Da Sociologia do Conhecimento à Sociologia da Ciência: A ciência e a disputa por autoridade científica.


Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Guilherme Dos Santos Murara

     Thomas Khun (1987) foi um dos primeiros autores a colocar a ciência no mundo das pessoas, ou seja, a “desnaturaliza-lá”. Para o autor é necessário conhecer a comunidade científica, seu funcionamento, sua intersubjetividade. A partir disso, outros autores abordaram sobre a influência política, econômica e de outros fatores na ciência. A ciência deixa de ser algo intocável, para ser, como ressalta Latour (1994), uma coisa, um híbrido passível de ser estudado e influenciado por outros elementos. Demo (1985) expõe que um elemento que influencia na ciência é o posicionamento político. Bourdieu (2013) defende que o campo científico é um espaço de disputas e lutas em função de monopólios de autoridade científica e de competência científica. O presente short paper tem como objetivo identificar a ciência como campo de estudo a ser explorado e abordar a disputa por autoridade científica, para isso pontuará as contribuições de Robert Merton, David Bloor e de Pierre Bourdieu na Sociologia do Conhecimento e da Ciência. 
     Para iniciar este estudo, é necessário abordar o trabalho de Merton (2013), que explana sobre a ciência com uma perspectiva sociológica, e traça uma relação entre ciência e sociedade. Para o autor, os cientistas passaram a ver a si mesmos como independentes da sociedade, e a ciência como um empreendimento que valida a si mesma. O autor expõe que a ciência se desenvolve em variadas estruturas sociais, porém algumas oferecem um contexto institucional específico que permite um desenvolvimento mais completo. Dessa forma, o ambiente institucional influencia na ciência, visto que o ethos da mesma é impactado por poderes políticos, econômicos e religiosos. Este ethos seria composto por quatro conjuntos imperativos institucionais: 1) o universalismo; 2) o comunismo; 3) o desinteresse; 4) o ceticismo organizado. Conclui que em sociedades totalitárias, o antirracionalismo e a centralização do controle institucional sevem para limitar o âmbito da atividade científica (MERTON, 2013).
     Como um contraponto a esta visão, Bloor (2009) traz o empirismo para o estudo da ciência. Conforme o autor: “Todo conhecimento, ainda que se encontre nas ciências empíricas [...] deve ser tratado como material para investigação”. (BLOOR, 2009, p.15). O autor baseou seu ponto no estudo de Durkheim, em que mostrava como o sociólogo deveria adentrar sobre uma forma de conhecimento e, também, como estudar o conhecimento científico. A partir disso, apresenta o “Programa forte”, como uma forma para analisar o conhecimento. A sociologia do conhecimento deveria aderir a quatro princípios: causalidade, imparcialidade, simetria e reflexão.
     Por causalidade, o autor expõe que a ciência deve ser interessada nas questões e condições que ocasionam as crenças e os conhecimentos. No tocante a imparcialidade, é apresentado como um respeito à verdade e à falsidade, à racionalidade e irracionalidade, ou seja, explicar ambos os lados da dicotomia. Já por simetria, o autor aborda que é necessário explicar as crenças e conhecimentos verdadeiros e, também, os falsos. Finalmente, propõe a reflexão no sentido de que a explicação deve ser aplicada também à sociologia, já que se não tivesse este princípio ela mesma estaria sujeita a refutação de suas teorias. O autor defende que a sociologia do conhecimento funciona exatamente do mesmo modo como em qualquer outra ciência. Outro autor que traz uma base para a Sociologia da Ciência é Bourdieu (2013). O autor aborda a ciência sob uma perspectiva de luta de interesses em busca por monopólios e autoridade. Para ele:

O campo científico é o lugar de uma luta mais ou menos
 desigual entre agentes desigualmente dotados de capital específico e, 
portanto, desigualmente capazes de se apropriar do produto do trabalho
 científico que o conjunto dos concorrentes produz mediante sua 
colaboração objetiva ao  colocarem em ação o conjunto dos meios disponíveis 
de produção científica (BOURDIEU, 2013, p.126)

     Para ele, o campo científico é um sistema dotado de relações objetivas entre posições adquiridas em lutas anteriores. Diante disso, as forças mais ou menos desiguais seguem a estrutura da distribuição do capital no campo, e assim, tem-se os dominantes em posições mais altas na estrutura de distribuição de capital científico e os dominados que tendem a tentar subverter esta ordem. Neste campo de lutas, o que está em jogo é o monopólio da autoridade científica. Dessa forma, o campo científico é dotado de uma estrutura com hierarquias baseadas no capital social e simbólico.
     Para exemplificar a discussão sobre a produção da ciência tendo como base o posicionamento de Bourdieu, é possível fazer uma relação com as pessoas que querem ingressar em uma Universidade e ter um bom emprego. Um jovem estudante para ingressar em uma universidade conceituada deve estudar em uma boa escola, ter bons relacionamentos com professores, visto que esses podem dar cartas de recomendação. Se considerarmos hipoteticamente dois jovens que estudam em uma mesma escola, um de classe alta, X, e outro de classe baixa, Y. O jovem X busca boas relações na escola com professores, traz de casa muitos conhecimentos obtidos com sua família, esteve três vezes fora de seu país. Já o jovem Y é filho de imigrantes e não esteve fora de seu país. Ao passo em que o primeiro jovem traz de casa conhecimentos e vivências, o segundo jovem pode acessá-los por meio de livros. Isso não representa a mesma coisa. Enquanto o aluno X aprendeu a falar, se comportar em casa. O jovem Y não teve a mesma base em sua família de imigrantes de classe baixa. Enquanto o primeiro conheceu a o arco do triunfo pessoalmente e entendeu onde está localizado e o que representa para a cidade de Paris, o segundo a viu a foto em um livro. Por mais que os dois sejam submetidos ao mesmo estudo na escola, carregam consigo capital cultural diverso. Assim, o jovem X fala com autoridade de determinados assuntos, como por exemplo, da cidade de Paris, se comparado ao outro jovem.
     Se realizar uma analogia com a ciência, um pesquisador de uma Universidade da Ivy League ou da Universidade de Oxford, possivelmente, possuirá maior prestígio e autoridade no campo científico do que um pesquisador de uma Universidade da América Latina. Isso porque a própria produção da ciência está sujeita as mesmas questões que a sociedade. A autoridade científica de um pesquisador de uma renomada instituição é uma espécie de capital, um capital científico, que inclusive pode ser transmitido. Para Bourdieu (2013) se tornará dominante quem impor uma definição de ciência, em outras palavras, quem obter maior capital científico. E essa relação de dominação no campo científico leva a outro ponto que é a questão da presença dos concorrentes.

Num campo científico fortemente autônomo, um produtor particular só pode esperar o reconhecimento do valor de seus produtos (reputação, prestígio, autoridade, competência) dos outros produtores que, sendo também seus concorrentes são os menos inclinados a reconhece-lo sem discussão ou exame. (BOURDIEU, 2013, p. 117).

     Além dos concorrentes, é possível a busca por autoridades externas, que para o autor, pode atrair descrédito para o pesquisador, já que demonstra fraqueza de sua autoridade científica. Esta é algo que pode ser acumulado, e inclusive tende a favorecer a aquisição de capital suplementar. Assim, uma carreira de pesquisador em uma instituição renomada pode auxiliar em um processo contínuo de acumulação, visto que o capital inicial representado pelo título escolar tem um papel determinante no reconhecimento. Na analogia abordada acima, a questão cultural e de classe social tem esse papel, demonstra uma hierarquia na sociedade.
     No Brasil é possível destacar a busca pelo reconhecimento por meio da avaliação das revistas e periódicos. Os pesquisadores ficam reféns dos conceitos para demonstrar que possuem capital científico. Dessa forma, um pesquisador que publica em uma revista com conceito A1 possui mais prestígio e mais autoridade científica do que um pesquisador que publicou em outra, B3, por exemplo. 
     Com base no exposto, os autores supracitados pontuam que a ciência é um campo para estudo também. O campo científico é dotado de lutas e embates em busca de autoridade, de capital científico. Então, a produção da ciência possui relação com poder, política, classe social, ideologia já que todas influenciam na formação do capital científico. A busca pelo monopólio da autoridade científica é o que está em luta neste campo, então estar em uma posição favorável com capital científico acumulado e reconhecimento é a busca dos pesquisadores, seja, então, tentando ingressar em universidades renomadas ou, no caso do Brasil, buscando publicações em revistas bem avaliadas. 


Referências.

BLOOR, D. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: Editora Unesp, 2009. Introdução.
BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2013.
DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
KHUN, T. Posfácio. In : KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987, p.217-257
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
MERTON, R. K. A ciência e a estrutura social democrática. In: MERTON, R. K. Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013.

Empreendedorismo nas Escolas: o que se pretende ensinar e o papel da extensão universitária no desenvolvimento de um pensamento complexo sobre o tema

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Doutorado Eduardo Janicsek Jara.

     Atualmente está em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei 772/2015, que pretende incluir o tema do empreendedorismo no currículo da educação básica (BRASIL, 2015). No contexto local, em Florianópolis, o Projeto de Lei Municipal nº 17.023/2017 em tramitação na Câmara de Vereadores, de autoria do Vereador Miltinho (DEM), dispõe sobre a inclusão de conteúdo sobre empreendedorismo nas disciplinas dos currículos das escolas municipais. As universidades, em suas ações de extensão universitária, podem contribuir para a discussão do tema, aprofundando os debates e compreensões sobre o assunto.
     A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, lei nº 9394/96, foi alterada pela lei 13.174/2015, que incluiu o inciso VIII no artigo 43, ampliando as finalidades do Ensino Superior, destacando como um dos objetivos a serem alcançados:

  VIII - atuar em favor da universalização e do aprimoramento da educação
básica, mediante a formação e a capacitação de profissionais, a realização de
 pesquisas pedagógicas e o desenvolvimento de atividades de extensão que
aproximem  os dois níveis escolares (BRASIL, 1996). 

     Neste incremento de objetivos a serem alcançados, explicita-se o dever de contribuir para o desenvolvimento da Educação Básica, a partir de atividades de extensão. Neste contexto, o Programa

de Extensão Universitária Esag Kids, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), vem desenvolvendo atividades relacionadas ao tema empreendedorismo, simultaneamente com questões de inovação, educação fiscal, desenvolvimento sustentável, planejamento, educação financeira, dentre tantos outros aspectos. As ações Esag Kids buscam evidenciar alternativas distintas de uma abordagem tradicional baseada na fixação de conceitos e teorias. Poderíamos até falar de um tipo de revolução no método de ensino e aprendizagem, pois uma revolução é “uma espécie de mudança envolvendo um certo tipo de reconstrução dos compromissos do grupo. Mas não necessita ser uma grande mudança, nem precisa parecer revolucionária” (KUHN, 1987, p.225), pois é a partir de pequenas transformações que poderemos alterar um cenário já estabelecido.
   Faz-se importante compreender, dentre o amplo espectro que circunscreve o tema empreendedorismo, quais dimensões poderiam ser melhor trabalhadas com crianças do Ensino Fundamental e, por outro lado, melhor compreender o que versam as leis no que diz respeito aos objetivos esperados e conteúdos relacionados. Poderemos encontrar diferentes vertentes de investigação em relação ao tema empreendedorismo nas escolas, pois somos dotados de “capacidade de identificar esses diversos pontos de vista em relação aos quais podemos representar e interpretar os fenômenos que encontramos na ação” (LE MOIGNE, 1983, p.121). Evidencia-se, portanto, que há diferentes escolas nas ciências que abordam o mesmo objeto de investigação sob pontos de vista incompatíveis (KUHN, 1987), o que fica nítido quando o tema é Ensino de Empreendedorismo nas escolas.
      As características peculiares de uma infância líquida, em conflito com abordagens que visam estritamente o mundo do trabalho, podem inviabilizar tentativas de fomentar o caráter de realização, proatividade, resiliência e criatividade, relacionadas diretamente com uma atitude empreendedora. As ações do Programa de Extensão Universitária ESAG Kids da UDESC busca evidenciar formas de abordar o tema empreendedorismo nas escolas, relacionando-o com conceitos já referenciados na literatura. Outrossim, respeita-se o caráter lúdico, essencial para tratar do tema com o publico infantil, desenvolvendo competências para a formação de um cidadão crítico, criativo, com culto ao conhecimento e capacidade de realização, compreendendo que o objeto do conhecimento é a fenomenologia e não a realidade ontológica em si.
Crianças na capacitação doo programa ESAG Kids
     Percebe-se entre os estudiosos e entusiastas do tema empreendedorismo nas escolas um paradigma emergente. Ao compreendermos um paradigma como “aquilo que os membros de uma comunidade partilham, e inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma” (KUHN, 1987, p.219), podemos afirmar que pesquisadores que refletem sobre possíveis abordagens entram em conflito quando o assunto é a forma de trabalho, ou até mesmo a compreensão de alguns de que este tema deva ser abolido da pauta nas escolas. Empreendedorismo não é apenas um conjunto de técnicas que fará com que o indivíduo comercialize ideias e ingresse de maneira mais fácil no mercado de trabalho. Tampouco é o acúmulo de saberes teorizados que destinam-se exclusivamente à abertura de novos negócios comerciais. Compreender o empreendedorismo como um amontoado de conceitos poderia encaixar-se em uma espécie de patologia da razão, “que encerra o real num sistema de ideias coerente, mas parcial e unilateral e que não sabe que uma parte do real é irracionalizável” (MORIN, 2003, p.15), pois “a ciência é muito mais ‘fugidia’ e ‘irracional’ do que sua imagem metodológica” (FEYRABEND, 1977, p.278). Devemos encarar o tema Ensino de Empreendedorismo nas escolas de acordo com uma abordagem distinta, exercitando a inteligência da complexidade sem primeiro a reduzir ao respeito das únicas prescrições metodológicas imperativas de um pensamento cartesiano, com o intuito maior de entender a aventura humana pela aventura do conhecimento (LE MOIGNE, 1983). Neste contexto tão desafiador que são as discussões sobre currículo, o desenvolvimento da ciência em relação ao Ensino de Empreendedorismo nas escolas “não se efetuará por acumulação dos conhecimentos, mas por transformação dos princípios que organizam o conhecimento” (MORIN, 1982, p.218).
      Compreender que o tema Ensino de Empreendedorismo pode estar associado ao paradigma da complexidade, pois “se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza” (MORIN, 2003, p.3) não deve ser encarado como fator de estagnação nas discussões e forma de agir, pois “a incerteza perturba muitos espíritos, mas exalta outros: incita-nos a pensar aventurosamente e a controlar o nosso pensamento” (MORIN, 1982, p.78). Assim como é possível perceber em muitas ações Esag Kids através de ações de extensão com apoio de acadêmicos voluntários imbuídos do mesmo espírito solidário. O tema empreendedorismo deve ser encarado como uma matriz disciplinar, contemplando além de aspectos relacionados ao mundo do trabalho, também questões que envolvam criatividade, liderança, resiliência, proatividade, educação fiscal, capacidade de realização, inovação, dentre tantas outras possibilidades. Não se trata de uma disputa entre o capitalismo voraz em sua vertente neoliberal e o idealismo que desconsidera questões mercadológicas. Há sim este paradigma estabelecido quando falamos de Ensino de Empreendedorismo nas escolas e “somente aqueles que retiram encorajamento da constatação de que seu campo de estudo (ou escola) possui paradigma estão aptos a perceber que algo importante é sacrificado nessa mudança” (KUHN, 1987, p.223).
      O Programa de Extensão Universitária Esag Kids vem realizando em suas oficinas com crianças possibilidades de relacionar sujeitos e objeto de estudo ao tratar o tema Empreendedorismo no Ensino Fundamental. Não estamos propondo uma epistemologia anárquica, mesmo constatando que algumas evidências “clamam por uma nova terminologia que não mais separe o que se acha tão intimamente ligado, seja no desenvolvimento do indivíduo, seja no da ciência”. (FEYRABEND, 1977, p.26). Tratar do tema Ensino de Empreendedorismo quando o público alvo são crianças do Ensino Fundamental remete á reflexões maiores acerca da formação dos futuros cidadãos e dos valores que pretendemos transmitir a eles. A Extensão Universitária tem papel muito importante neste tema, pois da Academia se espera muito, uma vez que esta ainda é o maior centro de referência para o desenvolvimento da Ciência. As ações Esag Kids se propõem a fortalecer e ampliar a discussão sobre o tema, apontando caminhos possíveis para a aventura do conhecimento, acreditando sobremaneira que “no fim das contas tudo é solidário. Se você tem o senso da complexidade, você tem o senso da solidariedade. Além disso, você tem o senso do caráter multidimensional de toda realidade” (MORIN, 2003, p.68)

Referências:

BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei 9394/96. Brasília, 1996, disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l9394.htm>.Acessado em 15 de Maio de 2018.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 772, de 8 de dezembro de 2015. Disponível em: ˂https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124353˃. Acesso em 15 de Maio 2018.
KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. 
FEYRABEND, P. Contra o Método. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977.
LE MOIGNE, J-L. O construtivismo em construção In: Le constructivisme: modeliser  pour comprendre. Paris: L´Harmattan, 2003 (tradução livre por Carolina Andion). 
MORIN, E.  Introdução ao pensamento complexo.  Lisboa, Instituto Piaget, 2003. 
MORIN, E. Ciência com Consciência. Lisboa: Europa América, 1982.

Inteligência artificial amparado pela ciência complexa proposta por Edgar Morin

 Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Bruno Castro

     Jean Louis Le Moigne, falando sobre as ideias de Edgar Morin em entrevista recente (Junges, 2012), lançou as bases para que se fizessem profundas reflexões sobre como os pressupostos de Morin se aplicam ao debate crescente que se verifica na sociedade contemporânea a respeito da inteligência artificial. Com base nos apontamentos registrados em tal entrevista, o presente ensaio pretende identificar e reforçar os vínculos existentes entre o tópico da inteligência artificial e a complexidade sobre a qual Morin discorre em sua obra (Morin, 2003).
     Cumpre, primeiramente, situar a complexidade no contexto das ciências da regulação, que incluem a informática, a inteligência artificial, a matemática, entre outras. No âmbito dessas especializações do saber, Morin assumiu a relevante tarefa de promover os respectivos objetos de estudo à categoria de sistemas. Aos poucos, o autor progrediu em busca desse intento, na medida em que foi obtendo reconhecimento para que o conceito de sistema pudesse migrar de algo fechado, até tornar-se um tópico mais abrangente, a ponto de ser considerado “raiz da complexidade” (Junges, 2012). Somente com a promoção da engenharia ao status de ciência fundamental, processo em que Morin foi decisivamente influente, é que o subcampo da inteligência artificial ganhou a legitimidade necessária para alçar os voos que, a olhos vistos, tem realizado diuturnamente.
Inteligência Artificial
     Não que se trate de um conjunto de conhecimentos novos; pelo contrário, desde a década de 1960 já se concebia a chamada simulação funcional, que com o passar do tempo ganhou a alcunha de inteligência artificial tal como a conhecemos hoje. O que talvez se possa identificar como um viés pós-Morin a respeito da área é a legitimidade acadêmica verificada pelo percurso mencionado anteriormente, mas acima de tudo a possibilidade recente de se adotar uma perspectiva transhumanista para lidar com os desafios que as tecnologias a ela associadas impõem aos homens e mulheres de nosso tempo. Há, inclusive, a necessidade de um debate ético-epistêmico a respeito, pois com a inteligência artificial a produção do saber recebe aportes constantes de conteúdo gerado programaticamente, a tal ponto que, mantido o ritmo atual, em poucos anos não se conseguirá mais fazer distinção entre o conhecimento calcado em relatos humanos e aquele oriundo de geração espontânea de dados por algoritmos.
     A própria concepção humana, no sentido mais literal possível, passa por uma verdadeira revolução, com a possibilidade ampla de experimentos in vitro que artificializam a geração de novas vidas humanas e, em processo análogo ao que se acaba de descrever, levanta o risco de que não se possa mais saber quem é gente e quem é robô – claro, isso só se pode desculpar a uma hipérbole sem muita precisão científica, mas as evidências caminham, para o bem ou para o mal, nesta exata direção, e todos os recentes experimentos com androides antropomórficos, clonagem e outras iniciativas congêneres validam tal premissa.
     Se, por um lado, um campo tão supostamente pernicioso ao futuro da humanidade tem suas bases apoiadas no trabalho de Morin, por outro, encontramos no mesmo autor um antídoto para – perdão por mais uma hipérbole – destilar um antídoto contra a dominação das máquinas inteligentes sobre os humanos.
O pensamento complexo.
     E que antídoto seria esse? Nada menos que o pensamento complexo, que Morin tão bem definiu como um modo aberto de se pensar, que prioriza interligar conceitos. Somente recorrendo a esta ferramenta é que se pode conceber, sem arroubos apocalípticos, uma convivência entre os artefatos engendrados pela inteligência artificial, de um lado, e os reles mortais, do outro. Afinal,  se é fato que a inteligência artificial tem alavancado sistemas de vigilância que geram justificadas preocupações quanto a privacidade e segurança, convém lembrar que desta mesma fonte derivam facilidades sem as quais se teria muita dificuldade de viver no mundo moderno, como o buscador Google ou os aplicativos que viabilizam novas formas de transportes, provêm acesso móvel a mapas digitais, facilitam criação de relacionamentos etc.
     Esse tipo de elaboração que se acaba de fazer requer, além do pensamento complexo, o recurso a uma miríade de diferentes campos de saber para a construção de conclusões sensatas. Ou seja, o que se está utilizando é a interdisciplinaridade, outro tema muito caro a Morin – parece, portanto, que sua contribuição ao debate é bastante relevante e abre oportunidade para que se estenda indefinidamente esta discussão iniciada aqui.

Referências
JUNGES, Márcia. Um apelo ao eterno perguntar. IHU: Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 402, pp.11-16, 2012.
LE MOIGNE, J-L. O construtivismo em construção In: Le constructivisme: modeliser pour comprendre. Paris: L’Harmattan, 2003 (tradução livre por Carolina Andion).
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 2003.