos, onde 7,2% dessa população possui 15 anos ou mais. Na região Nordeste, a taxa de analfabetismo chega a 14,8%, o dobro da média nacional. Outro dado importante aponta que o número de jovens que não estudam nem trabalham ou se qualificam, cresceu em um percentual de 5,9% no ano de 2017 comparado ao ano de 2016. 

Com os recursos limitados à nossa educação, saúde, segurança, moradia, entre outros, essa política de reforma no sistema educacional brasileiro vinda de um contexto completamente díspar da realidade presente, aponta o caos da formulação de nossas políticas, que devem considerar nossos contextos, e não tomar por verdade o que não cabe em nossa existência prática. 

Devemos ser críticos e reflexivos como é o homem parentético de Guerreiro Ramos, que é capaz de examinar a vida social como um espectador, procurando abster-se dos juízos, descolando-se das circunstâncias internas e externas para poder ampliar sua compreensão dos mais diversos aspectos de sua vida. O homem parentético é capaz de transcender o mundo em que vive, refletindo, observando, possuindo senso crítico, auto-conhecimento
e interesses éticos.

Assim como Descartes e Bacon evidenciam a necessidade de se criar um método próprio e promover o senso crítico à respeito daquilo que nos envolve, Guerreiro Ramos aponta a também necessária mudança de atitude da dinâmica que temos adotado em nossa realidade. É preciso que se desenvolva métodos próprios na formulação de políticas públicas brasileiras, que sejam sensíveis à nossa realidade, que conheçam de fato que somos nós e o que precisamos. Contudo, como humanos e sociedade, é nosso dever fomentar a capacidade de refletir, analisar e estudar a realidade que nos cerca. É nosso dever enxergar o que existe por trás das motivações, e acima de tudo, não tomar por
verdade algo que nós mesmos podemos construir e estudar, desde que aí, haja o bom senso e humildade para compreender que estaremos sempre aprendendo, sendo transformados e também transformando.


Referências
BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. 
DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 
ESTADÃO. Reforma Aproxima Ensino Médio Brasileiro do Exterior, Dizem Especialistas. Disponível em: <https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,reforma-aproxima-ensino-medio-brasileiro-do-exterior-dizem-especialistas,70001866283>. Acesso em: 13 de Agosto de 2018.
GUERREIRO RAMOS, Alberto. A redução sociológica. 3ª.ed., Rio de Janeiro,Editora da UFRJ, 1996.
IBGE. PNAD Contínua 2017: Número de Jovens que não Estudam nem Trabalham ou se Qualificam Cresce 5,9% em um Ano. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2013-agencia-de-noticias/releases/21253-pnad-continua-2017-numero-de-jovens-que-nao-estudam-nem-trabalham-ou-se-qualificam-cresce-5-9-em-um-ano.html>. Acesso em 13 de Agosto de
2018.

A tradição da superficialidade das eleições brasileiras

Pequeno ensaio produzido pela aluno de Mestrado Acadêmico Jean Robert Soares

O objetivo deste paper é fazer um breve diagnóstico do comportamento da sociedade brasileira , sob a ótica dos argumentos de Comte e Durkheim, neste momento oportuno que antecede as eleições depois do primeiro impeachment de presidente da república ter se concretizado. Não se trata de uma análise política ou partidária de candidatos ou da intenção de votos dos brasileiros indicada nas pesquisas, mas sim uma análise do cenário, diante dos representantes da sociologia positivista citados.

Augusto Comte (1798-1857) foi fundador do positivismo, fortemente influenciado pelo empirismo e seus métodos de observação e metodologias de classificação, e criador da chamada física social que depois se tornaria a sociologia, na qual buscava compreender a realidade social. A Lei dos Três Estados, de Comte, diz respeito ao modo como o espírito humano compreende o que observa no universo, sendo eles: teológico, metafísico e positivo. Sobre estado teológico, diz “todas as nossas especulações manifestam de modo espontâneo uma predileção característica pelas mais insolúveis questões, pelos assuntos mais radicalmente inacessíveis a qualquer investigação decisiva” (1976, p.5-6). O teológico é o mais primitivo e nele os fatos são explicados por algo não presente na natureza,
sobrenatural ou divino, como deuses ou espíritos. Já o metafísico, mais evoluído que o primeiro, serviria como elo entre o estado teológico e o positivo, no qual nem a imaginação nem a observação seriam predominantes. Nesse caso, o raciocínio é mais amplo, porém impreciso e os fenômenos seriam explicados por forças ocultas ou abstratas, porém personificadas, o que diferenciava do estado teológico. Por fim, o estado positivo, último nível de desenvolvimento, foge das “explicações vagas e arbitrárias” dos dois estados predecessores para embasar-se na “apreciação sistemática dos fatos existentes” (1976, p.16-17). Ou seja, sai do campo ideológico e parte para a análise da realidade. 

Por questões históricas, culturais e de negligência do próprio Estado com relação ao ofertamento de educação e conhecimento científico de qualidade, o Brasil e seus cidadãos ainda se encontram presos às correntes das morais religiosas, de tradições e costumes que comumente abdicam da razão, até por conveniência, para justificarem suas ações e a existência desta realidade desigual para as classes menos afortunadas. Sob esta perspectiva, ao considerar o Brasil como um todo, é possível sugerir que o estado predominante seria teológico, o primeiro deles e com a menor capacidade de utilização do que Comte chama de “virilidade mental”. Segundo Cruz Costa “ o que caracteriza a virilidade da nossa inteligência é a substituição da inacessível indagação das causas pela simples pesquisa e determinação das leis. É este o traço fundamental da filosofia positiva.”(1950, p.364)

Aproveitando-se disto, os candidatos usam deste comportamento pouco questionador de grande parte dos eleitores para basearem suas propostas em jargões que são supérfluos, superficiais e desprovidos de embasamento científico, como os defensores da “tradicional família brasileira” e do “cidadão de bem”. Usadas desta maneira simples, estas palavras buscam chamar a atenção dos eleitores que pouco entendem do processo político, mas são obrigados a escolher candidatos que nunca sequer tiveram algum tipo de contato ou entendimento menos leviano.

Émile Durkheim (1858-1917) conceitua fato social – e suas três características principais coercitividade, generalidade e exterioridade -  como “toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independente de suas manifestações individuais. (2007, p.13).  No Brasil, apesar de grande miscigenação étnica de sua sociedade, as tradições religiosas e nosso sistema educacional precário, como fatos sociais, trazem à tona a falha de nosso sistema de representação democrática. Muitos candidatos, apesar de eleitos defendendo determinadas “bandeiras” de atuação, como por exemplo o meio ambiente ou até mesmo os liberais econômicos, se veem isolados e sem força para atuarem diante do sistema político que prioriza a atuação das bancadas lideradas por partidos com mais influência. De um jeito ou de outro, as propensões dos cidadãos acabam sempre em segundo plano.


Quando obrigados a votar em quem dificilmente os representará de verdade, os cidadãos buscam escolher o “menos pior” entre as opções possíveis. O próprio sistema eleitoral afasta os bem-intencionados, que de fato representariam e defenderiam os interesses da população em geral, quando impõe a necessidade de alianças e coligações para que os projetos e atos sejam aprovados. Disso resulta que é muito mais fácil dividir os candidatos na ultrapassada dicotomia esquerda-direita, ou liberal-socialista, do que eleger aqueles que são realistas, mostram a complexidade das situações e cobram a coparticipação da própria sociedade na resolução dos problemas públicos. Com relação a isso, Durkheim diz “em vez de uma ciência de realidades, não fazemos mais do que uma análise ideológica.” (2007, p.16).

É notório que inclusive os candidatos à presidência da república tenham dificuldade em apresentar propostas e posicionamentos sobre questões recorrentes de maneira simples sem apelarem para a demagogia. Muitas destas questões, inclusive, poderiam ser facilmente pautadas com um olhar científico, com estudos aprofundados feitos por especialistas na área, para resultar num debate muito mais produtivo e fundamentado no campo da realidade e não no campo ideológico. Entretanto, quando se fala de Brasil parece que a política corrupta e imoral é fato social e faz de tudo para se proteger de qualquer ameaça que retire os privilégios tanto disputados dos cargos eletivos.

Segundo Jiddu Krishnamurti (1895-1986), citado por Vonnegut (1975, p.208), “não é demonstração de saúde ser bem ajustado a uma sociedade profundamente doente” .Talvez a sociedade brasileira não seja doente, ela apenas esteja doente por muito tempo. Dessa doença resulta que o comportamento da sociedade ainda é pautado em temas e argumentos preconceituosos, atrasados, discriminatórios e baseados nas “tradições e bons costumes”. Enquanto isto se mantiver, os candidatos aos cargos eletivos, que nada mais são do que reflexo desta mesma sociedade, ainda usarão da tradição da superficialidade para conquistar votos a cada quatro anos. Depois disto, sem instrumentos de controle efetivo, seguirão fingindo representar os interesses de alguém além deles mesmos, enquanto os cidadãos seguirão fingindo que têm seus interesses representados.


Referências
COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. Porto Alegre: Editora Globo; São Paulo: Editora da USP, 1976. p.1-57. 
DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
J. CRUZ COSTA. Augusto Comte e as origens do Positivismo. Revista de História. v.1. n. 3. Universidade de São Paulo. 1950.
PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. O criticismo Kantiano e O positivismo In: PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990 (trechos escolhidos).
VONNEGUT, Mark. The Eden Express. New York: Praeger Publishers. 1975.

Tragédia ou drama?

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Doutorado Patrícia Beckhäuser Sánchez

A eleição presidencial de 2018 terá o maior número de candidatos desde a disputa de 1989, a primeira desde a redemocratização do Brasil. Há 12 candidatos ao todo. No pleito de 89, foram 22.
Além das pendências na Justiça, os candidatos enfrentam escassez de recursos de campanha, de tempo de propaganda no rádio e na televisão. Os candidatos precisam lidar também com a falta de popularidade ou alta rejeição (ODILLA, 2018). Prova disto, foi o ocorrido no dia 6 de setembro de 2018 em que um servente de pedreiro Adelio Bispo de Oliveira, 40 anos, alcançou o deputado Jair Messias Bolsonaro, candidato à Presidente pelo PSL– Partido Social Liberal, deferiu-lhe uma facada na altura do abdômen durante ato público em Juiz de Fora, Minas Gerais, assumiu a autoria e disse que agiu “em nome de Deus” (GONÇALVES E GHIROTTO, 2018).E como alguém pode praticar o mal em nome de Deus se Deus criou o homem a sua imagem e semelhança? Kant disse que não se pode afirmar a existência de Deus.

Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo da era modernaque que criticou o empirismo, defendido por Bacon e mais tarde por Locke e Hume, que negava a importância da metafísica e a existência de ideias inatas no ser humano. Para Kant, não somos uma “tábula rasa” como afirmava Locke e a totalidade do mundo não se dá numa experiência. A experiência sem teoria é cega. Koyré (2011, p. 80) parece tentar dialogar com Kant quando destaca “o empirismo puro - e mesmo a ‘filosofia experimental’ - não conduz a parte alguma”. Kant criticou o racionalismo defendido por Descartes, Leibniz e Wolff que dava importância à metafísica e à existência de ideias inatas no homem. Kant propôs uma síntese do empirismo e do racionalismo,tomando o nome de criticismo, como se ambos estivessem certos e errados ao mesmo tempo. As ideias inatas existem sim e é o que Kant chama de conhecimento a priori, mas que precisa da experiência para se confirmar.

Kant chamou o resultado dessa junção do empirismo e racionalismo de transcendental, algo que está no objeto, mas que pertence ao sujeito. A ideia defendida por Kant foi chamada de a Segunda Revolução de Copérnico uma vez que não é mais o sujeito “sol” que gira ao redor do objeto “terra”, mas o sujeito observador é trazido para o centro. Nesse contexto, a mente humana tem uma maior importância. Se não há alguém que os reconheça, os objetos inexistem.

Kant questionou como a razão vinha sendo considerada por meio de três perguntas: que posso saber? que devo saber? que posso esperar? Toda preocupação que Kant demonstrava quanto às provas da existência de Deus têm relação com sua teoria do conhecimento e sua divisão entre o mundo noumênico (nada se pode conhecer sobre ele) e fenomênico (podemos conhecer sobre ele) em que o noumenon é representado pelo mundo das coisas em si, incognoscíveis e o fenômenico pela representação. Sendo assim, a metafísica (Deus, da alma, do universo, da vida futura) não consegue ser uma referência objetiva com objetos dados ou construídos na sensibilidade e a razão não deve tentar ultrapassar o mundo da experiência, que é o mundo do fenômeno. A razão não pode ter acesso ao noumenon e Deus e todos os temas metafísicos nada tem que ver com o entendimento. Embora Kant tenha sido um homem reto e profundamente religioso declarava“...não se pode dizer que tenha realmente existido, com vistas a seu fim essencial, em nenhuma das versões até hoje expostas, o seu pífio progresso até aqui leva qualquer um a duvidar com razão de sua possibilidade” (KANT, 2015, p. 57).

Neste sentido, o argumento neste paper será: “Se não se pode demonstrar a existência de um Ser
Immanuel Kant
supremo (Deus) então não há o porquê agir em nome dele”
. Segundo Kant (2015, p. 37) “a metafísica sempre houve no mundo, e continuará a haver, mas com ela haverá também uma dialética da razão pura, posto lhe ser natural” e acrescenta “Deus, liberdade e imortalidade constituem essas inevitáveis tarefas da própria razão pura” (2015, p. 49). Embora Kant revele que não se possa demonstrar a existência de Deus, Dostoiévski realça “Se Deus não existe, tudo é permitido”, mas “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém” (Coríntios 6:12). 
Para Kant é absolutamente necessário persuadir-se da existência de Deus, mas não é necessário demonstrar que Deus existe, uma vez que Deus não pode ser percebido através da razão pura, sua compreensão se dá no campo da razão prática, ou seja, Deus existe devido o fato que o universo dos seres humanos se move por leis morais. Kant combateu o relativismo moral e introduziu o imperativo categórico ao destacar que o certo não depende da situação ou do contexto. O certo é o certo sempre.
O cuidado que há de se ter, segundo Hobbes, é que a lei é que vai regrar os hábitos e costumes, quando o que é moral vai se perdendo, o que resulta na falta de ser, falta do que devia existir, ou falta de ordem (Santo Agostinho, 354-430 d.C.).

E como se já não bastasse a guerra das ciências, desvelada por Boaventura Sousa Santos e Latour, vivemos uma guerra das ideologias políticas, onde há vários polos-esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita - com ideologias políticas diferentes e disputas partidárias internas, como também acontecia na guerra das ciências. Seria o Adélio um híbrido?

“Que país é esse?”música composta por Renato Russo há 40 anos nunca esteve tão atual.O que parece é que em pleno século XXI o homem volta ao estágio Homo erectus, que surgiu na terra há 1,5 milhão de anos, quem criou o primeiro objeto cortante, feito de pedra, para caça e defesa. E Adélio o usou como se estivesse diante de um predador. Mas de que adianta atentar a qualquer um deles se já estiverem mortos no coração, na cabeça e na alma do eleitorado (Kramer, 2018).

Esse teatro real lembra mais um drama do que uma tragédia, uma vez que tragédia é quando nós humanos não temos o que fazer. Não é o caso. Que seja hasteada a Bandeira do Brasil porque o que precisamos é de “ordem e progresso”. A cor branca da faixa, onde está escrito o lema nacional, significa “o desejo pela paz”, em harmonia com Kant “Que seja possível ou não na realidade, não importa; é preciso pensar na paz como um evento possível”. “A paz deve se tornar uma ideia reguladora, guiar a conduta dos homens políticos” (NICOLA, 2005, p. 337).

Quem sabe seria preferível pensar como Voltaire (1694-1778) “Eu acredito no Deus que criou os homens, e não no Deus que os homens criaram”. Que assim seja!

Referências

GONÇALVES, E., GHIROTTO, E. A facada da intolerância. Revista Veja. São Paulo, edição 2599, ano 51, n. 37, p. 36-39, set. 2018. 
KANT, I. Crítica da razão pura. 4.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. p.17-68.
KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de janeiro. Forense Universitária, 2011.
KRAMER, D. Na mesma moeda. Revista Veja. São Paulo, edição 2598, ano 51, n. 36, p. 51, set. 2018. 
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.                                        NICOLA, U. Antologia ilustrada de filosofia: das origens à idade moderna. São Paulo: Globo, 2005.
ODILLA. F. Eleições 2018: Os candidatos à Presidência e quais dificuldades têm de superar durante a campanha. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42313908>. Acesso em: 11 de set. de 2018.                                                                                                                                          PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. O criticismo Kantiano e O positivismo In: PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990.                               
SOUSA SANTOS, B. Um Discurso sobre as Ciências. Coimbra: Edições Afrontamento, 1988.

As contribuições do Empirismo e do Racionalismo numa reflexão sobre a infância e Aprendizagem

Pequeno ensaio produzido pelo aluna de Mestrado Acadêmico Mariana Carneiro Fraga

Outro dia estava a observar o movimento de uma criança que, ao contrapor sua mãe, insistia em fazer movimentos aleatórios com um brinquedo em sua mão. Hora batia na mesa, hora jogava no chão, até mesmo levando-o boca, completamente envolvida na sua experiência. Pude constatar, claramente, que ela observava de forma atenta todos os movimentos: barulhos, sensação, gosto, reações tanto do próprio objeto, como das pessoas que ali estavam. Durante algum tempo fiquei refletindo sobre o significado por trás daqueles gestos, que mesmo em lembranças, se apagaram completamente da recordação de minha infância.
O mundo na perspectiva de uma criança me parece de uma simplicidade extremamente complexa. Simples, enquanto terreno fértil de experimentações, despretensão de conceitos preestabelecidos, e ao mesmo tempo complexos, à medida que o processo de desenvolvimento racional está a todo vapor. Embora deslumbre essa potencialidade natural, me pergunto de que forma estamos participando – e contribuindo de fato – para que estas potencialidades venham à tona, a partir do acolhimento e ampliação destas experimentações.

Não é novidade que nossa educação se renova a passos lentos, e que sua metodologia obsoleta pouco contribui para o desenvolvimento comportamental proativo e mentalmente criativo.Ainda me parece distante pensar a aprendizagem de modo mais livre, experimentado, através dos sentidos e emoções infantis, e não de forma tão regrada pelos adultos. Neste sentido, a reflexão empirista de Bacon (1979), afirma que a natureza é um processo de experimentação constante, eque ela não é algo a ser conhecimento e sim experimentado, sendo a vivência nada mais do que as descobertas anteriores. Apesar disto, nossas salas de aula ainda estão mais preocupadas em impor regras e depositar conteúdo, do que facilitar um processo de experimentação. Isto ocorre,sobre tudo, a partir do Ensino Fundamental, onde a mecanização do sistema educacional vai se enrijecendo.


Estas práticas ocorrem desde muito cedo, inclusive antes mesmo da escola, na relação com familiares onde muitas vezes, há uma constante reprodução automaticamente autoritária e unilateral, impresso de forma visível em nossa cultura. Tal conduta contrapõe a própria via ao autor, já citado anteriormente, que reconhece a importância da metodologia como um processo natural, mais ao encontro dos sentidos, do que do labor da mente (BACON,1979). 
Paralelo a isto, do ponto de vista da racionalidade, Descartes (1979) declara ser quase impossível que nosso pensar seja tão puro e sólido, visto a influência – muitas vezes contraditória - do nosso meio sobre nossos pensamentos. Acrescenta ainda que esse acúmulo de conhecimento passivo, de certa forma, atrapalha o nosso mais puro senso racional, que poderíamos ter desenvolvido se fossemos guiados somente por ele. 
O processo de aprendizagem não é sustentado apenas pela experimentação, sem que haja, simultaneamente, um processo de reflexão e desenvolvimento racional. Koyré (1973), em seus estudos sobre a história do pensamento científico, sustenta através das reflexões de Grosseteste que: “’Há dois caminhos que nos levam ao conhecimento já existente ao (novo) conhecimento, a saber, do mais simples ao mais complexo, e inversamente’, isto é, dos princípios aos efeitos e dos efeitos aos princípios” (GROSSOTESTE apud KOYRÉ, 1973 p. 61). Para Koyré (1979), tão importante quanto experimentar,é mensurar a experiência a partir de um processo racional e reflexivo para o desenvolvimento fundamental da consciência. 
Historicamente, a educação e a escolarização da infância, vêm sendo pautadas por um modelo de perspectiva racional sobre o significado do corpo e seu movimentar, como condição para a evolução da razão intelectual. Esse pensamento racional (do ponto de vista da racionalidade), evidente no discurso pedagógico a partir do século XVIII, constituiu-se, nestes últimos séculos, a matriz teórica da educação escolar infantil (Garanhani e Moro, 2000).
Descartes inventou seu próprio método para analisar e experienciar os fundamentos, antes de rejeitar qualquer opinião, a fim de torna-los parte da razão. Meu método, o qual ficou conhecimento posteriormente como Método Cartesiano consiste em: 1) verificar as evidências reais acerca do fenômeno estudado, 2) dividir as dificuldades o tanto quanto necessário no intuito de simplificar a análise, 3) conduzir ordenadamente a resolução a partir do mais simples, 4) enumerar suas conclusões a fim de manter a ordem dos pensamentos. Este método se mostra contrário ao processo de aprendizagem ao qual somos na maior parte das vezes submetidos, onde o certo e o errado, o bom e o ruim e às demais verdade absolutista são ensinadas, muitas vezes sem espaço para o questionamento e verificações. 
Ora se somos sujeitos pensantes, e por isto nos definimos enquanto seres humanos, por que parte de nossa racionalidade nos é negada já no alvorecer das ideias?
A partir desta pergunta, trago novamente Descartes, no intuito de expor a sua teoria de que é possível, em um exercício da razão, desmantelar todas nossas crenças sobre o mundo que nos rodeia se nos guiarmos por uma dúvida reflexiva e persistente. Assim, o autor nos leva a uma única certeza: o ato de pensar. Afirmando que isso provaria a nossa existência.
Com todas essas considerações, quero apontar mais para os questionamentos, do que propriamente
para as soluções, visto que até mesmo elas serão relativas de acordo com o espaço-tempo no qual nos propomos a debater. Reconhecer o acumulo histórico é fundamental para a construção comprometida do conhecimento (Bacon,1979), assim como faz-se necessária a contraposição e a reflexão crítica (Descartes,1979), no intuito de caminharmos no sentido da expansão do desenvolvimento humano integral e consoante com a natureza, valorizando o coletivo, mas também as experiências e subjetividades individuais.
A "infância" não é algo que pertença a uma natureza humana dada de uma vez por todas. Na realidade estamos diante do paradoxo dialético natureza-cultura, onde nem só a experiência empírica e nem a dedução racional comtemplaria a aprendizagem. O conhecimento é o caminho de concepção da realidade que se complementa através dos aspectos teóricos, tanto quando dos aspectos experimentais (Koyré, 1973).


Referências

GARANHANI, G.M.; MORO, V.L.A escolarização do corpo infantil: uma compreensão do discurso pedagógico a partir do século XVIII. Educar, n. 16, p. 109-119. 2000. Editora da UFPR
CALVILA, W. Sobre um momento da constituição da ideia de infância: ponto de vista de um historiador.Estilos clin. vol.4 no.6, p.1-8. 1999. São Paulo
BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. (trechos escolhidos) 
DESCARTES, R. Discurso do Método. In: René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (trechos escolhidos) 
KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de janeiro. Forense Universitária, 2011.