A origem do pensamento moderno e sua relevância na evolução dos cursos de graduação de Administração

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Hany Ellen Guedes

    Na esfera da administração, frequentemente somos indagados quanto ao destino iminente da ciência que estudamos, bem como das implicações para nossa própria profissão. Remontando a um estudo de 2018 promovido pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos do Ensino Superior e posteriormente reportado pela Globo News, emerge a predição de que certos cursos de graduação, de áreas tradicionais do conhecimento como administração, podem gradualmente ceder espaço ou até serem extintas até 2030.

    Tais relatos e análises instigam profundas ponderações sobre a trajetória da educação e da prática profissional, as quais se desdobram em resposta às contínuas mudanças de natureza tecnológica e social. Dentro dessa abordagem, adquire destaque fundamental o aprofundamento na compreensão das raízes do pensamento moderno, que possibilita uma reflexão acerca da própria essência da ciência e do seu impacto inerente na esfera educacional da Administração. Através dessa contextualização histórica, podemos melhor avaliar as maneiras pelas quais a evolução do pensamento científico moldou a maneira como encaramos a educação e a prática administrativa nos tempos atuais.

Fonte: https://paytrack.com.br/blog/consultoria-financeira-empresarial/
    Desde os tempos remotos da Antiguidade Clássica até o presente, a educação se mantém como um reflexo intrínseco da incessante busca pelo conhecimento e da necessidade de adaptação à constante evolução da realidade circundante. Os esforços acadêmicos modernos também permanecem profundamente enraizados na influência intelectual exercida por notáveis pensadores do passado. Pensadores como Bacon, Descartes e Kneller, que lapidaram os fundamentos do pensamento científico, continuam a reverberar em meio às abordagens contemporâneas. Suas contribuições enriquecem o panorama científico atual, delineando um caminho hermenêutico que conecta as origens da indagação filosófica à contínua exploração do conhecimento em nosso tempo.

    A busca por cursos de graduação em administração que promovam a imersão em experiências concretas reflete o compromisso com a experimentação rigorosa, se alinhando com a contemporânea compreensão de que a prática aplicada é um motor essencial para o desenvolvimento de habilidades adaptativas, necessárias para prosperar em um ambiente profissional em constante mutação. Bacon, pioneiro do empirismo, defendia a importância da experimentação e da observação detalhada para o desenvolvimento do conhecimento. Conforme Bacon, aqueles dentre os mortais, mais animados e interessados, não no uso presente das descobertas já feitas, mas em ir mais além; que estejam preocupados, não com a vitória sobre os adversários por meio de argumentos, mas na vitória sobre a natureza, pela ação; não em emitir opiniões elegantes e prováveis, mas em conhecer a verdade de forma clara e manifesta.

    Descartes, que coloca a razão como guia para o conhecimento, ecoa na educação atual, reconhecendo a importância do pensamento lógico e habilidades de resolução de problemas. A preparação acadêmica deve capacitar os estudantes para decifrar e abordar situações inéditas, transcendendo a mera acumulação de informações, através do desenvolvimento de habilidades cognitivas, preparando os futuros profissionais da área para enfrentar os desafios emergentes em cenários de constante mudança através da capacidade necessária para explorar, compreender e enfrentar o desconhecido de modo racional. Descartes (1979) defendia que não existia tanta perfeição nas obras compostas por várias peças e feita pela mão de vários artistas, pois para ele, todos os corpos eram semelhantes, o que se diferencia entre eles, é a mente pensante.

    Kneller enfatizou a historicidade e adaptabilidade inerentes à ciência, salientando sua contínua evolução na busca por uma compreensão abrangente da ordem natural. Essa dinâmica evolutiva ecoa na necessidade de ajustar os cursos, em resposta às mutações tecnológicas e sociais. Conforme novas profissões surgem e outras desaparecem, a educação superior se torna um instrumento essencial para a capacitação dos indivíduos a enfrentar os desafios fluidos e emergentes do cenário profissional em constante transformação. À medida que a ciência se desenvolve o homem percebe-se como possuidor da capacidade de dominar o mundo (KNELLER, 1980).

    As lições dos pensadores modernos têm implicações diretas na maneira como encaramos o cenário educacional atual. Tais notícias, nos lembram de que a educação deve ser flexível e se adaptar à evolução constante do conhecimento e das necessidades do mercado de trabalho. A interseção entre a filosofia, a ciência e a educação, ressalta a importância de estarmos preparados para enfrentar os desafios da mudança, enquanto incorporamos os princípios fundamentais que moldaram nosso entendimento do mundo. Como alertou Kneller, a ciência é um esforço coletivo, e as mudanças educacionais devem refletir a interação dinâmica entre a evolução científica e a sociedade.

Referências: 

RICARDO. 10 cursos de graduação que podem acabar até 2030. Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2023. 

BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. 

DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 

KNELLER. A Ciência como Atividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29 

GLOBO. Cursos de graduação tradicionais podem acabar até 2030. Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2023

Por um realismo pluralista

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Ricardo Lonzetti

    O nascimento da racionalidade moderna, que deu origem à ciência moderna, é em geral atribuído ao que se denomina revolução científica ocorrida nos séculos XVI e XVII e que teve como expoentes Kepler, Copérnico, Galileu, Descartes e Newton. Como afirma Koyré (2011), suas ideias partiram de concepções que exigiam a crença em um modo racional de pensar e testar ideias, essencialmente distinto das concepções sustentadas na pelos filósofos medievais, cujas discussões metodológicas seguiram o modelo fixado pelos gregos e estiveram estreitamente ligadas ao modo pelo qual Aristóteles trata do problema da ciência, ou seja, por meio de um método indutivo e dedutivo.

    Descartes, em destaque, costuma ser visto por muitos como o fundador da filosofia moderna, pois teria problematizado, pela primeira vez, a questão das fontes de validade e o alcance do conhecimento de modo explícito e relativamente sistemático, empregando a razão para refletir sobre a própria razão. Hannah Arendt (1981), por exemplo, o vê desse modo. Guiado por essas visões, Descartes criou um sistema filosófico que era novo e original, que não pode ser comparado a nada desde Platão e Aristóteles, conforme o manual de Niiniluoto, Sintonen e Wolenski (2004).

Fonte: https://pt.dreamstime.com/ilustra%C3%A7%C3%A3o-stock-retrato-estilizado-de-rene-descartes-image66285306

   Descartes (1979) propôs uma operação incomum até então, a de empregar a razão para refletir sobre a própria razão, de modo que fosse possível descobrir qual sua natureza e qual o seu alcance. Até aquele momento, se buscou um fundamento seguro para o conhecimento, entre outros, no mundo das ideias (Platão), na substância (Aristóteles) ou no Ser (Tomás de Aquino). Em uma leitura abrangente dele e de seus contemporâneos, ponto de vista corroborado por Niiniluoto, Sintonen e Wolenski (2004), testemunhamos que Descartes inaugurou uma nova etapa na história do pensamento em que o conhecimento deveria ser descoberto pelo homem, no próprio homem, ou, mais precisamente, na razão. Assim, em “O Discurso do Método”, Descartes (1979) defende que a verdade somente pode ser conhecida a partir da racionalidade, da objetividade e da neutralidade do observador.

    Visando a evitar o erro e assegurar a verdade, Descartes (1979) propõe um método baseado em quatro regras: a) regra da evidência (verificar a verdade, a boa procedência daquilo que se investiga); b) regra da análise (divisão do assunto em tantas partes quanto possível e necessário); c) regra da síntese (elaboração progressiva de conclusões abrangentes e ordenadas a partir de objetos mais simples e fáceis até os mais complexos e difíceis) e; d) regra da enumeração (enumerar e revisar minuciosamente as conclusões, garantindo que nada seja omitido e que haja coerência entre as conclusões).

    Obviamente, como nos alerta Koyré (2011), a obra deixada por Descartes está inserida dentro de uma tradição heterogênea de pensamento, comumente denominada de racionalismo, que tem uma longa história. A propósito, em um breve resumo a respeito da história da ciência, Nascimento (2006), descreve que a física mecanicista, como proposta por Newton, estabeleceu uma visão determinista para explicar diversos fenômenos do mundo real. A mecânica relativista também adotou um olhar determinístico. Já a mecânica quântica abriu uma vertente pela qual o acaso passou a ter papel ontológico no estabelecimento do comportamento dos objetos de estudo da física, tratando o acaso, contudo, como distribuições de probabilidade sobre grandes populações de objetos microscópicos, mas mantendo o determinismo no nível macroscópico. Assim, continua o autor, com o sucesso e prestígio do determinismo no âmbito da física, cuja proposta era estender e generalizar a causalidade física pelo acréscimo em particular da consideração das condições iniciais, a postura racionalista se estendeu para as outras ciências naturais e se estabeleceu nas ciências sociais, inclusive com o objetivo de explicar o comportamento humano.

    De todo modo, como lembra Losee (1998), nos parece evidente que, do reconhecimento da necessidade de modelos e abstrações na ciência à visão idealista de que o mundo não tem qualquer estrutura que lhe dê suporte, exceto a que lhe é dada pela mente humana, há um longo caminho. Uma evidente consequência do avanço da ciência é que, mesmo um racionalista, tem de aceitar que os fenômenos organizacionais são contingenciados material, social e cognitivamente. Em uma visão corroborada por Nascimento (2006), quando trata da epistemologia na administração, posso afirmar que não é mais consistente com a ciência atual uma ontologia que negue a realidade da prática, das representações mentais, ou melhor, das crenças, intenções, planos, objetivos e conceitos dos sujeitos no entendimento das organizações. Contudo, em uma visão de certo modo racionalista, entendo que é inescapável à prática científica a explicitação de critérios de atribuição da verdade para proposições descritivas, das coisas (objeto), de seus estados e das relações entre o estado e o objeto.

    O pesquisador em Administração, assim, deve ter o compromisso com a busca da verdade como um fim em si mesmo. Como afirmam Mendonza e Camargo Jr. (2016), em interessante e esclarecedora análise a respeito das implicações do pensamento cartesiano para a ciência, biomedicina e saúde coletiva, o pensamento cartesiano não deve ser visto como sinônimo de “mecanicista”, “determinista” e “reducionista”, dentre outras alcunhas empregadas em muitos casos de modo depreciativo. Descartes continua sendo considerado um dos fundadores da modernidade - dentre outros motivos, por sua ênfase na razão e no pensamento. Sua obra nos agracia com um arsenal teórico que pode nos auxiliar a dar conta dos problemas do tempo atual. A necessária aceitação de um realismo pluralista, e porque não, atualizado em bases construtivistas, também abre caminho para o descarte de um idealismo extremado, subjetivista.

Referências:

 ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; 1981.

DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

KOYRÉ, A. As origens da ciência moderna: uma nova interpretação. In KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2011.

LOSEE, John. Introdução histórica à filosofia da ciência. Lisboa, Portugal: Oxford University Press. 1998.

MENDONÇA, André L. de O.; CAMARGO Jr., Kenneth Rochel de. Os acertos de Descartes: implicações para a ciência, biomedicina e saúde coletiva. Cadernos De Saúde Pública, 32(5). 2016.

NASCIMENTO, Paulo Tromboni de Souza. O livre arbítrio epistemológico na administração. 2006, Anais. Rio de Janeiro: ANPAD, 2006.

NIINILUOTO, Ilkka, SINTONEN, Matti; WOLEŃSKI, Jan. Handbook of Epistemology. Netherlands: Springer Science & Business Media. 2004

A atividade da Ciência e seus dilemas

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Ana Neves

    O recente filme “Oppenheimer” evidencia que nós, como cientistas, podemos produzir ciência sem contemplar o que ela envolve. A prática do laboratório, da dissertação e publicação nos traz a realidade do dia-a-dia, mas não envolve um espectro mais amplo de questionar o que é de fato a Ciência, como funcionam suas teorias, avanços e desdobramentos.

    Contemplando o que a Ciência é, Kneller (1980) traz alguns conceitos importantes para a discussão. Primeiramente, o entendimento de que a Ciência tenta desvendar a ordem da natureza. Dentro dela, existem as tradições de pesquisa e teorias. A tradição é uma espécie de corrente que carrega pressupostos empreendidos por vários cientistas em suas pesquisas. Ela pode advir de uma grande teoria, ou, gerar novas teorias. 

    As teorias, por sua vez, tentam encontrar uma explicação completa para a natureza e “explica[m] o comportamento de certos fenômenos dentro do domínio postulando, pelo menos, alguns dos pressupostos da tradição e formulando novos pressupostos mais específicos que a própria teoria gerou” (KNELLER, 1980, p. 21). 

    Os conceitos abordados acima são exemplificados proficuamente pelo filme “Oppenheimer” atualmente nas bilheterias do mundo todo. O filme conta a trajetória do físico Julius Robert Oppenheimer na produção da bomba atômica que levaria os Estados Unidos a ganhar a Segunda Guerra Mundial. A expectativa de provar uma nova teoria versus o confronto dos dilemas advindos de como a Ciência pode ser usada para o bem e mal compõe o clímax que mantém os espectadores atentos às três horas ininterruptas da sua duração. 

Fonte: https://exame.com/pop/oppenheimer-quem-foi-o-cientista-que-criou-a-bomba-atomica/


    Nesse sentido, a longa-metragem introduz o conceito de tradição e teoria de pesquisa logo no início com o físico Oppenheimer deparando-se com as diferenças no entendimento da física nos Estados Unidos e na Europa. Este último continente, tem ênfase na pesquisa da física com base em novas teorias, como a de mecânica quântica. Indo para a Alemanha estudar por um período, Oppenheimer torna-se expoente em física e mecânica quântica e é convidado a inaugurar um instituto do governo nos Estados Unidos para lecionar.

    Após um período, o cientista é convidado para liderar o projeto Manhattan, que visa montar uma bomba com base nas teorias e experimentações de fissura nuclear do Urânio. A construção da bomba piloto dura mais de três anos e quando o primeiro teste é bem-sucedido, rapidamente o cenário do filme muda.

    A escolha do lançamento da bomba em Hiroshima e Nagasaki acontece de forma brusca e percebe-se que a autonomia que os cientistas antes tinham, acaba. Com o sucesso do experimento, o comando e a execução do projeto é passado para poucas mãos - um deles é o próprio presidente dos Estados Unidos. Estas mãos decidem o que fazer com o avanço científico que parece virar um pesadelo.

    Quando utilizo o termo pesadelo, quero enfatizar a virada de chave em que Oppenheimer passa a advogar contra a própria bomba, tornando-se uma figura política contra "sua descoberta". Pessoalmente, acredito que a dimensão política da Ciência dentro de si - os pesquisadores, alunos, revistas, universidades e sua influência, bem como da governança pública e discurso político para a população deveriam ser estudados em profundidade quando visamos o desenvolvimento global.

    Assim, com a história de Oppenheimer pode-se perceber o dilema moral e ético que o cientista vem a ter da sua ciência ao aprimorar uma tradição de pesquisa, criar e desenvolver novas teorias. Se a Ciência é conjetural (KNELLER, 1980) passo a crer que nossos dilemas atravessam a dimensão política da Ciência e não podemos compreender um sem o outro.

    Portanto, algumas lições são tiradas do filme. As teorias avançam velozmente dentro das tradições de pesquisa, onde nem sempre os pressupostos de teorias convergentes concordam. Oppenheimer depara-se com a realidade de linhas muito diferentes de pesquisa na física, escolhendo pressupostos e criando outros para sua argumentação.

    Em segundo lugar, novas teorias podem demorar para serem provadas, já que a Ciência está sempre em construção. No caso de Oppenheimer, vemos um avanço rápido encaminhado por um grupo de cientistas de ponta. Esta não é a regra. O mesmo filme mostra as observações de Oppenheimer sobre buracos negros e suas conversas com Einsten, por exemplo. A teoria da relatividade de Einsten para buracos negros junto ao avanço de outro cientista, Stephen Hawking, em 1974 foi confirmada apenas recentemente em 2019.

    E, por fim, de que o avanço e a propagação da Ciência perpassa por uma grande dimensão política. Seja a publicização do pesquisador para seus pares ou a eloquência com a qual se fala de um achado científico em um discurso político de uma figura pública. O que eu levo desse aprendizado? A vontade e a promessa de pesquisar mais a fundo essa dimensão.

Referências:

KNELLER, George Frederick. A ciência como atividade humana. Zahar, 1980. 

OPPENHEIMER. Direção: Christopher Nolan. Produção de Syncopy Inc. e Atlas Entertainment. Estados Unidos: Universal Studios, 2023


Ciência, epistemologia e fake news

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmia Larice Steffen Peters

    Ciência e epistemologia, duas palavras que - em um primeiro olhar - parecem fáceis de compreender, mas que requerem uma análise mais aprofundada quando se busca compreender a construção do conhecimento científico e do saber (Demo 1985; Japiassu, 1991; Tsoukas, 2005.) De forma breve, será apresentada uma discussão sobre os referidos termos considerando o contexto das fake news e seu advento no Brasil, sobretudo, a partir de 2018 (Mariani, 2018).

    Retoma-se então o questionamento ilustrado por Demo (1985): o que é ciência? A partir de 2018 o Brasil viu-se imerso em fake news (Mariani, 2018) e uma das consequências dessa imersão é que o questionamento do que é ciência saiu da academia e ganhou o vocabulário popular, estando presentes em longas e acalouradas discussões em grupos de mensagens e mídias sociais. Porém, ressalta-se que responder o que é ciência é uma forma de combater as próprias fake news que popularizam a questão. 

    Para ilustrar – em poucas palavras – a temática parte-se da definição de Demo (1985) sobre os limites da ciência, estando de um lado o senso comum e de outro a ideologia. Há uma clara distinção entre os termos, mas há a convicção de que sempre quando se fala em ciência serão encontrados, em maior ou menor grau, o senso comum e a ideologia.

    No caso em tela, referente às fake news, a ciência foi utilizada como roupagem para reforçar esteriótipos e pré-conceitos decorrentes de senso comum e a ideologia foi ancorada por discursos partidários com fortes posicionamentos políticos, chegando ao seu nível extremo: falsidade e mentira.

Fonte: https://pixabay.com/

    Uma possível análise do motivo pelo qual as fake news ganharam e ganham adesão, pode ser buscada em Chanlat (1996). Ao estudar sobre o indivíduo na organização, o autor afirma que “o desejo de tudo explicar através de um enfoque científico particular é fenômeno característico da sociedade moderna” (p. 26). Para além disso reforça ainda que o indivíduo é um ser espaço-temporal, ou seja, possui uma história que foi moldada com inúmeras particularidades decorrentes dos locais no qual se desenvolveu e com base nas experiências que adquiriu ao longo de sua jornada. 

    Considerar tal característica sobre os indivíduos pode ser um caminho para compreender a maior ou menor adesão a determinadas fake news por determinados grupos. Em algum local desse indivíduo – muitas vezes em seu inconsciente – elas encontram espaço e identificação naquilo que foi moldado temporalmente e está enraizado em sua vida.

    Frente ao exposto, cabe outro questionamento: considerando a necessidade da sociedade moderna em buscar a cientificidade em seus argumentos e que os indivíduos são construídos em um espaço-temporal, como a ciência pode auxiliar no combate a informações falsas?

    Primeiro, a ciência é um objeto construído. Isso significa dizer que ela coincide com a realidade estudada e é dependente do sujeito que a constrói: um sujeito inserido em um espaço-temporal no qual são encontrados senso comum e ideologias (Demo, 1985; Chanlat, 1996). Para compreendê-la, ademais do senso comum e da ideologia, Demo (1985) determina critérios internos e externos, os quais podem ser utilizados como formas de questionamento e combate às fake news. 

    Analisar fatos em um espaço-temporal construído por um sujeito e fazer a verificação do que é ciência pode ser feito através de análises relativas à coerência, consistência, originalidade e objetivação (critérios internos) e, intersubjetividade – na qual está a validação do fato em estudo pela comunidade científica – (critério externo).

    Outra possibilidade para compreensão da ciência e do fenômeno que envolve as fake news é a análise epistemológica. A análise epistemológica, de acordo com Tsoukas (2005), está ligada à competência daqueles que se preocupam com o conhecimento, estando diretamente relacionada com o estudo da ciência. Em um contexto organizacional, sua função para além de entender de como o fato em análise se faz presente é compreender de que forma as organizações se posicionam na arena pública ao reinvindicarem conhecimentos.

    Japiassu (1991) aponta que a epistemologia é flexível e interdisciplinar. Ela possui atuação para “estudar a gênese e a estrutura dos conhecimentos científicos (...) tentar pesquisar as leis reais desse conhecimento” (p.38) e estuda a “produção dos conhecimentos, tanto dos pontos de vista lógico, quanto dos pontos de vista lingüístico, sociológico, ideológico” (p. 38, 39). 

    Fazendo um paralelo com a análise de Chanlat (1996) sobre o indivíduo estar localizado em um espaço-temporal, Japiassu (1991) aponta que na epistemologia também há de se buscar entender a epistemologia psicológica, ou em outras palavras, a forma pela qual os processos simbólicos influenciam a ciência. 

    Cientistas e pesquisadores são sujeitos construídos e localizados no espaçotemporal, rodeados de símbolos, senso comum e ideologias. Sujeitos que fazem parte de organizações e que ao construir a ciência podem cair em armadilhas e truques que podem paralisá-los ou levá-los a discursos que não possuem coerência, consistência, originalidade e objetivação, e, não são validados pela comunidade científica. Ao buscar compreender determinado fato, cientificamente é preciso estar consciente e se voltar sempre a pergunta: o que e ciência?

Referências 

CHANLAT, J. F. Por uma Antropologia da Condição Humana nas Organizações. In: CHANLAT, J. F. (coord). 1996a. O Indivíduo na Organização: Dimensões Esquecidas, São Paulo: Editora Atlas, v. 1, p. 21-45. 

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985. 

JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. O que é a epistemologia? In: Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 15-39. 

MARIANI, BETHANIA. Discursividadeds prêt-à-porter, funcionamento de fake news e processos de identificação. Entremeios: Revista de Estudos do Discurso, v. 17, p. 1 - 16, jul - dez/2018. Disponível em: http://www.entremeios.inf.br/published/675.pdf. Acesso em: maio/2023 

TSOUKAS, H. Introduction In: TSOUKAS, H. Complex Knowledge: Studies in Organizational Epistemology. Oxford. Oxford University Press, 2005. p 1-9. Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=ptBR&lr=&id=h8gSDAAAQBAJ&oi=fnd&pg=PR9&dq=Epistemology+and+organization+studi es&ots=xyB6oCzsMx&sig=1hkQw2YnqAaVzrntaBj5fHITkAg&redir_esc=y#v=onepage&q=E pistemology%20and%20organization%20studies&f=false