Felicidade, empatia e egoísmo social: reflexões sobre a conduta moral do utilitarismo.

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Mestrado Elize Jacinto


No pensamento utilitário, a definição de moralidade derivará necessariamente da articulação entre sensibilidade e racionalidade. A agregação mais imediata é com o modelo hobbesiano, onde dor e prazer são características determinantes da cognição. A concepção de Bentham estabelece que a natureza colocou a humanidade sob dominio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a estes cabe indicar o que devemos fazer, e igualmente determinar o que de fato faremos (BENTHAM, 1979).

Seguindo esse viés, Mill acrescenta que o fundamento moral da Utilidade - também descrito como grande princípio da Felicidade - sustenta que as ações estão corretas na proporção em que tendem a promover a felicidade, e da mesma forma, erradas à partir do momento em que tendem a produzir o oposto da felicidade, pois “através da felicidade pretende-se o prazer e a ausência de dor; por infelicidade, dor e privação do prazer” (MILL, 2007). Mill acrescenta, portanto, que para se ter noção do padrão moral estabelecido pela teoria, é preciso se aprofundar nas concepções de dor e prazer, e até onde estas são “questões abertas”.

Mill enfatiza que os prazeres de um animal não satisfazem as concepções de felicidade de um ser humano. Uma vez que os humanos possuem faculdades mais elevadas do que o apetite dos animais, ressaltando ainda a existência da superioridade dos prazeres mentais sobre os prazeres físicos, uma vez que os primeiros tem maior permanência, segurança e menor custo (MILL, 2007). É admissível afirmar que no utilitarismo existem diferentes tipos de prazeres que sejam mais valiosos e desejáveis que os outros: “de dois prazeres, se houver um que todos experimentaram de ambos e dão uma preferência clara, independentemente de qualquer sentimento de obrigação moral para preferi-lo, este será o prazer mais desejável” (MILL,2007).


Mill continua porém, numa dimensão mais profunda do senso de felicidade e busca pelo prazer quando assente que um ser de faculdades superiores requer mais para ser feliz, sendo esse mesmo capaz do mais intenso sofrimento, recusando-se a afundar naquilo que acredita ser um nível inferior de sua existência. Nesse momento, acredito que Mill esteja se referindo à uma felicidade como fim, não embasada na busca superficial e momentânea de uma felicidade que se resume no puro prazer. Esse ser de faculdades superiores é capaz de suportar uma dor - mesmo que pareça contraditório - para alcançar um fim maior que permite uma felicidade perene, o alcance da plenitude pessoal. A designação mais apropriada desse ser é o senso de dignidade.

Homens com fraqueza de caráter, diz Mill, geralmente escolhem o bem mais próximo, mesmo sabendo que este é menos valioso. Acrescenta o autor que: 

“a capacidade para sentimentos mais nobre, é na maioria das naturezas, uma planta muito frágil que facilmente morre não apenas pelas influências hostis, mas definha pela mera falta de alimento; e na maioria dos jovens ela rapidamente definha se as ocupações a que suas posições na vida devotaram e a sociedade na qual ela os lançou não forem favoráveis para manter em exercício essa capacidade superior. 

O propósito da teoria utilitarista não é o fim da felicidade do próprio agente mas a quantidade maior da felicidade conjunta, porém, o indivíduo de caráter nobre, é capaz de abdicar de sua felicidade própria em virtude da felicidade conjunta, onde ele é capaz de fazer outras pessoas felizes. “O mundo em geral ganha imensamente com ele” (MILL, 2007). O filósofo então acresce que o egoísmo é a principal causa que torna a vida insatisfatória, seguido da falta de desenvolvimento intelectual. O autor ataca o  egoísmo e atribui a ele pessoas que estão preocupadas apenas com sua “individualidade
miserável”. 

O autor reflete escrevendo que:

“em um mundo onde há tanto pelo que se interessar, tanto para apreciar, e tanto também para corrigir e melhorar, todos que tem esta quantidade moderada de requisitos morais e intelectuais serão capazes, por assim dizer, de ter uma vida invejável; e, a menos que a tal pessoa, através de más leis ou sujeição à vontade de outros, seja negada a liberdade de usar as fontes de felicidade ao seu alcance, ela não fracassará em encontrar essa existência invejável se sobreviver aos males inegáveis da vida, as grandes fontes de sofrimento físico e mental” (MILL, 2007).

Mais adiante Mill afirma ser a virtude melhor que a felicidade, assertando que existe honra naquele que renuncia ao próprio prazer em razão de aumentar a quantidade da felicidade no mundo. “A moralidade utilitarista reconhece nos seres humanos o poder de sacrificar seu bem maior pelo bem de outros”.

Nesse momento da leitura, foi necessário uma pausa para uma ponderação que à muito vem me inquietando. Chamo essa atitude citada no parágrafo acima de altruísmo, indo mais além, de empatia. Altruísmo porque somente o ser humano que se preocupa com o outro e apresenta um amor desinteressando é capaz de sacrificar-se em virtude do outro. Empatia porque esta é a arte de se colocar no lugar do outro por meio da imaginação, compreendendo seus sentimentos e perspectivas e usando essa compreensão para guiar as próprias ações. A empatia pode ser brevemente resumida como “faça para os outros o que gostaria que fizessem para você”. Isso supõe que seus próprios interesses coincidem com os interesses do outro (KRNARIC, 2015).

Considero empatia uma característica extremamente necessária nos dias de hoje, onde o individualismo e egoísmo são tidos quase que como necessários, eu prefiro analisar as situações de uma outra perspectiva: me colocando no lugar das pessoas que por elas são envolvidas . Esse exercício diário faz com que minha inquietação ante os problemas que me cercam quase me sufoquem, porém, me fazem mais humana de forma que - mesmo que dolorosamente - me coloque no lugar no outro à fim entendê-lo e indo mais além, objetivando ações que ocasionem a mudança positiva.

Infelizmente, a taxa de suicídio entre jovens no Brasil aumentou 10% desde o ano de 2002 na faixa etária dos 15 aos 29 anos (BBC NEWS, 2017) . Não existe uma única razão para isso, contudo o aumento da depressão entre os mais jovens, o transtorno de ansiedade - onde, de acordo com o a Organização Mundial de Saúde, o Brasil lidera o ranking mundial - são apenas alguns sintomas que refletem uma sociedade doente.

Segundo o Ministério da Saúde (2018), no mundo, mais de 800 mil pessoas tiram a própria vida por ano. No Brasil, 11 mil delas cometem suicídio, sendo a terceira maior causa de morte entre homens de 15 a 29 anos de idade, a quarta maior causa de morte entre os 15 e 29 anos e oitava maior causa de morte entre mulheres dos 15 aos 29 anos (SISTEMA DE INFORMAÇÕES SOBRE MORTALIDADE, 2017). É difícil ainda compreender o que leva jovens e até mesmo crianças a tentar cometer suicídio; o que existe são hipóteses: sentimento de abandono, experiência de abusos físicos ou sexuais, a desorganização familiar, desajustamento na escola ou em casa e a desesperança em relação ao futuro. O bullying também aparece como um motivador e incorre o risco de tirar a própria vida (ZERO HORA, 2016). 


Tais dados poderiam ser ainda mais profundamente analisados, mas esse é apenas um sinal da fragilidade social que estamos vivenciando. Temos pessoas cada vez mais fragilizadas, temos uma sociedade individualista, concentrada em suprimir suas próprias expectativas. Temos pessoas sofrendo, e em consequência da derivação do egoísmo social, temos pessoas focadas na própria felicidade, incapazes de pensar que também é feliz quem pensa no outro, e sobretudo se coloca no lugar dele.

O utilitarismo talvez seja viável para a formulação de políticas públicas; como conduta moral para a nossa sociedade, fragilizada pelo individualismo, é necessário primeiro pensar em valores e virtudes num nível pessoal, pois somente quando cada indivíduo for capaz de amar o outro como a si mesmo é que o utilitarismo moral começará a ser útil a fim de alinhar interesses e perspectivas tão diversas, que hoje, infelizmente, não tem encontrado um ponto em comum.

Referências
BBC NEWS. Crescimento Constante: taxa de suicídio entre jovens sobe 10% desde 2002. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-39672513>. Acesso 01/10/2018
BENTHAM, J. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. In: Jeremy Bentham. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979.
MILL, S. O que é o utilitarismo? In: MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Setembro Amarelo: Ministério da Saúde lança agenda estratégica de prevenção do suicídio. Disponível em:<http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/setembro/21/Coletiva-suicidio-21-
09.pdf>. Acesso 01/10/2018.
KRZNARIC, R. O poder da empatia: a arte de se colocar no lugar do outro para transformar o mundo/Roman Krznaric; tradução Maria Luiza X. de A. Borges. – 1.ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
ZERO HORA. Suicídio na Infância e na Adolescência: é preciso romper o silêncio. Disponível em: <https://zerohora.atavist.com/suicidioemtenraidade>. Acesso em 01/10/2018.