A Importância da Crítica da Razão Pura de Kant para a Epistemologia

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Nicolas Rufino dos Santos.

Considerada obra necessária e com impacto fortíssimo no campo da filosofia, Immanuel Kant (2015) aborda uma problemática central no campo científico: a epistemologia e a natureza do conhecimento. Apesar de esses temas já ter sido observados por outros intelectuais, como Bacon e Descartes, que analisavam questões como relações entre sujeito e objeto, por exemplo, ao estudar sobre a natureza, regras e limites de uso do conhecimento e distinções entre o puro e empírico, Kant (2015) inaugura uma nova forma de pensar na filosofia e, consequentemente, na epistemologia.

Fonte: https://www.recursosdeautoayuda.com/en/Kant-phrases/

Oportuno contextualizar brevemente duas correntes predominantes até então: o empirismo e o racionalismo. Protagonizado por autores como Bacon, o empirismo sustenta que, além de haver a separação entre sujeito e objeto, o conhecimento é determinado por experiências puras vivenciadas pelos seres humanos que são materializadas pelo estímulo dos sentidos. Bacon, na verdade, foi o principal responsável pela mudança da antiga ciência, marcada por superstições, para uma fixada na natureza. De certa forma, Japiassu (1991) interpreta o fenômeno nessa perspectiva. Consoante o autor, antes de existir o saber, há um conjunto de pré-noções originárias de opiniões muitas vezes errôneas e que esquematizam a realidade prática, ou seja, a experiência pura. Por outro lado, há uma corrente racionalista, constituída por autores como Descartes, que defendiam que o conhecimento não se originava por intermédio da experiência pura, mas por meio da capacidade de raciocínio do ser humano.

Através de sua crítica da razão pura, Kant (2015) concebe um novo paradigma no campo da filosofia ao inaugurar uma nova forma de pensamento intermediária entre a combinação de racionalismo e o empirismo. Sua problemática central envolve a natureza do conhecimento e não consiste no dever-ser, na trajetória do ser humano em busca de compreender o mundo externo, mas em de que modo este mundo é percebido e compreendido pelo ser humano. Significa dizer que só temos acesso a esse mundo como ele nos é mostrado, ou seja, a partir de um recorte da realidade, um fenômeno. O sujeito determina o objeto, logo, não é determinado por ele.

A figura 1 ilustra essa inauguração filosófica concebida por Kant (2015) a partir da junção entre as correntes empirista e racionalista também observada por Latour (1994).

Figura 1: elaborada pelo autor (2023)

O equilíbrio sintético entre a dicotomia das correntes empírica e racionalista abriu para a epistemologia uma série de novas possibilidades de sistemas de conceitos, o que contribuiu diretamente não só para o campo científico da Administração, mas para todas as ciências modernas. A síntese transcendente de Kant (2015) é, portanto, resultado do equilíbrio entre o empirismo e o racionalismo, uma vez que, além de reconhecer verdades de ambas as correntes, propõe que o entendimento e a sensibilidade são as fontes do conhecimento. Esse novo paradigma inaugurado por Kant (2015) foi considerado uma Revolução Copernicana, uma vez que proporcionou uma nova forma de compreender novas relações entre sujeito e objeto a partir da instituição de um novo conjunto de regras não concebidas anteriormente.

Uma outra grande contribuição dos trabalhos de Kant (2015) para a filosofia foi o desdobramento dos conhecimentos a priori e a posteriori. O primeiro consiste em um conhecimento livre dos sentidos, ou seja, que antecede o conhecimento empírico, portanto, que independem da experiência pura, como equações matemáticas e fórmulas químicas. Por sua vez, a posteriori se trata de um conhecimento dependente de experiências práticas e que possuem natureza comparativa, tais como leis físicas que, para serem institucionalizadas, necessitavam serem testados para serem constatados. Importante destacar que outros autores, como Popper e Lorenz também conceberam seus conceitos acerca de conhecimentos a priori, mas que possuem características distintas da proposta por Kant (2015).

Portanto, as contribuições de Immanuel Kant são enormes e abrangem tanto a história da filosofia quanto a história da própria ciência. Ao abrir um novo leque de possibilidades, desafios e reflexões para o campo epistemológico através de seus pensamentos quanto à natureza do conhecimento, à separação de sujeito e objeto e os movimentos aproximatórios e intersubjetivos, por exemplo, suas contribuições para a Administração, uma ciência social aplicada, são importantíssimos. Talvez uma contribuição essencial de Kant (2015) para o campo da epistemologia foi abrir os olhos para que o fascínio da ciência se encontra em sua natureza plural de ideias materializada pelo debate, pela discussão e crítica, o que promovem o desenvolvimento do conhecimento (ZAGO, 2021). 

Referências:

KANT, I. Crítica da razão pura. 4.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. p.17-68. Revista Mente, Cérebro e Filosofia Kant- Hegel v. 3, jan 2005, p. 1-17.

JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. O que é a epistemologia? In: Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 15-39.

LATOUR, B. Jamais formos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

Revista Mente, Cérebro e Filosofia Kant- Hegel v. 3, jan 2005, p. 1-17.

ZAGO, José Antônio. DE FORMIGAS, ARANHAS E ABELHAS: DO A PRIORI DE KANT ÀS INCERTEZAS DA CIÊNCIA. Revista Filosófica São Boa Ventura, v. 15, n. 1, p. 11-30, 2021. 


A influência do marketing e da tecnologia mediada por algoritmos: uma perspectiva após a reflexão da obra de Latour

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Hany Ellen Guedes.


A influência do marketing e da tecnologia mediada nos “bastidores” através dos algoritmos nas redes socias ou em pesquisas na internet na vida dos consumidores é incontestável. Essa influência não passa despercebida e levanta questionamentos importantes acerca de como a transparência das estratégias de marketing utilizadas e a ética envolvida nas interações comerciais feitas na internet. Os países ao redor do mundo estão buscando regulamentar os algoritmos por meio de legislações e aprimorarem a maneira com que ocorrem os compartilhamentos de dados coletados dos consumidores. No Brasil as questões legais relacionadas a esse assunto, têm sido amparadas pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) que foi aprovada pela Senado em julho de 2018.

É pertinente observarmos que esses algoritmos, encontram-se sob controle das grandes corporações de tecnologia como Google, Meta, TikTok, Twitter, entre outros. Contudo, a transparência acerca do funcionamento desses sistemas de algoritmos se limita a explicações superficiais por parte dessas empresas. Segundo um artigo da CNN Brasil há pouco mais do que uma explicação básica de empresas de tecnologia sobre como seus sistemas algorítmicos funcionam e para que são usados. Além disso, especialistas em tecnologia e legislação tecnológica disseram ao CNN Business que mesmo aqueles que criam esses sistemas nem sempre sabem por que chegam às suas conclusões – o que é o motivo pelo qual são frequentemente chamados de “caixas pretas”.

Fonte: https://agencialcp.com.br/o-impacto-da-lgpd-nos-negocios/


Sob a perspectiva da abordagem simétrica descrita por Latour em sua obra “Jamais Fomos Modernos”, somos instigados a analisar no cenário complexo que envolve as estratégias do marketing digital e, ao mesmo tempo, a questionar as verdades arraigadas nos paradigmas convencionais. Indagando premente: como podemos reavaliar as “verdades” tradicionais à medida que somos confrontados e imersos nas mudanças sociais fomentadas pelo entrelaçamento do marketing e dos algoritmos engendrados pelas gigantes corporações de tecnologia? Segundo Latour, parece cada vez mais difícil subjugar as culturas coletivas, as crenças particulares, cada vez mais difícil abordar apenas os aspectos superficiais da realidade, as qualidades segundas.

O pensamento de Latour, ao desafiar conceitos sedimentados e ao nos encorajar a questionar pressupostos, nos convoca a aprofundar a análise das implicações decorrentes dessas interações complexas. Por meio de uma exploração que busca entrelaçar campos de conhecimento diversos, como a ciência, a tecnologia e a sociedade, somos impelidos a investigar as conexões profundas entre essas esferas. A abordagem simétrica, que permeia suas obras, nos incita a lançar um olhar crítico sobre as bases do conhecimento que aceitamos como inabaláveis, revelando que as verdades estabelecidas podem ser permeadas por dinâmicas multifacetadas e interdependentes. Pensando nisso, é possível vislumbrar um alinhamento entre o cerne das reflexões de Latour e o desafio contemporâneo que se coloca diante de nós.

O questionamento dos fundamentos que norteiam nossa compreensão á medida que a dinâmica da sociedade digital continua a evoluir, torna-se imperativo, não apenas às estratégias de marketing e a tecnologia subjacente, mas também os pressupostos arraigados que sustentam nossas concepções tradicionais. Sobre estas tecnologias e pressupostos:

Estes não-humanos, privados de alma, mas aos quais é atribuído um sentido, chegam a ser mais confiáveis que o comum dos mortais, aos quais é atribuída uma vontade, mas que não possuem a capacidade de indicar, de forma confiável, os fenômenos. De acordo com a Constituição, em caso de dúvida, mais vale apelar aos não-humanos para refutar os humanos (LATOUR, 1994, p. 29). 

A perspectiva simétrica de Latour nos propõe nos servir como metodologia de análise crítica das transformações socio-tecnológicas que estamos vivenciando. À medida que exploramos as relações complexas entre marketing, tecnologia e sociedade, somos desafiados a transcender as fronteiras disciplinares e a questionar as bases sobre as quais edificamos nosso entendimento. Ao trazer à luz os vínculos intrincados entre esses domínios e desafiar a norma estabelecida, podemos moldar conscientemente a evolução da sociedade digital, alinhando-nos à essência das obras de Latour e abraçando a oportunidade de abordar as complexidades do presente e do futuro com uma visão mais ampla e informada.

Quer sejamos antimodernos, modernos ou pós-modernos, somos todos mais uma vez questionados pela dupla falência do miraculoso ano de 1989. Mas iremos retomar nossa linha de pensamento se considerarmos este ano justamente como dupla falência, como duas lições cuja admirável simetria nos permite compreender de outra forma todo nosso passado. E se jamais tivermos sido modernos? A antropologia comparada se tornaria então possível. As redes encontrariam um lar (LATOUR, 1994, p.15).

A busca por um equilíbrio entre o lucro das empresas e a proteção dos direitos e privacidade dos consumidores é um desafio contemporâneo. Ao considerarmos as implicações de algoritmos que direcionam o conteúdo para os consumidores, assim como as estratégias de persuasão presentes no marketing digital, nos deparamos com dilemas éticos e questões de confiança semelhantes aos enfrentados no cenário das ciências. Uma vez que, nos lembram da importância de considerar a multiplicidade de perspectivas em qualquer cenário complexo.

“Em rede”, o mundo moderno, assim como as revoluções, permite apenas prolongamentos de práticas, acelerações na circulação dos conhecimentos, uma extensão das sociedades, um crescimento do número de actantes, numerosos arranjos de antigas crenças. Quando olhamos para elas, as inovações dos ocidentais permanecem reconhecíveis e importantes, mas não há o bastante para se construir toda uma história, uma história de ruptura radical, de destino fatal, de tristezas ou felicidades irreversíveis. 

Assim como Latour nos instiga a questionar as verdades estabelecidas no âmbito científico, também nos permite a adotar uma abordagem crítica quando analisamos as dinâmicas do marketing e da tecnologia.

Referências:

LATOUR, B. Jamais formos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

LATOUR, B. A guerra das ciências. Folha de São Paulo, 15/11/1998, c. MAIS. 

Lei Geral de Proteção de Dados entra em vigor. Disponível em: .https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/09/18/lei-geral-de-protecao-de-dados-entra-em-vigor.

METZ, R. Algoritmos estão por toda parte. Saiba por que você deve se preocupar. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/algoritmos-estao-por-toda-parte-saiba-por-que-voce-deve-se-preocupar/