Tragédia ou drama?

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Doutorado Patrícia Beckhäuser Sánchez

A eleição presidencial de 2018 terá o maior número de candidatos desde a disputa de 1989, a primeira desde a redemocratização do Brasil. Há 12 candidatos ao todo. No pleito de 89, foram 22.
Além das pendências na Justiça, os candidatos enfrentam escassez de recursos de campanha, de tempo de propaganda no rádio e na televisão. Os candidatos precisam lidar também com a falta de popularidade ou alta rejeição (ODILLA, 2018). Prova disto, foi o ocorrido no dia 6 de setembro de 2018 em que um servente de pedreiro Adelio Bispo de Oliveira, 40 anos, alcançou o deputado Jair Messias Bolsonaro, candidato à Presidente pelo PSL– Partido Social Liberal, deferiu-lhe uma facada na altura do abdômen durante ato público em Juiz de Fora, Minas Gerais, assumiu a autoria e disse que agiu “em nome de Deus” (GONÇALVES E GHIROTTO, 2018).E como alguém pode praticar o mal em nome de Deus se Deus criou o homem a sua imagem e semelhança? Kant disse que não se pode afirmar a existência de Deus.

Immanuel Kant (1724-1804) foi um filósofo da era modernaque que criticou o empirismo, defendido por Bacon e mais tarde por Locke e Hume, que negava a importância da metafísica e a existência de ideias inatas no ser humano. Para Kant, não somos uma “tábula rasa” como afirmava Locke e a totalidade do mundo não se dá numa experiência. A experiência sem teoria é cega. Koyré (2011, p. 80) parece tentar dialogar com Kant quando destaca “o empirismo puro - e mesmo a ‘filosofia experimental’ - não conduz a parte alguma”. Kant criticou o racionalismo defendido por Descartes, Leibniz e Wolff que dava importância à metafísica e à existência de ideias inatas no homem. Kant propôs uma síntese do empirismo e do racionalismo,tomando o nome de criticismo, como se ambos estivessem certos e errados ao mesmo tempo. As ideias inatas existem sim e é o que Kant chama de conhecimento a priori, mas que precisa da experiência para se confirmar.

Kant chamou o resultado dessa junção do empirismo e racionalismo de transcendental, algo que está no objeto, mas que pertence ao sujeito. A ideia defendida por Kant foi chamada de a Segunda Revolução de Copérnico uma vez que não é mais o sujeito “sol” que gira ao redor do objeto “terra”, mas o sujeito observador é trazido para o centro. Nesse contexto, a mente humana tem uma maior importância. Se não há alguém que os reconheça, os objetos inexistem.

Kant questionou como a razão vinha sendo considerada por meio de três perguntas: que posso saber? que devo saber? que posso esperar? Toda preocupação que Kant demonstrava quanto às provas da existência de Deus têm relação com sua teoria do conhecimento e sua divisão entre o mundo noumênico (nada se pode conhecer sobre ele) e fenomênico (podemos conhecer sobre ele) em que o noumenon é representado pelo mundo das coisas em si, incognoscíveis e o fenômenico pela representação. Sendo assim, a metafísica (Deus, da alma, do universo, da vida futura) não consegue ser uma referência objetiva com objetos dados ou construídos na sensibilidade e a razão não deve tentar ultrapassar o mundo da experiência, que é o mundo do fenômeno. A razão não pode ter acesso ao noumenon e Deus e todos os temas metafísicos nada tem que ver com o entendimento. Embora Kant tenha sido um homem reto e profundamente religioso declarava“...não se pode dizer que tenha realmente existido, com vistas a seu fim essencial, em nenhuma das versões até hoje expostas, o seu pífio progresso até aqui leva qualquer um a duvidar com razão de sua possibilidade” (KANT, 2015, p. 57).

Neste sentido, o argumento neste paper será: “Se não se pode demonstrar a existência de um Ser
Immanuel Kant
supremo (Deus) então não há o porquê agir em nome dele”
. Segundo Kant (2015, p. 37) “a metafísica sempre houve no mundo, e continuará a haver, mas com ela haverá também uma dialética da razão pura, posto lhe ser natural” e acrescenta “Deus, liberdade e imortalidade constituem essas inevitáveis tarefas da própria razão pura” (2015, p. 49). Embora Kant revele que não se possa demonstrar a existência de Deus, Dostoiévski realça “Se Deus não existe, tudo é permitido”, mas “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém” (Coríntios 6:12). 
Para Kant é absolutamente necessário persuadir-se da existência de Deus, mas não é necessário demonstrar que Deus existe, uma vez que Deus não pode ser percebido através da razão pura, sua compreensão se dá no campo da razão prática, ou seja, Deus existe devido o fato que o universo dos seres humanos se move por leis morais. Kant combateu o relativismo moral e introduziu o imperativo categórico ao destacar que o certo não depende da situação ou do contexto. O certo é o certo sempre.
O cuidado que há de se ter, segundo Hobbes, é que a lei é que vai regrar os hábitos e costumes, quando o que é moral vai se perdendo, o que resulta na falta de ser, falta do que devia existir, ou falta de ordem (Santo Agostinho, 354-430 d.C.).

E como se já não bastasse a guerra das ciências, desvelada por Boaventura Sousa Santos e Latour, vivemos uma guerra das ideologias políticas, onde há vários polos-esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita - com ideologias políticas diferentes e disputas partidárias internas, como também acontecia na guerra das ciências. Seria o Adélio um híbrido?

“Que país é esse?”música composta por Renato Russo há 40 anos nunca esteve tão atual.O que parece é que em pleno século XXI o homem volta ao estágio Homo erectus, que surgiu na terra há 1,5 milhão de anos, quem criou o primeiro objeto cortante, feito de pedra, para caça e defesa. E Adélio o usou como se estivesse diante de um predador. Mas de que adianta atentar a qualquer um deles se já estiverem mortos no coração, na cabeça e na alma do eleitorado (Kramer, 2018).

Esse teatro real lembra mais um drama do que uma tragédia, uma vez que tragédia é quando nós humanos não temos o que fazer. Não é o caso. Que seja hasteada a Bandeira do Brasil porque o que precisamos é de “ordem e progresso”. A cor branca da faixa, onde está escrito o lema nacional, significa “o desejo pela paz”, em harmonia com Kant “Que seja possível ou não na realidade, não importa; é preciso pensar na paz como um evento possível”. “A paz deve se tornar uma ideia reguladora, guiar a conduta dos homens políticos” (NICOLA, 2005, p. 337).

Quem sabe seria preferível pensar como Voltaire (1694-1778) “Eu acredito no Deus que criou os homens, e não no Deus que os homens criaram”. Que assim seja!

Referências

GONÇALVES, E., GHIROTTO, E. A facada da intolerância. Revista Veja. São Paulo, edição 2599, ano 51, n. 37, p. 36-39, set. 2018. 
KANT, I. Crítica da razão pura. 4.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. p.17-68.
KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de janeiro. Forense Universitária, 2011.
KRAMER, D. Na mesma moeda. Revista Veja. São Paulo, edição 2598, ano 51, n. 36, p. 51, set. 2018. 
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.                                        NICOLA, U. Antologia ilustrada de filosofia: das origens à idade moderna. São Paulo: Globo, 2005.
ODILLA. F. Eleições 2018: Os candidatos à Presidência e quais dificuldades têm de superar durante a campanha. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42313908>. Acesso em: 11 de set. de 2018.                                                                                                                                          PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. O criticismo Kantiano e O positivismo In: PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990.                               
SOUSA SANTOS, B. Um Discurso sobre as Ciências. Coimbra: Edições Afrontamento, 1988.

Nenhum comentário:

Postar um comentário