Conhecimento por quem e para quê? Dos caminhos do conhecimento aos problemas que eles representam

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico de mestrado Vinicius Yasuto Ikeda

O conhecimento se manifesta e é percebido de formas distintas em diferentes espaços sociais no mundo atual. A forma na qual ele é enxergado e empregado cria desafios para a as relações entre ciência, administração pública e sociedade. A partir desses desafios, este paper tem como objetivo ilustrar algumas formas de interpretação de conhecimento e de como sua legitimidade ou reconhecimento afeta a sociedade que vivemos.

Há abordagens teóricas que hierarquizam o conhecimento: ele pode ser dado, informação, conhecimento e virtude/sabedoria (ACKOFF, 1989). A constituição desse nivelamento é justificada pela sua contextualização e pela forma e exercício do conjunto de construções de concepções acerca do objeto ou evento a ser reconhecido. Um dado, nesta vertente, é considerado um número ou palavra fora de contexto, isolado; informações seriam, dessa forma, um conjunto agregado de números e palavras que tenham sentido; já o conhecimento é concebido como uma estrutura lógica, consolidada, testada e validada de informações e a virtude/sabedoria como a forma “correta” de aplicação e práticas desses conhecimentos obtidos. 

Entretanto, dados, informações e conhecimentos podem adquirir interpretações diversas a depender do ator que se depara com eles. Informações e conhecimentos para quem? No contexto da administração, um relatório contábil pode adquirir um significado diferente se o ator for um contador, um jurista ou um engenheiro civil. Dessa forma, a história de vida de cada ator é determinante para a construção do conhecimento. Dados, informações e conhecimentos não existem no vácuo, isolados. Latour (1994a) argumenta que durante o desenvolvimento da ciência a forma de produção do conhecimento foi feita de modo purificado, isto é, recortado, dividido, separado e decomposto através de análises para o isolamento dos dados-informações-conhecimentos. Contudo, o autor argumenta que esta purificação oculta o trabalho e as relações entre o conhecimento obtido e o objeto físico por trás deste conhecimento. Neste sentido, da mesma forma que o relatório contábil foi interpretado, ele foi elaborado por alguém bem como representa algo físico que foi transformado em número. Latour (1994b, 2000) também compara esta forma de compreensão da realidade a uma caixa-preta: apesar do reconhecimento de que o relatório contábil é um relatório contábil, o ator que interpreta pode não conhecer a trajetória que o relatório teve até chegar ao seu campo de visualização. Quais seriam os interesses e influências para que o relatório chegasse até ali? Quais as relações entre os objetos físicos e seu respectivo relatório?   


Fonte: Milosavljevic, 2021. 

Para compreender a dinâmica de certos objetos e eventos, isto é, para compreender a forma na qual lidamos com variados tipos de conhecimento, é preciso enxergá-los de forma histórica e relacional. Tsoukas (2005) argumenta que o conhecimento de eventos únicos pode ter explicações múltiplas, sendo necessário observá-los de forma narrativa conectando ator, objeto, discurso e indivíduo. 

É possível perceber então a diferença entre o conhecimento dado como caixa-preta e do conhecimento ligado ao objeto em profundidade, com a sua narrativa de formação, construção e composição. Entretanto, o trajeto dessa narrativa pode sofrer desvios, deturpações e confusões que podem distanciar e romper a conexão do significado do discurso com a forma e natureza do objeto original (LATOUR, 1994b). Dessa forma, a consolidação e a distribuição coletiva do conhecimento requerem múltiplas perspectivas num processo de legitimação que se institucionalizou na ciência através das revistas científicas. A discussão levantada por Sousa Santos (2004) sugere que a legitimação científica possui limitações atreladas às percepções dos grupos de cientistas e suas visões de mundo, o que interfere no efeito e nos interesses na utilização destes conhecimentos. Demo (2012), por sua vez, argumenta que a postura do pesquisador de forma autocrítica, aprofundando e buscando diferentes perspectivas em atores no campo para lidar com conhecimento é indispensável para que a ciência produza conhecimentos prudentes que tenham proximidade com a realidade. Esta percepção realista e honesta de conhecimento é fundamental, principalmente em um contexto em que se vendem neutralidades acerca do conhecimento científico construído. Esta visão neutra de conhecimento converge com a visão purificada que Latour (1994a) critica, a qual foi abordada anteriormente. Neste sentido, Putnam (2004) argumenta que não há divisão entre fato e valor, sendo todos os argumentos e conhecimentos científicos imbuídos de valor e de política em vistas à algum interesse. Quando um pesquisador reflete e coloca sua história de vida, trajetória até chegar ao problema de pesquisa, bem como suas motivações e interesses para empreender em um trabalho científico, ele está dessa forma desvelando os valores e influências que o levou a prosseguir com este trabalho científico. A exposição desse posicionamento parece tornar mais legítimo o conhecimento trazido à tona do que obscurecer os interesses envolvidos na produção dos trabalhos que se consideram neutros ou “apolíticos”.

Estaria então a ciência isolada com todos os conhecimentos legítimos? A partir da abordagem ilustrada anteriormente sobre a narrativa do conhecimento e seu processo de consolidação e legitimação é possível perceber que a trajetória do conhecimento é dependente de suas origens, isto é, o conhecimento “não científico” se faz importante para esta construção. 

Apesar disso, é discutível até que ponto este conhecimento consolidado é legítimo para a vida em sociedade. Em Jamais Fomos Modernos (1994a), Latour esclarece como os conhecimentos científicos foram utilizados para a elaboração de tecnologias que podem até prejudicar a relação entre humanos e humanos e entre humanos e não-humanos. A mesma tecnologia micromolecular para a cura de doenças pode ser utilizada para gerar doenças. Ou ainda pior, surgem interesses para criar tecnologias destinadas à destruição de humanos e não-humanos. 

Se levarmos em conta que o produto mais sofisticado e avançado da ciência é de teor destrutivo (tecnologia de guerra do domínio sobre a natureza e sua consequente poluição, da manipulação do comportamento etc…). não sabemos sequer provar que é preferível ao senso-comum (DEMO, 1985, p. 20).

Assim, faz-se necessário o direcionamento do conhecimento para causas que resolvam os problemas públicos enfrentados pela sociedade, e não para a criação de outros. O trajeto do conhecimento do âmbito individual relacional à magnitude coletiva de seus efeitos exige um esforço coletivo. Seja através de uma estrutura organizacional como a administração pública, seja através da mobilização de diversos atores da sociedade civil, a virada para se tratar o conhecimento e seus objetos de forma responsável é urgente. Latour (2000) argumenta que além de compartilhar o conhecimento de forma coletiva é necessária mobilização de interesses, atores, humanos e não humanos para encarar os problemas enfrentados pela sociedade.


Fonte: Maluli, 2020.

A ação, dessa forma, deve se dar de forma estratégica. Quais os conhecimentos necessários para resolver os problemas públicos? De quais lugares eles vêm? Ciência? Administração Pública? Sociedade? De que forma os atores desses setores interagem para resolver os problemas coletivos? Com as tecnologias da informação nos tempos de hoje recebemos uma quantidade brutal de informações. Não seria possível inverter a forma de distribuição de informações? Como unificar, compartilhar e mediar os conhecimentos e informações para desenhar soluções contra os problemas coletivos enfrentados?

Plataformas organizacionais de resolução de problemas públicos; parcerias entre multisetores, sistemas de inovação, movimentos sociais, inovações sociais, redes sociais, living labs, plataformas e tecnologias digitais são exemplos de eixos que envolvem conhecimentos diversos como alternativas para a resolução deste problema. O conhecimento, portanto, não se dá de forma individual. O conhecimento é coletivo, seja entre humanos ou não humanos. As informações que recebemos durante a vida e no cotidiano, dessa forma, se transformam aos termos contatos com pessoas, imagens e objetos e se renovam ao descobrir novos coletivos. Nossa compreensão é fluída e para vencermos mentiras e fake news bem como para criarmos uma ciência mais responsável é preciso diálogo constante com esses coletivos humanos e não humanos. É necessário também senso crítico e reflexivo sobre as decisões tomadas e sobre os sensos e consensos estabelecidos. 

Considerar nosso conhecimento como fruto das relações históricas sendo percebido de forma diferente por uma diversidade de atores é essencial para unir as pessoas, sustentar os coletivos. As plataformas organizacionais e o diálogo constante buscando trazer à tona a história fundamentada nas relações entre humanos e não-humanos também são fundamentais para a criação de um conhecimento responsável, sustentável e não-destrutivo. As trajetórias do conhecimento, suas crises de legitimação e seu pleno exercício são temas importantes para se refletir e compartilhar em sociedade. Administrar este conhecimento é condição basilar para a existência da natureza da sociedade humana no planeta. 

Referências Bibliográficas

ACKOFF, Russell L. From data to wisdom. Journal of applied systems analysis, v. 16, n. 1, p. 3-9, 1989.
DEMO, Pedro. Demarcação científica. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, p. 13-28, 1981.
DEMO, Pedro. Introdução. IN: DEMO, Pedro. Ciência rebelde: para continuar aprendendo, cumpre desestruturar-se. São Paulo: Atlas, 2012.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Editora 34, 1994a.
LATOUR, Bruno. On technical mediation: philosophy, sociology and genealogy. Common Knowledge, v. 3, n. 2, p. 29-64, 1994b.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. Unesp, 2000. 
MALULI, Luisa. Como Criar Uma Cultura De Engajamento De Captação Em Organizações Do Terceiro Setor. Júnior Pública Consultoria FGV, 2020.
MILOSAVLJEVIC, Branislava. Why Do We Need Knowledge Networks? Enton Digital, 2021. 
PUTNAM, Hilary. Introduction. IN: PUTNAM, Hilary. The collapse of the fact/value dichotomy and other essays. Harvard University Press, 2004.
TSOUKAS, Haridimos. Complex knowledge: Studies in organizational epistemology. Oxford University Press, 2005.
SANTOS, Boaventura Sousa. Introdução. IN: SANTOS, Boaventura Sousa. Conhecimento prudente para uma vida decente. 2004.