O Wicked Problem “a desigualdade na oportunidade de aprendizagem” à luz do fato social de Émile Durkheim

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Maryane Cristina de Souza 

Segundo Durkheim (2007), à medida em que o indivíduo vai se desenvolvendo, partindo dos primeiros momentos da sua existência, ele é introduzido a ensinamentos coercitivos, com o propósito de ensiná-lo a conviver na coletividade. A inserção dos ensinamentos coletivos é conduzida pelos pais: insistindo a dormir em horários certos, a comer, a ter calma, a beber e outras condutas. Mas após um certo período, esse indivíduo, por meio da coerção social, precisa ter acesso à educação formal. 

Um estudo realizado pela organização da sociedade civil Todos Pela Educação no ano de 2021, relatou a grande deficiência que está sendo enfrentada na educação, entre elas, desigualdades profundas, arraigadas e históricas, falta de infraestrutura, de investimentos e de prioridade na educação. A partir do objeto de estudo, a desigualdade na oportunidade de aprendizagem, será brevemente justificada a questão como um Wicked Problem. Após o esclarecimento do problema abordado, em segundo momento será levado a problemática para o entendimento da obra “As regras do método sociológico” de Émile Durkheim, especificamente o segundo capítulo sobre “Fatos Sociais”. 

O Wicked Problem pertence a uma categoria de problemas que não apresenta limites compreensíveis, onde não é possível definir suas delimitações, por decorrência, não há como estabelecer um escopo eficaz para a sua resposta (RITTEL; WEBBER, 1973). O processo de enfrentamento desses problemas está na reestruturação constante da própria questão discutida. O fato social é “toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda toda a maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria, independentemente de suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 2007). O objetivo da educação é produzir o ser social (DURKHEIM, 2007). 

A educação permite que o indivíduo se desenvolva e aprenda a viver em sociedade a partir da sua moral vigente. Partindo desse pressuposto, o argumento que será defendido no presente paper é: o problema da desigualdade na oportunidade de aprendizagem à luz do fato social de Émile Durkheim.
Fonte: Blog-superinteressante 

Com as escolas fechadas, tendo em vista a pandemia de corona vírus (COVID-19), veio a intensificar as diferenças de oportunidades, distanciar direitos e reacender problemas sociais que já estavam sendo combatidos no Brasil. Com base no Anuário Brasileiro de Educação Básica (2021), as disfunções estruturais, sendo o acesso ao ensino, a evasão de estudantes e a baixa qualidade do sistema, aumentaram em uma proporção ainda não mensurável. A desigualdade na oportunidade de aprendizagem é considerada um Wicked Problem pois, não há limites tangíveis, nem mesmo uma resposta concisa capaz de resolver o problema social, não é possível definir delimitações e não há um escopo eficaz que possa solucionar o problema. Essa desigualdade vai comumente se reestruturando, a pandemia é um exemplo, o Wicked Problem já não é mais o mesmo enfrentado antes do isolamento social, é preciso novas reformulações das políticas públicas voltadas a essa questão. 

Um estudo publicado pela Unicef (2021), prevê o risco do Brasil retroceder duas décadas na introdução de meninos e meninas à educação. Para a organização Todos Pela Educação (2021), a ineficiência do sistema educacional é causada pela progressiva descontinuidade de políticas, que oscilam a cada novo governo, a educação é um processo que requer tempo, análise e considerações, formação continuada, planejamento, organização, entre outros. Desenvolver uma política pública de sucesso para a gestão voltada à desigualdade na oportunidade de aprendizagem não é uma tarefa simples, porque a questão abordada não é apenas um Wicked Problem, mas é ainda mais complexo quando considera a questão política envolvida. 

Os Wicked Problems por se tratar de problemas sociais, nunca são resolvidos, na melhor das hipóteses são enfrentados repetidamente. Para esses problemas, a partir da sua definição é possível encontrar respostas para o enfrentamento. Os Wicked Problems possuem as 10 propriedades a seguir (RITTEL; WEBBER, 1973): 

1. Não existe formulação definitiva de Wicked Problem
2. Wicked Problems não têm regras de finalização. 
3. As soluções para Wicked Problems não são verdadeiras ou falsas. 
4. Não há teste imediato e definitivo de uma solução para um Wicked Problem
5. Cada solução para um Wicked Problem é uma "operação única". 
6. Wicked Problem não têm um conjunto enumerável de soluções potenciais. 
7. Cada Wicked Problem é essencialmente único. 
8. Cada Wicked Problem pode ser considerado um sintoma de outro problema. 
9. A discrepância que representa um Wicked Problem pode ser explicada de inúmeras maneiras. 
10. O planejador não tem o direito de estar errado. 

Os autores Head e Alford (2013) trazem algumas estratégias para lidar com os Wicked Problems: o foco na colaboração, para que seja possível trazer diferentes enfrentamentos e diferentes pontos de vista; formas mais amplas de pensar sobre as variáveis; mais opções e conexões; novos modelos de liderança, incluindo a liderança adaptativa e colaborativa; e por último, mudanças nas estruturas (que inclui mudanças na gestão pública) e processos de gestão. Para se estruturar um Wicked Problem é necessário assimilar que não há critérios para se compreender suficientemente um problema, o planejador sempre pode fazer melhor. Também não há como aprender por tentativa e erro, cada tentativa conta de forma significativa, o enfrentamento realizado pode deixar rastros que não poderão ser desfeitos. Não há critérios na qual comprove que todas as soluções foram identificadas, sempre pode haver algo diferente (RITTEL; WEBBER, 1973). 

A pesquisa da PNAD (2019) publicada pela Unicef (2021), relata que algumas crianças foram entrevistadas sobre o motivo de não frequentarem a escola, os maiores resultados foram o desinteresse em estudar, trabalho ou procura por trabalho e gravidez. Segundo a Unicef, o dado relacionado ao desinteresse em estudar não é uma análise simples ou fácil, é preciso compreender por meio de uma investigação mais aprofundada o motivo pelo qual levou a esses jovens perderem o interesse em estudar. Segundo o Instituto Rui Barbosa (2021), aproximadamente 10 milhões de estudantes frequentam escolas com algum problema grave voltado à estrutura, como a falta de água e a falta de acesso à internet. Apesar dos estudos informarem algumas questões que apresentam motivos que se relacionam com a desigualdade na oportunidade de aprendizagem, pode haver muitas outras questões atreladas a esse problema, não há um conjunto enumerável de soluções em potencial, justamente pelas causas desses problemas não serem únicas. 

Há uma alta ligação entre a pobreza e o afastamento de crianças e adolescentes da escola, na pesquisa feita pelo IBGE através do PNAD (2019), cerca de 90,1% dos que estavam fora da escola possuíam uma renda familiar per capita menor que um salário-mínimo. Os autores Rittel e Webber (1973) afirmam, através das propriedades dos Wicked Problem, que esse tipo de problema pode ser considerado o sintoma de outro problema, assim, é possível afirmar (por meio da pesquisa do PNAD de 2019) que a desigualdade na oportunidade de aprendizagem está vinculada à questão da pobreza. Anterior a pandemia, os desafios que envolviam a educação já eram tremendos. Mas, no momento atual, se intensificaram excepcionalmente. No ponto de vista de Durkheim (2007) a educação é um fato social, a criança passa por ações coercitivas que a impõe a estudar. No decorrer do livro, Durkheim expõe que uma educação racional deveria reprovar tais procedimentos e deixar a criança proceder com toda a liberdade. Na contemporaneidade é possível considerar que tal argumento não corresponde às complexas dificuldades enfrentadas pela sociedade. 

A imagem abaixo ilustra a problemática da pobreza relacionada à problemática educacional, mostra também a desigualdade na oportunidade de aprendizagem como uma questão incluída na problemática educação. Todas as problemáticas são consideradas fatos sociais:
Fonte: Elaborado pela autora 

Na visão de Durkheim (2007), toda a educação consiste num esforço incessante com o objetivo de impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir, na qual ela não teria alcançado espontaneamente. Nesse sentido, apesar de Durkheim estar fazendo uma crítica a educação daquela época, o acesso à educação é de fato muito importante para a construção do ser no contexto coletivo. O fato social é toda maneira de fazer suscetível a exercer por meio do indivíduo uma coerção exterior, possuindo uma existência própria e sendo independente de suas manifestações individuais (DURKHEIM, 2007). Assim, os fatos sociais são exteriores, coercitivos e generalizados. 

Analisando a caracterização feita por Durkheim (2007) sobre fatos sociais, não há como deixar de reconhecer a natureza coercitiva do problema da desigualdade na oportunidade de aprendizagem. Além da coerção da própria educação, esse problema também tem a mesma natureza, pois a desigualdade na oportunidade de aprendizagem é um poder que se impõe a quem quer que seja. Mesmo em sociedades mais desenvolvidas, não há equivalência na aprendizagem, ela vai variar de acordo com as normas estabelecidas, a educação familiar e entre outros aspectos. Analisando em contexto mundial, a intensidade da coerção costuma ser menor em países mais desenvolvidos e maior em países menos desenvolvidos. Afinal, nos países em desenvolvimento a desigualdade é intensificada por outras adversidades, como a pobreza, por exemplo. 

Há também sociedades em que o conjunto de crenças e práticas transmitidas pelas gerações anteriores afeta a desigualdade na oportunidade de aprendizagem. Algumas regiões delimitam o acesso à educação a partir da segregação de gênero, impedindo mulheres de terem acesso à educação. A segunda caracterização definida por Durkheim (2007) é a exterioridade, o autor relata que os fenômenos sociais devem ser manuseados de forma desassociada dos sujeitos conscientes que os concebem, segundo o autor, é preciso estudá-los de fora, como coisas exteriores. 

Não é possível afirmar que a problemática abordada pode ser estudada separada do sujeito, o objeto poderá ser analisado com a máxima imparcialidade na investigação dos fatos, mas o julgamento em questão é a total imparcialidade. Conforme Pedro Demo, “todo cientista, ao fazer ciência, saberá que não faz a ciência, mas oferece apenas um enfoque, um ponto de vista, uma interpretação, já que ele próprio não passa de um cientista”, a demarcação científica mais importante é a discussão crítica (DEMO, 1995). Em relação a sua generalização, o problema da oportunidade de aprendizagem existe fora das consciências individuais, não é algo que pertence ao indivíduo, mas sim, é fruto da sociedade. Como relatado, está presente de forma difundida em diversos países e culturas.
Fonte: George Goodwin Killburne 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A pandemia de COVID-19 vai deixar um grande impacto no que diz respeito à educação de crianças e jovens com maior vulnerabilidade. Para que a situação seja combatida de forma positiva é preciso investir em políticas públicas, desenvolvendo práticas coletivas voltadas ao enfrentamento do problema. É preciso que os gestores caracterizem melhor a problemática, sempre buscando se atualizar em relação à sociedade. 

Segundo Durkheim (2007), “quando se observam os fatos tais como são e tais como sempre foram, solta aos olhos que toda a educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente”. Essa estratégia que acompanha o processo de socialização, por meio da atribuição de valores e sentimentos, correspondendo às necessidades coletivas, está ligada também ao que Head e Alford (2013) declararam como estratégia para lidar com os Wicked Problems. É a partir da coletividade que se lida com a desigualdade na oportunidade de aprendizagem e, também, é responsabilidade da educação “produzir o ser social”, gerando assim, um vínculo de dependência entre tais análises. 

REFERÊNCIAS

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985. 
DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007 
HEAD, Brian; ALFORD, John. Wicked Problems: Implications for Public Policy and Management. Administration & Society, 2013. 
IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNAD: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-do micilios-continua-mensal.html?=&t=o-que-e 
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RITTEL, H. W. J.;WEBBER, M. M. Dilemmas in a general theory of planning. Policy Sciences, 155-169, 1973. 
TODOS PELA EDUCAÇÃO. Anuário Brasileiro da Educação Básica. Disponível em: https://www.moderna .com.br/anuario-educacao-basica/2021/a-educacao-brasileira-em-2021.html UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância. Relatório do Cenário da Exclusão Escolar no Brasil. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/relatorios/cenario-da-exclusao-escolar-no-brasil. 2021

Em busca de uma racionalidade substantiva e reflexiva no processo de ensino-aprendizagem em Administração

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico de doutorado Samayk Henrique Ferro da Silva

O homem não deve ser um pensador inconsciente e, para tanto, precisa ter a capacidade para não aceitar, de forma automática, as opiniões alheias por ser dotado de senso crítico. O homem, tem a consciência de que se vive, hoje em dia, em uma época em que o processo de ensino-aprendizagem possui contornos diferentes do que era praticado no passado. Particularmente, no campo da Administração, enquanto ciência social aplicada, as relações do processo de ensino-aprendizagem têm sido caracterizadas por uma visão estreita, mecânica, reprodutora e instrumental, dificultando o exercício dos elementos da racionalidade substantiva, tais como: a) auto realização; b) entendimento; c) julgamento ético; d) autenticidade: integridade, honestidade e franqueza dos indivíduos nas interações; e) valores emancipatórios, dentre outros (RAMOS, 1983; 1989; SERVA, 1993; 1997; BERTERO, 2007).

A preocupação excessiva dos docentes e líderes de instituições em atender o mercado, ao invés de formar para transformar as relações sociais, produtivas e econômicas é reflexo das diferentes ontologias (realista, idealista e intersubjetiva), epistemologias (objetiva, subjetiva e construtivista), paradigmas (positivismo, funcionalista, interpretativo, humanista e estruturalista radical e da complexidade) e de seus impactos nas abordagens pedagógicas e no processo de ensino e aprendizagem. Além disso, as prescrições impostas pela sociedade centrada no mercado levam o homem a reprimir seus pensamentos, assimilando em sua essência, segundo Ramos (1989), a busca da coerência entre meios e fins para maximizar os ganhos econômicos da sociedade capitalista em detrimento do entendimento do ser humano.

A conduta comportamentalista na visão de Batistela e Rotta (2014) surgiu como consequência de um esforço histórico sem precedentes para modelar uma ordem social de acordo com os critérios de economicidade, transformando o homem numa criatura que se comporta segundo os imperativos impostos pelas organizações e da sociedade. Como diz Fromm (1977, p. 35) “tem-se a impressão de que a própria essência de ser é ter, de que se alguém nada tem, não é”. 

Para Carraher (1999, p. 69) “O indivíduo com senso crítico encontrará mais erros ou razões para dúvida em argumentos do que aquele que não tende a refletir sobre suas próprias comunicações e as dos outros”. Além da formação de pensadores criativos, a educação tem como objetivo segundo Piaget (1970, p. 182), “formar mentes que possam ser críticas, que possam analisar, ao invés de aceitar tudo que lhes é oferecido [...] Temos que ser capazes de resistir individualmente, de criticar, de distinguir entre o que foi provado e o que não foi”.

Diante disto, este pequeno ensaio tem por objetivo discutir a racionalidade substantiva e reflexiva frente aos desafios do processo de ensino-aprendizagem no curso de Administração. Segundo Batistela e Rotta (2014), houve uma ofuscação do senso pessoal de critérios adequados de modo geral à conduta humana, onde a principal preocupação do ser humano é somente com o que é produzido e não aquilo que desenvolvemos, ou seja, a instrumentalidade tornou-se uma característica básica das sociedades industriais contemporâneas. Além disso, é nítido neste modelo de sociedade a preocupação mercadológica e a indução do ser humano apenas a condição de fabricação de objetos que não são necessários para sua sobrevivência.

Racionalidade Substantiva e Reflexiva

O termo racionalidade percorre todo o pensamento científico, podendo ser retratado desde o pensamento grego antigo até os dias atuais. Para Vasconcellos (2005), o pensamento científico pode ser distinguindo em: (1) pensamento grego; (2) pensamento do homem medieval; e (3) pensamento do homem moderno. A descoberta da razão e/ou logos pelos primeiros gregos (por exemplo: Sócrates, Aristóteles, Platão, Thales, Anaximandro e Anaxímenes) serviu de instrumento de conhecimento para a descoberta dos fatos e coisas do mundo, ou seja, centraram a atenção na natureza, elaborando diversas concepções de cosmologia (procuraram explicar racionalmente a formação do cosmos).

Na idade Média o homem procurava buscar o conhecimento através de quadros filosóficos baseados em religião mais, especificamente, nas sagradas escrituras (por exemplo: Santo Agostinho e São Thomás de Aquino). Na Idade Moderna é enfatizada a separação entre o que é conhecimento científico e o que é conhecimento filosófico. Esta “unidade ciência-filosófica” separada através do pensamento moderno, pode ser representada em duas formas de racionalidade, a matemática e a lógica. A Matemática é, desta forma, um dos mais antigos dos padrões de logos surgido com os gregos antigos (Pitágoras, Platão, Arquimedes e Euclides) (NASCIMENTO JUNIOR, 2001). No conhecimento moderno o raciocínio matemático/lógico sofreu uma alteração, pois hoje o que é levado em consideração é a observação controlada e sistemática, sem ter nenhuma forma de abstração sobre objeto. Em seguida, temos a racionalidade lógica como um padrão adotado por um filósofo, também, da Grécia antiga chamado de Aristóteles (VASCONCELLOS, 2005). O conceito de racionalidade é um elemento central, principalmente constitutivo no conceito de ação social. O comportamento racional não fica desprovido de ‘sentido’, já que para Fernandes (2008), um indivíduo ou uma sociedade só será capaz de atribuir um sentido em suas ações quando suas racionalidades atingirem seu sentido lato. 

A racionalidade depende da matriz cultural e civilizacional que rodeia uma ou outra sociedade (SOUZA, 2006). O primeiro conceito sobre racionalidade surgiu com as ideias de Weber (1999), numa tentativa de definir o racional através das ações que os indivíduos praticam em sociedade, ou seja, a racional no tocante aos fins, a racional no tocante aos valores, a afetiva e a tradicional. A ação social afetiva e tradicional são respectivamente determinadas por estados emotivos ou sentimentais e por costumes, sendo nula ou escassa a avaliação sistemática de suas consequências. A ação racional no tocante a valores é portadora de consciência sistemática de sua intencionalidade, visto que é ditada pelo mérito intrínseco do valor ou dos valores que a inspiram, bem como é indiferente aos seus resultados. É conduta, por assim dizer, heroica ou polêmica, que testemunha fé ou crença num valor ético, religioso, estético, ou de outra natureza, e sua racionalidade decorre apenas de que é orientada por um critério transcendente. A ação racional no tocante a fins é sistemática, consciente, calculadas, atenta ao imperativo de adequar condições e meios a fins deliberadamente elegidos. A razão se tornou, por excelência, segundo Ramos (1983, p. 38) um cálculo utilitário de consequências, expressa na matematização do mundo, onde a ideologia do progresso e do desenvolvimento não trouxeram para os indivíduos a autonomia e as liberdades esperadas para o exercício da substantividade.

Mannheim (1962) argumenta que a industrialização desenvolveu um tipo de racionalidade funcional, exercendo tamanha influência no que tange a capacidade crítica do indivíduo em detrimento da racionalidade substantiva. A racionalidade funcional “se refere às condutas que têm como objetivo atingir uma determinada meta e que tendem a solapar as qualificações éticas e as faculdades críticas do indivíduo, na proporção do desenvolvimento da industrialização, fazendo com que este desista da sua própria autonomia e interpretação dos acontecimentos, rendendo-se ao que é oferecido pelos outros” (CANÇADO; CARVALHO; PEREIRA, 2011, p. 7-8). 

O indivíduo deixa de exercer o ato de pensar no mundo moderno, segundo Fernandes (2008), por gastar parte de sua vida produzindo coisas, sem entender a utilidade e o significado da atividade realizada. Barreto, Thompson, Thompson et al. (2011) comentam que a racionalidade instrumental está centrada no mercado, prevalecendo o capital sobre a vida. Serva (1997, p. 22-23) toma por base os fundamentos de Ramos (1989) e de Habermas (1999), argumentando que a ação racional instrumental está baseada no cálculo e orientada para o alcance de objetivos operacionais ligados a interesses econômicos ou de poder social, através da maximização dos recursos disponíveis, sendo caracterizada pelos seguintes elementos: a) cálculo: projeção utilitária das consequências dos atos humanos; b) fins: metas de natureza técnica, econômica ou política (aumento de poder); c) maximização dos recursos: busca da eficiência e da eficácia máximas, sem questionamento ético, no tratamento de recursos disponíveis, quer sejam humanos, materiais, financeiros, técnicos, energéticos ou ainda, de tempo; d) êxito/resultados: o alcance, em si mesmo, de padrões, níveis, estágios, situações, que são considerados como vitoriosos face a processos competitivos numa sociedade capitalista; e) desempenho: performance individual elevada na realização de atividades, centrada na utilidade; f) utilidade: dimensão econômica considerada na base das interações como um valor generalizado; g) rentabilidade: medida de retomo econômico dos êxitos e dos resultados esperados; h) estratégia interpessoal: aqui entendida como influência planejada sobre outrem, a partir da antecipação das reações prováveis desse outrem a determinados estímulos e ações, visando atingir seus pontos fracos.

O predomínio da razão instrumental nas organizações, segundo Ramos (1981) cria uma sociedade centrada no mercado, e, tendo o mercado como centro de todas as ações, tira do homem os espaços que lhe garantem segurança, qualidade de vida e interação social. Portanto, a razão instrumental procura atender às necessidades das organizações, deixando de lado os valores, habilidades e emoções de cada indivíduo. A racionalidade instrumental impõe regras para o funcionamento de toda a sociedade, além de definir como os indivíduos devem se posicionar diante dela. “Na civilização gerida pela racionalidade instrumental, o indivíduo precisa ser conduzido à crença de que se não obedecer a certas regras estabelecidas de cima para baixo jamais conseguirá viver em harmonia com a sociedade” (LIMA; HOPFER; LIMA, 2003, p. 11).

A racionalidade substantiva, neste sentido, permite ao indivíduo conduzir sua vida pessoal para a autorrealização e para a satisfação social, pois as ações humanas devem ser direcionadas por critérios humanos e não por critérios instrumentais. Os limites entre a organização formal e os demais tipos de microssistemas sociais devem ser claros, permitindo o desenvolvimento do homem, tanto individualmente como coletivamente. A ação racional substantiva baseada na autorrealização, no entendimento, no julgamento ético, nos valores emancipatórios e na autonomia, constitui, na verdade, ações voltadas às práticas de mudança social (RAMOS, 1989). Isto porque o homem é portador da razão substantiva. Assim, “pelo exercício da razão substantiva, e vivendo de acordo com os imperativos éticos dessa razão, o homem transcende a condição de ser puramente natural e socialmente determinado, e se transforma num ator político” (RAMOS, 1983, p. 44).

Serva (1997, p. 22-23), complementa o assunto, destacando os elementos da racionalidade substantiva: a) auto realização: processos de concretização do potencial inato do indivíduo, complementados pela satisfação; b) entendimento: ações pelas quais se estabelecem acordos e consensos racionais, mediadas pela comunicação livre, e que coordenam atividades comuns sob a égide da responsabilidade e satisfação sociais; c) julgamento ético: deliberação baseada em juízos de valor (bom, mau, verdadeiro, falso, certo, errado etc.), que se processa através do debate racional sobre as pretensões de validez emitidas pelos indivíduos nas interações; d) autenticidade: integridade, honestidade e franqueza dos indivíduos nas interações; e) valores emancipatórios: aqui se destacam os valores de mudança e aperfeiçoamento do social nas direções do bem-estar coletivo, da  solidariedade, do respeito à individualidade, da liberdade e do comprometimento, presentes nos indivíduos e no contexto normativo do grupo; f) autonomia: condição plena dos indivíduos para poderem agir e expressarem-se livremente nas interações. 

Habermas (1999), por sua vez, considera a racionalidade como uma proposta de explicação das possibilidades de ação racional na sociedade industrial contemporânea, com vistas à emancipação do homem ante aos constrangimentos impostos pela sociedade. Propõe o conceito de racionalidade comunicativa, de ações dialógicas voltadas para o entendimento, caracterizada por uma razão não inteiramente direcionada ao êxito; ou seja, o mais importante é garantir a legitimidade da ação social por meio da participação de todos os envolvidos no processo decisório. A racionalidade comunicativa, baseada na dialogicidade representa uma alterativa de aproximação das racionalidades instrumental e substantiva, tendo em vista eliminar ações autoritárias, impondo a mudança de paradigma “da ação instrumental para a ação comunicativa, da subjetividade para a intersubjetividade, da razão monológica para a razão dialógica” (TENÓRIO, 1993). Na ação comunicativa, os indivíduos não estão orientados para a busca do êxito individual e, sim, por atos de entendimento interpessoal. Os indivíduos procuram buscar a solução através do debate, da argumentação e da permeabilidade acerca do ponto de vista dos outros. O debate e a argumentação são incentivados em ambientes de ensino-aprendizagem que valorizem o agir e o pensar de forma interdisciplinar e transdisciplinar, tanto na construção como na reconstrução dos saberes.

                                            Fonte: Freepik

Ensino-aprendizagem

No entender de Freire e Faundez (1985) o ato de ensinar não equivale a apenas transferir conhecimento, mas significa criar as possibilidades para a produção ou a construção desse conhecimento. Neste processo de ensinar, quem ensina aprende no ato de ensinar e quem aprende ensina ao aprender. O docente, como profissional não pode ser ingênuo ao ponto de pensar que sabe tudo, e os seus alunos não sabem nada, e que não há o que aprender com eles, criando uma mão única de aprendizagem. Freire (2009, p. 23), alerta que: “Quem forma se forma e reforma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado [...] Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender [...] Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa”.

As diferentes abordagens de ensino-aprendizagem são fundamentadas por múltiplas racionalidades, desde a instrumental, organizacional, política e substantiva, por exemplo, além de refletirem a estrutura, estratégia e valores da instituição. Os autores por acreditarem que múltiplas racionalidades permeiam as ações do dia a dia, defendem a adoção de uma abordagem integrativa das diversas racionalidades na construção de ambientes de aprendizagem que venham contribuir no desenvolvimento da consciência crítica articulada a outros recursos que possibilitem constituir competências organizacionais que favoreçam a formação integral do indivíduo.

Os mais diferentes problemas da Educação são decorrentes das questões ontológicas, epistemológicas e paradigmáticas fundamentadas numa racionalidade característica de um certo momento histórico, refletidas nas abordagens pedagógicas e nas práticas correspondentes. Os autores acreditam na existência de um diálogo entre modelo de ciência, as teorias de aprendizagem e as atividades desenvolvidas, já que toda formulação teórica, segundo Moraes (2003) evidencia um paradigma do qual decorre todo um sistema de valores que influencia não apenas o processo de construção do conhecimento, mas também a maneira de ser, de fazer e de viver/conviver do professor, aluno e de outros atores envolvidos no processo educativo.

A concepção reflexiva difundida por Schön (2000) procura superar a relação linear e mecânica entre o conhecimento técnico-científico e a prática de sala de aula. O autor distingue o conhecer na ação (saber fazer), da reflexão na ação (processos de pensamento realizados no decorrer da ação) e da reflexão sobre a ação e sobre a reflexão na ação (processo de construção do pensamento que ocorre, retrospectivamente, sobre uma situação problemática e sobre a reflexão na ação produzidas pelo profissional). A prática é valorizada na formação dos profissionais: uma prática refletida que lhes possibilite responder a situações novas, nas situações de incerteza e indefinição (DEWEY, 1979; ALARCÃO, 2000; SCHÖN, 2000). Sabe-se que o ser humano por ser racional e capaz de um pensamento abstrato e com estruturas cognitivas que são adaptadas, re-modeladas, construídas e reconstruídas a partir da interação com a realidade social, podendo tornar-se reflexivo; quando reflete, pensa e critica sua prática, seu próprio fazer.

Considerações finais

Este pequeno ensaio teve como objetivo discutir a racionalidade substantiva e reflexiva frente aos desafios do processo de ensino-aprendizagem no curso de Administração. É importante, compreendermos que a discussão acerca da formação do Administrador busca nos moldes atuais apenas a instrumentalidade enquanto ferramenta mercadológica, mas sabemos que durante seu percurso é possível realçar a sua relevância e importância durante o processo de formação acadêmica. O processo de ensino-aprendizagem, dentro de um contexto social mais amplo revela que a aprendizagem acontece de diferentes formas e por meio da utilização de recursos diversificados.

Um fator que pode-se destacar é a distância estabelecida pelo professor com o aluno observada nos ambientes de ensino aprendizagem que valorizam os pressupostos do paradigma tradicional, tem dificultado o desenvolvimento do “pensar substantivo”, já que este pensar é atrofiado pela instrumentalidade das ações. O domínio da instrumentalidade nas ações pedagógicas tem contribuído para o “esquecimento” dos preceitos na dimensão substantiva, assim como do pensar “crítico”, tornando quase um sonho o alcance da formação cidadã. O desenvolvimento da racionalidade instrumental tem se firmado na industrialização, submetendo o homem a critérios funcionais, antes que substanciais, de entendimento e compreensão. Nesse tipo de racionalidade não é questionada a qualidade das ações dos docentes, pois o que interessa é o alcance dos fins preestabelecidos e não o conteúdo e a qualidade das ações em questão.

De modo geral, o ensaio traz um tema reflexivo e que nos faz perceber como a mudança de entendimento e de concepção acerca do processo de ensino-aprendizagem leva tempo, porque o conceito de ciência dominante está fundamentado na racionalidade, influenciando a maneira como o professor e aluno percebem o mundo (ontologia), e quando um conhecimento pode ser julgado científico ou não, a partir dos processos utilizados para a sua geração (epistemologia).

Referências bibliográficas

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