A origem da ciência, os diferentes pontos de vista e a demarcação científica

Pequeno ensaio produzido pela aluna de doutorado Amanda Maciel Carneiro.

Tem a ciência seu surgimento, conforme Kneller (1980), dos anseios, medos e angústias humanas. É a tentativa de reduzir esses sentimentos, buscando ordem e compreensão, que motiva e move a ciência para a frente (KNELLER, 1980), embora devamos reconhecer que ainda hoje é a nós difícil tarefa conceituá-la, buscando em alguns autores consagrados definições negativas (sobre aquilo que ela não é, como em DEMO, 1985). Partiremos aqui do ponto de vista da ciência como processo, expressamente mencionado por Demo (1985) e Japiassu (1991), de onde prosseguiremos à análise.

Das inúmeras tentativas de se buscar a ciência, os rumos que estas tomaram dependeram de visões de mundo, contextos históricos, sociais e culturais em que esses estudos emergiram e evoluíram (DEMO, 1985; KNELLER, 1980). Nas palavras de Kneller, referindo-se às origens da ciência, “somos nós que vemos na obra deles as características de uma ciência que eles mesmos não poderiam reconhecer” (KNELLER, 1980, p. 14). A isso se relaciona a ideia de que a própria demarcação e conteúdo da ciência muda ao longo do tempo, de suas próprias transformações e do parâmetro sob a qual ela é analisada, argumentação defendida por ambos os autores. Algo que já foi considerado ciência pode hoje não o ser (embora importante que reconheçamos que, àqueles olhos, naquela época, o era); algo que não era considerado ciência pode hoje, devido a nossos avanços, tanto de conhecimento científico quando do próprio conteúdo da ciência, sê-lo. E como toda ciência, em um eterno devir (JAPIASSU, 1991), pode infinitamente sê-lo e deixar de sê-lo, tanto pela natureza do objeto, quanto pelos olhos de quem vê.

É daí que aproveitamos o espaço e ressalvamos, exemplificativamente, a afirmação de Kneller de que “as explicações para o fracasso da China em criar uma ciência moderna não provam que existia um caminho único para essa ciência, mas apenas que a China não enveredou pelo caminho que adotamos” (KNELLER, 1980, p. 20), manifestando seu posicionamento de que a ciência ocidental foi a mais bem-sucedida. Pontos de vista à parte, pois cabe a ele colocar o que tem de si e de seu vasto conhecimento naquilo que imprime aos outros, e ressaltando o fato de que afirmamos o que segue, somente baseados no pontuamento específico sobre o “fracasso da China em criar uma ciência moderna”, abrimos espaço ao nosso, que ressoa: “ainda não conhecemos tudo”.

Embora a obra de Kneller (1980) discuta a história da ciência, e o quanto ela depende da lente que adotamos, muitas vezes olhamos para essa história e tiramos nossas conclusões com um olhar fixo sobre o que é a verdade - e talvez um dia nos impressionaremos se a nossa visão de ciência for mais a frente considerada “geocêntrica” (o que poderia ocorrer com o “fracasso da China na criação de uma ciência moderna”, de Kneller). Se assim for, bem-vindo seja o heliocentrismo, ou qualquer coisa que venha após isso, que nos aproxime um pouco mais daquilo que buscamos.
Hilburn (2017)
Nesse sentido, colocamos o autor, nessa afirmação específica, na posição de historiador das ciências, e a nós, em um projeto de iniciação de epistemólogos, na diferenciação conceitual de Japiassu (1991), muito mais para esclarecer as diferentes formas de manifestação do pensamento do que a posição propriamente dita de Kneller (1980). Até porque vem dele próprio a concordância explícita com a ideia de inexistência de somente uma ciência, considerando numerosas as ciências, e de que a ciência está sempre aberta à transformação e corrigibilidade, sendo histórica, “conjetural” e “revolucionária” (KNELLER, 1980, p. 32). E mesmo que assim não fosse o seu ponto, de algum ponto se deve partir; e cada um parte do que tem (do seu). Todos [os pontos de vista] não deixam de ser espectros da verdade; somos como os “cegos sábios do Hindustão” – elogiosamente, pois a grande maioria de nós mortais ainda busca a sabedoria.

A ciência, em sua procura pela verdade, busca não somente a verdade exterior como a si própria e às suas definições, e lida com as suas próprias limitações, já que analisa e faz parte do mundo que analisa (DEMO, 1985). Nesse contexto, talvez, dentre os critérios internos e externos utilizados por Demo para definir a ciência, o que mais reconheça essa condição seja a objetivação, o esforço de “reproduzir a realidade assim como ela é; mais do que como gostaríamos que fosse” (DEMO, 1985, p. 16).

A precariedade do fenômeno científico e a relação interacional sujeito-objeto torna tudo discutível e em aberto, já que o domínio da verdade só poderia ser feito com olhar imparcial e objetivo (que, a nosso ver, escapa à razão humana, pois teria o pesquisador que olhar o objeto vendo tudo dele e nada de si), e ainda assim dentro de uma realidade imutável, o que contrasta com a natureza transformacional das interações e fenômenos sociais, como bem salienta Demo (1985).

A realidade construída pela ciência acaba, pela nossa visão, em muito se assemelhando com a visão que temos de nós mesmos somada à busca da “ilha desconhecida”, de Saramago. Lidamos com o que podemos e com o que temos, cada um à sua maneira, e preferencialmente sem perder o rigor daqueles que fervorosamente buscam, cientes de que o conhecido de hoje (provavelmente) não é o conhecido de amanhã. Reside aí a dificuldade de fronteiras na demarcação científica da ciência. E quem delas precisa?

Referências:

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
HILBURN, Scott. [Imagem de rinoceronte pintor] In: HILBURN, Scott. The argyle sweater. GoComics.com, June 2017. Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/ 574912708672035898/. Acesso em: 02/09/2019.
JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. In: JAPIASSU, H. Introdução ao pensamento epistemológico. 6. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1991, p. 15-39.
KNELLER. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29.

As demarcações necessárias

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de doutorado Gabriel Marmentini.

Demarcar a ciência me parece algo natural em uma sociedade que gosta de demarcar as coisas. Quanto mais limites criamos para alguns campos, mais controle podemos exercer sobre eles. Mais barreiras podemos criar para que novatos adentrem nos mesmos. Mais status pode-se atribuir a quem tem o êxito de estar circunscrito a algo tão bem demarcado e difícil de pertencer. Mas nada disso precisa ser necessariamente negativo, como minhas palavras anteriores tendem a apontar, propositalmente. Ter limites, controle, barreiras e critérios pode servir para dar mais legitimidade, processualização e organização a determinado conceito, atividade ou grupo de pessoas. Eu gosto da demarcação e meu argumento é que dela precisamos. Ao longo do meu escrito tal argumento se tornará mais sólido.

A cada linha lida de Demo (1985) nos sentimos provocados. Posso não ter compreendido ainda tudo que li, mas entendi o suficiente para dizer que, sem dúvida, trata-se de uma leitura fundamental na trajetória do pesquisador. Assim como eu, ele entende que a realidade nunca será suficientemente estudada, sendo o ofício de um professor-pesquisador uma eterna jornada. Uma mistura de humildade com realidade nos leva a entender que a ciência inacabada e inacabável, como ele diz, deve ser novamente interpretada, se iniciando, talvez, por sua des(singularização). Em outras palavras, a ciência é plural. Se há pluralidade de ideias, haverá pluralidade de conceitos. O fazer ciência vem de diferentes fontes, pessoas e campos do saber. Não há um único conjunto de critérios de cientificidade. Não há uma abordagem metodológica melhor que outra. Não há um grau correto de senso comum e um grau correto de ideologia permitidos em uma investigação. O que temos de sobra são problemas, leia-se perguntas, aguardando por soluções, leia-se respostas. É isso que os pesquisadores precisam: fazer boas perguntas para que a partir delas busquem boas soluções, tendo sempre como ótica a pesquisa que faz sentido (ALPERSTEDT e ANDION, 2017). Nós fazemos ciência diariamente, seja em laboratórios e com jalecos brancos, seja dentro da universidade, seja interagindo com as nossas comunidades e organizações. Ciência se tornou um termo rebuscado, distante e um tanto chique. Precisamos ressignificar a ciência.

No campo musical, estilos são demarcados. No campo artístico, obras são demarcadas. No campo da literatura, escritos são demarcados. No campo social, muitas coisas são demarcadas por meio de políticas públicas. E vamos com calma, pois demarcar não precisa ser sinônimo de um pensamento reducionista e cartesiano, tampouco associado aos adjetivos que citei no primeiro parágrafo de modo negativo. Como eu disse, façamos o exercício de pensar na demarcação como uma ação de legitimidade interna para diversas questões, não querendo excluir ninguém ou formar clubes que tendem a se transformar em bolhas, mas mostrando o quão diverso é o campo científico e que todos têm uma contribuição e merecem ser respeitados. Temos que aprender que a demarcação na era da complexidade deve ser acompanhada de muito respeito ao contraditório e abertura para o diálogo.

Eu, por exemplo, acho uma perda de tempo discutir se Administração é ou não ciência. Perda de tempo no sentido de quem está contra nós, pois aos que escrevem a favor e defendem nosso campo temos que agradecer pelo esmero e paciência. Gostaria que alguém me explicasse o sentido em sermos uma "ciência menor" sendo que, além de avançar o conhecimento científico, trazemos soluções práticas ao mundo, diferente de muitos outros campos do saber, diga-se de passagem. Não, não quis ser irônico. Eu consigo compreender e respeitar que a ciência, por ser plural, cumprirá com sua função social de diferentes formas, em maiores e menores graus. Pois avançar o conhecimento científico, mesmo que sem aplicabilidade direta ou imediata, também é uma função social. Enfim, mais do que divisões, precisamos nos unir. Se o sistema de demarcações científicas funcionasse da forma que imagino, seria incrível ver a união entre diferentes tradições, como aponta Kneller (1980), seja para criar novas teorias arraigadas na heteronomia, seja para revisar pressupostos de ambos os lados de forma colaborativa.

Kneller (1980) diz que levará muitos séculos para a ciência alcançar completude em suas explicações para a ordem natural. Muitos séculos me parece até otimista, visto que tendo a pensar que até lá, muitas outras coisas já terão caído por terra e outras perguntas terão emergido. Os escritos também se complementam pois ambos partem da premissa da autocrítica necessária aos pesquisadores. É dela que virá nossa capacidade de crescer continuamente e de contribuir para a evolução do campo científico. E é justamente o que estou propondo neste pequeno escrito, que façamos uma profunda autocrítica. Precisamos, o quanto antes, entender que partimos sempre de um objeto construído, que temos visões de mundo e trajetórias diferentes e que nosso fazer ciência nem sempre será igual. Contudo, isso não me faz melhor ou pior do que outro cientista ou outra corrente de pensamento. Quando falo da demarcação, penso ser uma forma legítima da ocupação do espaço científico pelas mais diversas correntes, não havendo um limite, visto que a ciência, em si, é ilimitada. Talvez seja uma forma de contribuir para o avanço da filosofia das ciências (JAPIASSU, 1991).

Referências:

ALPERSTEDT, G. D.; ANDION, C. Por uma pesquisa que faça sentido. Perspectivas. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 57, n. 6, nov-dez. 2017, p. 626-631.
DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. In: JAPIASSU, H. Introdução ao pensamento epistemológico. 6. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1991, p. 15-39.
KNELLER. G. F. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29.

O estereótipo como pré-saber do saber estatístico

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de mestrado Gabriel E. Queiroz de Melo.

Este estudo deseja demonstrar que as generalizações populares sobre comportamentos ou características, genericamente definidas como estereótipos, são um pré-saber relativo ao saber estatístico.

Primeiramente, é importante definir a conceituação de estereótipo. Aqui, será aceita a sugestão de Stangor (2010), que coloca os estereótipos como características genéricas, de fácil observação, mentalmente associadas a um grupo social e cristalizadas ao longo do tempo.

Também é importante ressaltar que os estereótipos não necessariamente estão associados ao comportamento discriminatório negativo objetivo, como exposto por Castel (2008, p. 14). Negativo porque é “uma instrumentalização da alteridade, constituída em favor da exclusão”, objetivo porque o portador do comportamento discriminatório efetivamente age contra o discriminado.

O estereótipo, na verdade, deve ser encarado como uma formulação do senso-comum. Nos termos de Demo (1985, p. 14), senso comum é aquele conhecimento “acrítico, imediatista, que acredita na superficialidade do fenômeno”. Características perfeitamente aplicáveis aos estereótipos, que podem ser vistos como estatísticas intuitivas, formadas a partir da simples observação, sem rigor metodológico ou formalidade acadêmica.

Uma vez que foram categorizados dentro do senso comum, ainda é possível definir os estereótipos como um pré-saber, pois, como coloca Japiassu (1977), pré-saberes são aquisições não-científicas de estados mentais, formados de modo natural ou espontâneo, opiniões-primeiras ou pré-noções, incluídas dentro de algum contexto social.

Também segundo Japiassu (1977), os pré-saberes, exatamente por não terem caráter científico, são sujeitos a reproduzir uma gama de traços contrários ao saber, como erros, generalizações indevidas. Porém a existência dos saberes está condicionada a existência prévia dos pré-saberes. Neste caso, defende-se que a existência do saber estatístico está relacionada com o pré-saber estereótipo.

Não é razoável acreditar que a estatística moderna, com todas as suas sofisticações e rigores matemáticos e metodológicos, seria possível se o homem não tivesse, desde os primeiros momentos de sua existência como animal social, uma inclinação natural para observar padrões, tentar categorizá-los em grupos e, posteriormente, fazer previsões a partir deles.

A formação de estereótipos pode ser tomada como uma adaptação evolutiva da mente humana, uma vez que, como apresentam Peric e Murrieta (2015), a evolução humana não se deu somente em relação a condições externas, como temperatura e clima, mas também ao ambiente social. Era uma questão de sobrevivência saber identificar padrões e atribuí-los a indivíduos que provavelmente também os tivessem. Em resumo, a ciência não haveria de contar com a sofisticada estatística moderna se, um dia, não tivesse contado com a rudimentar “estatística intuitiva” dos estereótipos. 

Como um tipo de pré-saber, que não é científico, o uso de estereótipos, não é recomendado e, na maioria das vezes, inclusive, é fortemente desaconselhável. Porém, como coloca Demo (1985), a ciência acadêmica até pode aceitar métodos que não tenham tanto rigor metodológico, derivados do senso-comum, desde que não haja equivalente dentro de vias testadas por experiências profundamente críticas.
Fonte: Samary, Yamartino e Anvari (2013)
É o caso dos estereótipos que, mesmo sendo um pré-saber, ainda tem o poder de auxiliar o saber estatístico, ao se configurarem como “estatística heurística”, no sentido de serem um atalho mental. Sowell (2019) defende que o uso de estereótipos pode ser válido, como uma forma de teoria dos grandes números, quanto não existem recursos necessários para as técnicas mais adequadas.

Guerra (2002) apresenta a teoria da cognição social, inserida no contexto da psicologia social, onde, até nos estudos mais modernos, a formação de estereótipos é vista como estrutura cognitiva útil para o levantamento de informações que são similares aos membros de um mesmo grupo, as quais podem ser efetivamente organizadas e armazenadas, com a desvantagem de estarem expostas a variáveis pessoais de quem as coleta. Corroborando com isso, Jussim (2016) mostra que dentro da área de psicologia social, eivada com uma série de problemas metodológicos, a precisão dos estereótipos é um dos pontos de apoio mais bem estabelecidos.

Os estereótipos nasceram da necessidade humana de compilar informação (dados) e atribuir padrões, enfim, descrever o mundo que nos cerca, de forma rápida e com algum grau de precisão. Já a estatística, nasceu da necessidade de coletar estes dados de maneira formal, mantendo a subjetividade de quem coleta no limite do aceitável, para a criação de parâmetros efetivos, na busca da descrição mais fidedigna possível da realidade.

O que ainda deve ser buscado por trabalhos futuros é avaliar a real necessidade que os campos de pesquisa têm de ainda fazerem o uso de estereótipos como esta forma de estatística rudimentar e discutir até que ponto eles podem ser usados sem que o pesquisador incorra na atitude discriminatória negativa objetiva.

Referências:

CASTEL, Robert. A discriminação negativa: cidadãos ou autóctones? Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
DEMO, Pedro. Introdução à metodologia da ciência. São Paulo: Atlas, 1985.
GUERRA, Paula Bierrenbach de Castro. Psicologia social dos estereótipos. Periódicos Eletrônicos em Psicologia, Itatiba, v. 7, n. 2, p. 239-240, dez.  2002. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext &pid=S1413-82712002000200013&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 14 ago. 2019.
JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. In: JAPIASSU, H. Introdução ao pensamento epistemológico. 6. ed. São Paulo: Francisco Alves, 1991, p. 15-39.
JUSSIM, Lee et al. Stereotype accuracy: one of the largest and most replicable effects in all of social psychology. In: JUSSIM, Lee et al.  Handbook of prejudice, stereotyping, and discrimination. 2. ed. New York, USA: Psychology Press, 2016. p. 31-63. 
PERIC, Mikael; MURRIETA, Rui Sérgio Sereni. A evolução do comportamento cultural humano: apontamentos sobre darwinismo e complexidade. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22, supl., dez. 2015, p. 1715-1733.
SAMARI, William; YAMARTINO, Ray; ANVARI, Rafaan. What each country leads the world in. DogHouse Diaries, 2013. Disponível em: <http://thedoghousediaries.com/5414>. Acesso em 29 ago. 2019.
SOWELL, Thomas. Discrimination and disparities. New York, USA: Basic Books, 2019.
STANGOR, Charles. Conceptualizing stereotypes and prejudice. In: STANGOR, Charles. Stereotypes and prejudice: essential readings. Philadelphia, USA: Psychology Press, 2000.

Kant e o sujeito relacionado ao objeto em comparativo aos arquétipos de Jung

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Doutorado Leandro Leite

Cita Kant (2015) na obra “Crítica da razão pura” que por mais que nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso surge ele apenas da experiência. Se existe tal conhecimento independente da experiência, e mesmo de todas as impressões dos sentidos – tais conhecimentos são denominados a priori e se diferenciam dos empíricos, que têm suas fontes a posteriori, na experiência. Citam Padovai&Castagnola (1990) que do empirismo e do racionalismo origina-se o criticismo cujo fundador é Kant, considerado o centro da filosofia moderna. Se para Padovani &Castagnola (1990) é de Kant a chamada revolução copernicana, a respeito disso, explica Kant (2015) sobre os pensamentos de Copérnico que, verificando o pouco avanço na explicação dos movimentos celestes, supondo que a multidão de estrelas giraria em torno do expectador verificou, se não daria mais certo fazer girar o expectador deixando as estrelas em repouso. Assim, Kant (2015) sugere que na metafísica seja tentado algo semelhante: se a intuição tivesse que ser regulada pela constituição dos objetos não haveria como saber algo sobre ela a priori, porém, o objeto regula-se pela constituição da nossa faculdade intuitiva,o que permite representar tal possibilidade. Dessa forma, indo ao encontro das ideias de Kant (2015) o argumento deste ensaio é o de que Kant, não apenas coloca o sujeito no centro em relação ao objeto, mas também, nos indica que o próprio sujeito possui outros elementos mais centrais a ele próprio, por exemplo, os arquétipos provenientes do inconsciente que, de acordo com Jung (2004)se trata de um a priori gigantesco.


Quando Kant (2015) explica o termo a priori puro, se refere aquilo que não necessita de nenhuma experiência sendo livre de empirismos. Por sua vez, Jung (2004) elucubra que o inconsciente não é apenas um a priori gigantesco, mas a fonte dos instintos, na medida em que os arquétipos não são mais as formas em que se manifestam os instintos; contudo, a fonte da vida que é o instinto da vida emana também do todo criativo. Dessa forma, podemos pensar que aquilo que possuímos, que não necessita de nenhuma experiência sendo, portanto, livre de empirismos, pode ser compreendido como o inconsciente, o qual, é a fonte dos instintos que podem ser expressos por meio dos arquétipos que são o instinto da vida. Os arquétipos, tratam-se de dados cognoscitivos que temos armazenados em nosso intelecto, os quais, de acordo com Jung (2004) representam a expressão de toda a existência humana sendo sistemas vivos de reação e de disposição que por meios invisíveis e, portanto, mais eficazes, determinando a vida individual e chegando a se manifestarem no inconsciente coletivo.


As ideias de Jung (2004) tornam-se importantes, pois, aponta Kant (2015) que as coisas tomam o seu lugar à medida em que a crítica nos instrui sobre a nossa inevitável ignorância quanto às coisas em si mesmas, desde que não limitemos tudo aquilo que podemos conhecer de um modo teórico aos próprios fenômenos; assim, a razão especulativa tem de sofrer quanto à posse que imaginava ter, permanecendo os interesses humanos universais e os ganhos que o mundo até aqui extraiu dos ensinamentos; desde que, questionemos as impotentes distinções entre a necessidade prática subjetiva e a objetiva. A respeito de objetividade e subjetividade, explica Jung (2004) que os fatores anímicos complexos tratam-se de uma realidade autônoma, de caráter enigmático que escapa aos caprichos e manipulações devido aos conteúdos da psique subjetiva (consciência), mas não à da psique objetiva (inconsciência), a qual, representa uma condição a priori da consciência e de seus conteúdos. Jung (2004) explica que é do inconsciente que emanam influências determinantes, as quais, independente da tradição conferem semelhança a cada indivíduo singular, bem como, da forma de representa-los sendo uma das provas o paralelismo dos motivos mitológicos, que denominou de arquétipos, devido à sua natureza primordial.Explica Kant (2015) que a necessidade e a universalidade estrita são, assim, indícios seguros de um conhecimento a priori, e pertencem inseparavelmente uma à outra. Já para Jung (2004) é fato que as imagens arquetípicas têm um sentido a priori tão profundo que nunca questionamos o seu sentido real, pois, o homem apenas descobriu que até então jamais havia pensado acerca de suas imagens e quando começa a pensar sobre elas, recorre ao que chama razão. 

Como Kant (2015) sugere que: se a intuição tivesse que ser regulada pela constituição dos objetos não haveria como saber algo sobre ela a priori, porém, o objeto regular-se pela constituição da nossa faculdade intuitiva permite representar tal possibilidade; se nos sugere Freitas et.al.(2017) que a intuição pode ser definida como uma informação interior, natural, algo intangível para o qual não se é treinado, podendo ser definida desde como uma sensação e para outros uma habilidade, nos abre caminho para compreender a dificuldade da enquadramento da sua natureza como sendo consciente ou inconsciente. Com isso, podemos questionar a respeito de que as coisas podem ser pensadas primeiro para serem postas à prova depois. No entanto, como supracitado, Jung (2004) nos afirma que o inconsciente se trata de um a priori gigantesco.

Então, se para Padovai&Castagnola (1990) do empirismo e do racionalismo origina-se o criticismo cujo fundador é Kant, nos leva a crer que o próprio Kant pensou de forma independente das correntes filosóficas da sua época. Por sua vez, Jung (2004) explica que uma psicologia científica, independentemente dos prós e contras da filosofia da época, deve considerar as intuições transcendentais que emanaram do espírito humano em todos os tempos, como projeções, isto é, como conteúdos psíquicos extrapolados num espaço metafísico e hipostasiado. Com isso, compreendemos que as elucubrações intelectivas não passam necessariamente pelas experiências, porém, surgem de uma vontade interior que pode ser objetiva ou subjetiva de compreensão transcendental normalmente geradas pela universalidade dos conceitos, os quais, tratam-se de importantes meios para facilitar o entendimento intelectivo.Percebemos o avanço da ciência quando Kant (2015) sugere colocar o sujeito ao centro e o objeto em volta; enquanto Jung (2004) nos explica que há algo a mais, além do que se via como sujeito, o que descreveu como sendo o inconsciente.


Referências
FREITAS, H. M. R; ANDRIOTTI, F.K; MARTENS, C.D.P; PESCE, G. MARCOLIN, C.B. Visão executiva sobre a tomada de decisão instantânea. Revista Desenvolvimento em Questão. n.39, abr-jun, 2017.
JUNG, Carl Gustav. La dinámica de lo inconsciente. Espanha: Trotta, 2004.
KANT, I. Crítica da razão pura. 4.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. p.17-68. 
PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da Filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990.