Neo-Positivismo, Neo-Racionalismo E Estruturo-Funcionalismo - Parte 1

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Mestrado Acadêmico Cíntia Moura Mendonça

     O Neopositivismo surge no ano de 1929 a partir de um pequeno grupo de homens burgueses e cultos que compunham o círculo de Viena para a construção de uma concepção científica do mundo em oposição ao espírito especulativo e metafísico com o propósito de fundamentar a ciência em um discurso lógico por meio da prova experimental.  Assim, defendiam que o conhecimento científico só poderia ser aceito de duas formas: pelo conhecimento matemático válido por si, sem a necessidade da experiência e as proposições empíricas que só após submetidas as critérios de verificação poderiam ser consideradas verdadeiras deixando a filosofia a única incumbência de validar as proposições de linguagem. O referido Círculo se dissolveu rapidamente com a perseguição nazista contra os cientistas judeus, contudo, esses pensadores exerceram forte influência na evolução da filosofia anglo-saxônica das ciências. (DORTIER, 2000).
Círculo de Viena
Popper (1979), corrobora com o neopositisvismo aprofundando o pensamento neo-racionalista ao propor uma teoria do conhecimento a partir da análise do uso método dedutivo para validação do conhecimento científico em oposição as ciência empírica positivista que utiliza de métodos indutivos, portanto com base na lógica indutiva. O autor rejeita a validação de experimentos particulares, para enunciados universais, ou seja, do ponto de vista lógico, não é aceitável, inferir enunciados universais a partir dos singulares. 
    Os defensores do método indutivo, tais como Bacon (1979), afirmam que podem confirmar a validade das teorias científicas por meio do experimento. Já Popper (1979), afirma que a indução não pode ser uma tautologia ou enunciado analítico, ao contrário, pode ser considerado um enunciado sintético, ou seja, sua negação não é contraditória, mas apenas possível logicamente. Nesse sentido a lógica indutiva sustenta uma ideia de probabilidade, e segundo o autor, ao considerar o princípio de indução não como verdadeiro, mas como provável, significa uma regressão a doutrina do apriorismo que Kant defende. Nesse sentido, a teoria defendida pelo autor se opõe a lógica indutiva podendo chamar de teoria do método dedutivo de teste, pois só se pode testar uma hipótese empiricamente após ter sido formulada. (POPPER, 1979)
      Trata-se da eliminação do psicologismo, ou psicologia do conhecimento, em contraste a lógica do conhecimento, afinal, segundo Popper (1979), não é possível analisar logicamente como se concebe uma teoria, portanto é irrelevante para a análise lógica do conhecimento, que ao contrário, entende que uma teoria se concebe e se submete ao exame lógico. Assim, não cabe a tarefa epistemológica de reconstrução racional pois o próprio cientista já o fez, rejeitou e analisou suas próprias ideias, basta considerar como um “elemento irracional” ou “intuição criadora”. O método dedutivo consiste na comparação lógica, investigação da forma lógica da teoria, compara-se com outras teorias e finalmente aplica-se o teste da teoria por meio das aplicações empíricas das conclusões que de podem deduzir dela, ou seja, até que ponto as consequências da teoria satisfazem os requisitos da prática. O procedimento do teste é dedutivo pois a partir da teoria, deduzem-se certos enunciados singulares as “predições”, assim, os resultados das aplicações de experimentos práticos apontam, se positivo, as conclusões singulares são aceitáveis, mas se negativa, ou falseadas, seu falseamento falseia a teoria da qual elas foram logicamente deduzidas.
      Popper (1979), trata do problema da demarcação, como uma das problemáticas que diferenciam os positivistas antigos dos neopositivistas. Afirma que os antigos positivistas admitiam como científicos, conceitos que se derivavam da experiência, conceitos logicamente redutíveis aos elementos de experiência dos sentidos, demarcação de uma maneira naturalista, e não de uma convecção apropriada ciência empírica de um lado e metafisica de outro, afirma que com isso, aceitam um número infinito de mundos logicamente possíveis, por meio de uma ciência experimental indutiva que se propunha a conhecer o mundo real, sintético e demarcado.   O autor afirma que para os positivistas modernos, ou neopositivistas, a ciência não é um sistema de conceitos, mas sim, um sistema de enunciados, em que consideram os enunciados que são redutíveis aos enunciados elementares da experiência. Assim, para distinguir o sistema que representa nosso mundo da experiência, deve-se utilizar o método dedutivo, e portanto não com base na verificabilidade, mas sim, na falseabilidade. O autor trata sobre o problema da objetividade afirmando que as teorias cientificas nunca são inteiramente justificáveis, mas sim que “a objetividade dos enunciados científicos reside no fato de que eles podes ser testados intersubjetivamente” (POPPER, 1979, p. 18). Por fim, o Popper (1979) afirma que, ao contrário de Kant, que aceita o método indutivo considerando a subjetividade que está atrelada aos sentimentos e convicções, o autor defende a necessidade da objetividade a partir da regularidade e reprodutividade, com isso defende a necessidade de se aplicar  regras metodológicas como convenções, ou regra do jogo das ciência empírica, diferente das regras de lógica pura, o que pode levar a tornar uma teoria testada logcamente a não ser completamente rejeitada pela experimentação de um fragmento.
      Já Parsons (1967), demarca a lógica estruturo-funcionalismo ao tratar da teoria e funcionamento das organizações que, por definição, tem como fundamental característica ter como prioridade a execução de uma meta específica, diferenciando-a dos demais tipos de organizações além de demarcar as relações externas e internas. Autor importante na construção da teoria das organizações que balizou a ciência da administração enquanto ciência instrumentalista. Discorre sobre as organizações com fins econômicos, como subsistemas que, ao buscar alcançar suas metas produtivas, e portanto de maximização de resultados, servem ao sistema maior no qual fazem parte, numa cadeia de interdependência e manutenção da ordem e do Sistema Social estabelecido que regula as relações econômicas e sociais. O Racionalismo econômico e os valores do sistema superior, devem regular todas as ordens de relações, e deve-se fazer de tudo para mantê-los, inclusive, sobre os valores individuais. A sua utilidade não está restrita a obtenção de lucros por si só, mas “legitimam os principais padrões funcionais do funcionamento necessário à implementação dos valores, neste caso a meta do sistema, em condições típicas de situação concreta.” (PARSONS, 1967, p. 47)
     Com base nos três principais autores mencionados, que retratam as epistemologias do neo-positivismo com Dortier (2000), neo-racionalismo com Popper (1979) e estruturo-funcionalismo com Parsons (1967), é possível perceber o quanto essas três bases se complementam para propagar e aplicar a lógica racionalista e o sistema capitalista de uma forma mais demarcada e funcional. Com o surgimento do neo-positivismo se constrói com um discurso amplamente aceito na cultura anglo-saxônica por meio do firmamento de um contrato aceito e difundido na cultura acadêmica e social ao combater a metafísica por meio da validação de conhecimentos que, com excessão da lógica matemática, a partir do experimento cientificamente conduzido. Com o pensamento neo-racionalista se aprofunda a validação do verdadeiro conhecimento a partir da racionalidade, que pode ser testado ou não, a partir de uma lógica de falseabilidade mas que não invalida a teoria concebida da “irracionalidade” que foi analisada a partir de outras teorias, ou seja, não interessa o que motiva as ideias que originam as teorias, pois o próprio pensador já colocou em prova seus próprios pensamentos. No meu ponto de vista, racionalidade que busca purificar a ciência e camuflando a ideologia que dá sentido e motiva as ações do sujeito e que culmina de forma muito declarada na visão estruturo-funcionalista que vem propor um tratado sociológico da teoria das organizações que explicita como uma organização que é um subsistema deve se “comportar” externa e internamente para contribuir com a manutenção da ordem e do sistema capitalista preponderante superior, intocável e incontestável.

Referências
BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. 
DORTIER, J-F. Le cercle de Vienne et le nouvel sprit scientifique. In: Sciences Humaines, hors-série, septembre, 2000 (tradução livre) (2p). 
PARSONS, T. Sugestões para um tratatado sociológico da teoria das organizações. In: ETZIONI, A. (org) Organizações Complexas. São Paulo, Atlas, 1967. 
POPPER, K. A lógica da investigação científica. In: Karl Popper. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

Neo-Positivismo, Neo-Racionalismo E Estruturo-Funcionalismo - parte 2

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Rafael Tachini de Melo

    O presente paper buscará relacionar os conceitos trazidos por Karl. R. Popper para a ruptura do pensamento neo-positivista do Círculo de Viena, indicando as limitações e contradições que a abordagem do grupo austríaco causa no pensamento científico. Por outro lado, se apresentará a visão de Popper do caráter incompleto e a mutabilidade constante que as teorias científicas carregam ao longo do tempo, e sua relação com a abordagem fenomenológica e a visão de Bruno Latour no livro “Jamais fomos modernos”.
   Os pensadores do Círculo de Viena definiram que as proposições lógicas científicas podem ser verificadas por testes empíricos ou por demonstrações (no caso de abstrações matemáticas, por exemplo), sendo que apenas estas questões teriam sentido e diriam respeito à realidade. O que não passasse por este método era metafísica, divagações sem sentido, falsos problemas, irrealidades. Fazendo o caminho inverso, o apontamento de enunciados particulares, pelo princípio da indução, levaria a enunciados universais. 
     Wittgenstein, que mantinha relações frequentes com os integrantes do Círculo e influenciou seu pensamento, desenvolveu no âmbito do positivismo lógico o critério da significação, em que toda teoria pode ser logicamente redutível a proposições atômicas (indução), imagens da realidade, este seria o critério de demarcação apropriado ao neo-positivismo.
      A grande crítica de Popper a este pensamento é criação de uma espécie de dogmatismo, criação de convenções e estagnação do pensamento científico, na medida em que a verificabilidade particular tornaria uma teoria acabada, inclusive para as próprias ciências naturais, o que afastaria, por exemplo, os questionamentos e pensamentos de Einstein sobre a física newtoniana, exaustivamente verificada. A indução acaba, portanto, levando a inconsistências no pensamento científico.
Neste ponto, Hans Reichenbach reconhecia parte desse problema, todavia, entendia que a visão neo-positivista ainda era mais adequada, pois a indução levava a graus contínuos de probabilidade entre o que é falso e o que é verdade, sem alcançar estas linhas, e seria o caminho mais adequado à busca da realidade científica.
    Há sérias reservas na verificação neo-positivista de uma teoria para as ciências sociais, pois ao apontá-la como verdade com base em testes empíricos, sem a possibilidade de refutá-las, contribui para a criação de dogmas e convenções histórico-sociais, que tem efeitos perversos em direcionamentos parciais da sociedade. Neste ponto, interessante ponderar que até conceitos dogmáticos metafísicos poderiam se emprestar da demarcação do neo-positivismo, se conseguissem uma experiência particular que confirmasse o dogma universal.
     Husserl, ao trabalhar as experiências atribuidoras de significado na fenomenologia, veladamente diz que a experiência controlada do método empírico não é completa de significado, dada a sua artificialidade e parcialidade. Popper corrobora com isso e vai além, dizendo que o método empírico transforma um enunciado particular em um enunciado universal, atribuindo-lhe verdade científica de forma parcial com suas verificações, sem contudo abrir espaço para a criticidade da teoria, para a sua refutabilidade e falseabilidade.
     Desta maneira propõe que a ciência busque não trazer provas definitivas para uma teoria, mas constantemente tentar falsear ou refutar, sempre colocando-a em xeque. A falseabilidade tornaria a teoria cada vez mais forte na medida em que fosse sendo recrudescida, até o ponto em que quebra-la levaria a uma avanço teórico e da ciência, com o aperfeiçoamento ou construção de um novo pensamento científico. Popper destaca que um sentimento de convicção, ainda que que com base nas percepções e intensidades da experiência pessoal, nunca pode justificar um enunciado, é apenas uma hipótese psicológica. Um enunciado científico empírico deve ser objetivo, na medida em que possa ser testado intersubjetivamente (não apenas por mim), passíveis de refutabilidade por todos. Conclui que não existem enunciados últimos na ciência. Ele inclusive pondera:
            “(...) recuso-me a aceitar a concepção de que existem
 na ciência enunciados que devemos, resignadamente,
 aceitar como verdadeiros simplesmente
 porque não parece possível, por razões lógicas, testá-los.”

     Desta maneira, a ciência valida e refuta uma teoria constantemente, mas nunca traz provas definitivas. Seria criado um critério de demarcação frutífero, com testes ad infinitum, críticas, substituições, aprimoramentos, uma testabilidade e falseabilidade eterna. Seria esse o jogo sem fim da ciência. Portanto, regras metodológicas científicas como aquelas do positivismo não podem proteger do falseamento nenhum enunciado científico. 
     Em que pese haja uma indicação por Popper de que há uma linearidade na evolução do pensamento científico, a questão de constante recombinação e reinterpretação da sua demarcação científica se alinha ao pensamento de Latour, que define a ciência como uma espiral com expansão em todas as direções, podendo ser retomado, repetido, recombinado, reintepretado e refeitas as ações. Da mesma maneira, ressalvada a questão relativa a temporalidade novamente, a visão fenomenológica de que as experiências pretéritas podem ser repetidas, retomadas, recombinadas, reinterpretadas e refeitas, seguindo uma constante modificação, também reverbera no pensamento de Popper. São interpretações de seguidas falseabilidades e refutabilidades do estabelecido cientificamente.

Referências.
DORTIER, J-F. Le cercle de Vienne et le nouvel sprit scientifique. In: Sciences Humaines, hors-série, septembre, 2000 (tradução livre) (2p).
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. O criticismo Kantiano e O positivismo In: PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da Filosofia. São Paulo: Mehoramentos, 1990 (trechos escolhidos).
 POPPER, K. A lógica da investigação científica. In: Karl Popper. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 
SCHUTZ, A. Fenomenologia e Relações Sociais Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
SCHUTZ, A. Don Quixote e o Problema da Realidade In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

Desvendando a indução em Karl Popper, Sherlock Holmes e no peru de Russell


       Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Bruno Castro

     Arthur Conan Doyle, autor das crônicas de Sherlock Holmes distribuídas ao longo de dezenas de obras amplamente difundidas mundo afora, jamais escreveu o bordão “Elementar, meu caro Watson”, que comumente a ele se atribui. Conforme Pigliucci (2003), a frase foi introduzida nas primeiras representações teatrais do detetive ficcional, com o consentimento de Doyle.
     Este esclarecimento presta importante papel na introdução do presente short paper, pois a primeira hipótese que se desenvolverá aqui toma como pedra de toque a suposição de que o raciocínio de Sherlock Holmes era dedutivo – o que parece estar introjetado no senso comum e explicitado pelo bordão que se acabou de desmistificar.
     O que se deseja provar, primeiramente, é que tal suposição está 
Figura 1: Representação típica do
detetive Sherlock Holmes
incorreta, ainda que na própria obra de Doyle leia-se que o detetive deduzia fatos a partir das evidências que encontrava. O que o detetive fazia, de fato, era aquilo que epistemologicamente se pode tratar como indução.
  Apoiando-se novamente em Pigliucci (2003), cujo raciocínio se descreverá a seguir, e em Popper (1979), nota-se a diferença entre dedução e indução, a qual não só sustenta a defesa da hipótese proposta, como se presta a um importante esclarecimento para qualquer pesquisador interessado em aprimorar seu pensamento crítico e assumir postura metaforicamente semelhante à do detetive, como ilustrado na Figura 1.
    A dedução é uma forma de raciocínio na qual se parte de premissas gerais para, então, aportar em asserções específicas. Foi Aristóteles quem primeiro descreveu, na filosofia ocidental, uma das variedades desse procedimento, o silogismo. Partindo, por exemplo, das duas premissas: “Todos os homens são mortais” e “Sócrates é um homem”, a dedução a que se chega é que “Sócrates é mortal”.
Não é difícil extrapolar o mecanismo com que se elaborou o encadeamento acima para campos tão diversos quanto a metafísica ou a matemática, em que a dedução se prova útil para que, baseando-se em teorias científicas gerais, se consiga formular previsões.
Convém ressaltar, contudo, que embora a dedução seja conservadora da verdade, ela não pode oferecer nada mais do que a verdade já conhecida, ou seja, não se trata de método ampliativo. Afinal, é fato que, atendendo às condições de que: a) as premissas sejam verdadeiras e b) a sequência dedutiva esteja formalmente correta, a conclusão é garantida como verdadeira. Logo, a verdade das premissas é conservada.
Em suma, o raciocínio dedutivo não aumenta o conhecimento que se tem do mundo; outrossim, ele se resume a simplificar explicitamente o que já está contido nas premissas. Ora, fica nítido, assim, que a dedução não serviria como ferramenta de resolução de crimes para Sherlock Holmes.
Acontece com o cientista, em seu labor de buscar explicações para os fenômenos pesquisados, algo semelhante às situações descritas anteriormente. Em vez de empregar a dedução, ele recorre a um tipo diferente de raciocínio: a indução. Este, a propósito, é o modus operandi que se pode identificar no raciocínio de Sherlock Holmes, estando comprovada, portanto, a hipótese previamente levantada. Convém, agora, contextualizar este achado, tal qual se procederá nos parágrafos seguintes.
Contrariamente à dedução, a indução parte de fatos particulares para chegar a enunciados gerais. Mas há um ponto a se considerar: nem sempre a indução preserva a verdade, pois requer a elaboração de generalizações a partir de detalhes específicos e, com isso, pode-se chegar a resultados falsos.
O peru indutivo de Russell em quadrinhos | Fonte Google Imagens
     Seguindo o mesmo raciocínio, Bertrand Russell, citado por Pigliucci (2003), propõe a parábola do “peru indutivista”, que aqui se ilustra com a Figura 2. Ele explica que tal animal seria levado a uma fazenda e alimentado regularmente todas as manhãs, no mesmo horário. Logo, como indutivista, o peru se dá conta de que precisa de uma amostra considerável de dados para concluir o que será de seu futuro. Passados 364 dias, chega à conclusão de que continuará recebendo alimento todos os dias, no mesmo horário e com a mesma quantidade de comida. Mas, no dia seguinte, o fazendeiro abate o peru para servi-lo no Dia de Ação de Graças, comprovando definitivamente que a indução não preserva a verdade.
     A despeito dessa desvantagem, a indução é um componente essencial das investigações científicas. De fato, pode-se argumentar que mesmo o raciocínio dedutivo depende, em última instância, da indução: afinal, é preciso obter as premissas de algum lugar, e isso geralmente é feito por indução.
Retome-se, por exemplo, a premissa do exercício de lógica supracitado: se podemos estabelecer que “Sócrates é um homem” por observação direta, a premissa de que “todos os homens são mortais” não é o resultado da simples observação nem de uma inferência lógica. A crença de que todos os homens são mortais baseia-se unicamente no fato de que todos os homens de que se teve notícia até agora morreram. Porém, o que garante que esse raciocínio esteja tão errado quanto o do peru de Russell?
Uma possível saída para o impasse provém de Karl Popper (1979), que combateu o problema da indução afirmando que a ciência não procura provar teorias, mas refutá-las.
     Popper pondera que o princípio a ser inserido num debate indutivo precisa ser um enunciado sintético que admita logicamente uma negação e, portanto, seja passível de uma análise racional. Assim, o mecanismo pelo qual se redundaria em erro na parábola do peru de Russell esbarraria na possibilidade de negação; seria aberto, destarte, o atalho para que a verdade viesse à tona.
     Recorrendo à psicologia empírica, Popper descreve uma reconstrução racional que o cientista precisaria fazer a todo momento para não cair nas armadilhas da indução. Tal rotina seria, mantendo o paralelo com a ave russelliana, o procedimento segundo o qual o peru deveria reelaborar diariamente seu olhar diante do tratamento recebido. Supõe-se, num âmbito tão hipotético quanto o escopo deste trabalho permite, que tal peru supostamente adepto da reconstrução racional descobriria, em pouco tempo, a real motivação por trás da regularidade da alimentação a ele oferecida.
Identifica-se, portanto, que a indução é um procedimento relevante, embora admita margem para falhas, e que nela se encontra um ponto comum entre os assuntos aparentemente imiscíveis sobre os quais se discorreu aqui: Karl Popper, Sherlock Holmes e o peru de Russel.

Referências
DORTIER, J-F. Le cercle de Vienne et le nouvel sprit scientifique. In: Sciences Humaines, hors-série, septembre, 2000 (tradução livre) (2p).
PARSONS, T. Sugestões para um tratado sociológico da teoria das organizações In: ETZIONI, A. (org) Organizações Complexas. São Paulo, Atlas, 1967.
PIGLIUCCI, Massimo. Elementary, dear Watson (Thinking About Science). Skeptical Inquirer, v. 27, n. 3, p.18, 2003.
POPPER, K. A lógica da investigação científica. In: Karl Popper. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

Drag Queen: um ser dialético

     Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Diego Fernandes Ungari

Não é de hoje que se discute a importância das contradições na construção social, Heráclito na antiguidade clássica já defendia que a luta dos contrários na natureza é necessária para se conservar a harmonia (FOLQUIÉ, 1949). Em contrapartida, existe uma infinidade de movimentos voltados a reprimir os diferentes, visando uma homogeneidade utópica em busca de uma sociedade ideal. Assim ocorreu na Alemanha de Hitler e ainda ocorre diariamente em muitos lugares com minorias que são marginalizadas por não se encaixarem no padrão socialmente construído. Entre essas minorias se encontram as Drag Queens, que podem ser caracterizadas como homens que utilizam roupas, consideradas tipicamente femininas, para performances artísticas e entretenimento (JESUS, 2012, p.10), e por trás de espetáculos cheios de brilho e alegria, há uma história de luta e resistência desses artistas que, direta ou indiretamente, contribuíram para uma mudança significativa na forma como a sociedade encara sua arte e, acima disso, contribuíram para que se passasse a ter mais respeito e tolerância. Assim, o argumento desse paper será discutir "um ser dialético", a partir da representação das drags queens.
Não é um absurdo pensar que em um ambiente conservador e em uma cultura majoritariamente patriarcal exista certa dificuldade em se entender a ideia de um homem que se veste de mulher. Se mesmo em um ambiente acadêmico, onde se vê a elite intelectual, existem conflitos para compreender ideias básica em razão de pensamentos arcaicos, por exemplo, que a ciência se transforma e se torna multidisciplinar - como traz Latour (1994) ao explicar a “proliferação dos híbridos” (LATOUR, 1994) – como se esperar que a sociedade compreenda algo que não lhes é (e nunca foi) habitual?
Por isso, indivíduos como as drag queens são uma representação real do pensamento dialético, que incita a necessidade de se provocar inquietações que abalem as estruturas sociais, pois desse modo é que se repensam e se desconstroem conceitos mumificados (GURVITCH, 1987), isto porque, por si esses artistas geram uma contradição, como indica a música Dona (2017) que narra parte da história da rapper brasileira e drag queen, Gloria Groove: “Ai meu Jesus / Que negócio é esse daí? / É mulher? / Que bicho que é?”. Esse trecho da canção representa um pensamento de grande parte das pessoas, que não compreendem e não buscam refletir sobre essa expressão artística, construindo pré-julgamentos e preconceitos com base em meras suposições ou divagações. 
Trecho do clipe Dona - Gloria Groove
     Como aponta Lefebvre (1983), “toda contradição admitida inconscientemente no pensamento, sem ser expressamente assinalada e refletida, introduz uma inconsequência, uma incoerência que apresenta o risco de destruir esse pensamento enquanto pensamento” (LEFEBVRE, 1983, p. 81). Portanto, ao se deparar com uma contradição, como no caso em questão representada pela figura da Drag Queen, o indivíduo que não busca assimilá-la e refletir sobre isso pode recair em uma concepção ideológica sem fundamentos, tornando seus pensamentos abstrações, como preconceitos, que não raramente se revertem em agressões físicas ou psicológicas, que por si são injustificáveis. Contudo, essas contradições acarretam, de algum modo, uma real mudança de pensamentos, basta refletir sobre a presença de drag queens na mídia. Há alguns anos era raro ver artistas desse nicho nos meios de comunicação, nomes como Rogéria - uma das primeiras artistas a ganharem fama como drag queen, ou transformista (termo mais comum em meados da década de 60, período de sua ascensão) - eram pouco mencionados e quando eram tendiam a ser estereotipados negativamente. A própria Rogéria utilizava um icônico e irônico bordão em que se dizia “a travesti da família brasileira”. 
     No entanto, atualmente vê-se artistas nacionais se destacando cada vez mais, como Pabllo Vittar, que entre outras conquistas foi incluída na Billboard, conceituada revista americana sobre música que elabora um ranking de artistas e músicas mais tocadas mundialmente; teve seu nome artístico incluído no Dicionário Cravo Albin de Música Popular Brasileira e fez parcerias com artistas internacionais. À primeira vista, podem parecer conquistas pouco relevantes, mas simbolizam claramente um rompimento de pensamentos antiquados e conservadores, uma vez que nenhum artista atinge e mantém sua fama sem um grande número de pessoas que o admire.  Nesse sentido, como aponta Foulquié (1949) ao citar Staline e Lenine, a dialética “é o estudo das contradições na própria essência das coisas” (FOULQUIÉ apud STALINE; LENINE, 1949) e o movimento drag representa isso.
     Conclui-se, por tudo isso, que a drag queen é um ser dialético por si. Tal qual preconizam os princípios do método dialético, a cultura drag é um fenômeno que não pode ser analisado de forma isolada, pois interfere é interferido por todo o contexto histórico-social, além disso conecta em si dois universos, o masculino e o feminino, que com isso provoca uma contradição que não excluí, mas ao contrário, inclui em um mesmo universo dois mundos comumente polarizados. A partir disso, constroem gradualmente um movimento de transformação e, como advogam os pensamentos de Marx e Hegel, “o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas acabadas, mas como um complexo de processos onde as coisas estáveis na aparência passam por uma mudança ininterrupta (...) onde finalmente acaba por se realizar um desenvolvimento progressivo” (FOULQUIÉ, 1949, p. 61). Assim, é fundamental que artistas como as Drag Queens, que apesar de se enquadrarem em uma minoria socialmente marginalizada, continuem e fortaleçam sua presença para que cada vez mais pessoas possam refletir sobre seus pensamentos e desconstruir alguns de tantos conceitos mumificados.
Referências
BORTOLOZZI, R.M. A Arte Transformista Brasileira: Rotas para uma genealogia decolonial. Quaderns de Psicologia: 2015, Vol. 17, n. 3, p. 123-134. Disponível em: https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1274. Acesso em: 01 mai 2018.
FOULQUIÉ, P. A dialética. Lisboa: Europa-América, 1978, p 42-66.
GURVITCH, G. Caracterização prévia da dialética. In: Dialética e sociologia. São Paulo: Vértice, 1987, p. 29-32.
JESUS, J. G. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília: Publicação em: abr. 2012. Disponível em: https://goo.gl/x5a2AB. Acesso em 01 mai 2018.
LATOUR, B. Jamais formos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LEPFEBVRE, H. Lógica Formal. Lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

Dialética e Dogmatismo: uma breve discussão.


Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Ricardo Lonzetti.

     Ao contrário do que afirma Hegel, o pensamento científico não é baseado na dialética, apenas o desenvolvimento das teorias científicas pode, com certa medida, ser descrito em termos do método dialético, conforme nos lembra Popper (1949). Suas ideias, contudo, sob o impulso da própria ciência, divorciada, pois da filosofia, e cujo debate, aliás, foi promovido por seus críticos, influenciou destacadamente o campo das ciências sociais. Hegel foi um dos fundadores do método histórico – de uma escola de pensadores que acreditavam que a adequada descrição histórica do desenvolvimento é suficiente para o compreender – e sua filosofia continua a estimular controvérsias nas ciências sociais e humanas desde o século XIX. 
     Os outros grandes pensadores, entre eles Marx, Nietzsche e Freud, por exemplo, se apoiaram nas ideias de Hegel para expor em que medida a modernidade expressava-se pela transformação da razão em uma mera forma que o poder pode assumir (Brandom, 2013). O argumento desse pequeno ensaio é apresentar o entendimento dos argumentos de Hegel, assim, pode iluminar o debate sobre as racionalidades tanto difundidas nos estudos organizacionais de nosso tempo.  
     Mas voltemos à questão da epistemologia. Kant partiu do fato de que a ciência existe. Ele queria explicar esse fato, qual seja, ele queria responder à seguinte questão: como a ciência é possível, ou, em outras palavras, como é possível compreender o mundo. Seu argumento era tipicamente idealista. O conhecimento só poderia ter como objeto os fenômenos, isto é, só seria possível compreender os objetos "externos", as "coisas em si mesmas", na medida em que fossem submetidos a determinadas condições, sensíveis e intelectuais, em detrimento da compreensão das “coisas” tais como elas são em si mesmas (Reale, 1949). Contudo, poderíamos compreender o mundo, ou melhor, o mundo como ele se apresenta para nós, porquê o mundo não é muito diferente daquele que racionalizamos, embora o conhecimento fosse limitado às experiências possíveis. E isso devia-se ao processo que trilhamos para compreender o mundo, conforme propunha Kant, racionalmente digerindo o material que é apreendido, capturado por nossos sentidos.
     Hegel, por outro lado, considerou o conhecimento metafísico, em oposição ao dialético, como um sistema racional que não leva em conta a evolução, o movimento, o desenvolvimento, que, aliás, considera a realidade como algo estável, fixo e livre de contradições. Buscou, assim, diferenciar o conhecimento propriamente filosófico, que realmente o interessava, das outras formas de conhecimento. Para Hegel, o termo “razão” não denotava apenas o senso subjetivo de certa capacidade mental, mas também o senso objetivo, compreendendo toda espécie de teorias, reflexões e ideias. A filosofia, dessa forma, seria a expressão da razão e o desenvolvimento filosófico, por sua vez, o desenvolvimento da razão, de acordo com as leis fundamentais da lógica (Popper, 1940). Hegel buscou oferecer um modelo para o modo como os conteúdos dos conceitos de primeiro nível, baseados na observação da realidade por meio dos sentidos, se desenvolvem e são progressivamente determinados pela incorporação de contingências que são retrospectivamente racionalizadas.
     Já o processo a ser trilhado para a construção de conhecimento, conforme Hegel, seria o método dialético, pois onde quer que ocorresse movimento, onde quer que existisse vida, onde qualquer fato acarretasse determinado efeito no mundo real, o processo dialético estaria em curso. O movimento dialético, dessa forma, seria um constante devir (o ser é; o ser não é; o ser é devir), ou seja, tese, antítese e síntese, em um fluxo contínuo em que síntese se torna nova tese que exige sua própria antítese. Afirmava, ainda, que isso também é a alma de todo o conhecimento que é cientificamente verdadeiro. Popper nos lembra, contudo, que dificilmente encontraremos um desenvolvimento contínuo, lento e estável, em contínuos degraus de desenvolvimento (Popper, 1940).
     Schopenhauer, contemporâneo de Hegel, o acusou de ter recuperado, na contramão crítica de Kant, a ideia de uma razão capaz de compreender as coisas em sua totalidade e, assim, compreender todas as coisas. Lembremos que, para Kant, o conhecimento era limitado pelas possibilidades sensíveis, de forma que a razão pura, além de tais possibilidades, não seria justificada. Mas Hegel supera o obstáculo proposto por Kant à razão pura, afirmando que as contradições deveriam necessariamente ocorrer para o desenvolvimento do pensamento e da razão. Elas, as contradições, demonstrariam a insuficiência de determinada teoria que, de acordo com a filosofia da identidade, não levaria em conta o fato de que o conhecimento e a razão não são fixos e constantes, mas se apresentam em constante desenvolvimento – e que vivemos em um mundo em evolução.
     A refutação ao racionalismo proposta por Kant buscou evitar contradições. Hegel afirma, no entanto, que o método dialético conforme proposto por ele se mostra preparado para lidar com elas, estabelecendo um sistema dogmático de pensamento que possui nenhum receio de ser contestado – o que o tornaria, dessa forma, imune a qualquer sorte de crítica, afirma Popper. E lembra que o desenvolvimento da dialética poderia ser um alerta contra a filosofia especulativa. Conclui que o maior perigo em confundir dialética e lógica é o suporte que isso oferece à argumentação dogmática. Isso deveria nos lembrar que a filosofia não pode ser feita com base em algum sistema científico (Popper, 1940).

Referências
BRANDOM, R. B. Para a reconciliação de dois heróis: Habermas e Hegel. Novos estudos - CEBRAP  no.95 São Paulo Mar. 2013.
POPPER, K. R. What is Dialetic? Mind, New Series, Vol. 49, No. 196. (Out.,1940), pp. 403-426.
REALE, M. A doutrina de Kant no Brasil. São Paulo, Revista dos Tribunais, 34 p., 1949.

Fenomenologia parte 1: A Fenomenologia de Husserl e Schütz

     Nesta semana o Kritiké traz dois papers que trabalharam sobre diferentes enfoques a corrente da Fenomenologia. O primeiro é do Doutorando Anderson Luís que discutiu apontamentos sobre como a fenomenologia pode ser utilizada na Administração. O segundo é da mestranda Maria Eduarda que discutiu a questão do gênero numa perspectiva social fenomenológica. Boa leitura!

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Doutorado Anderson Luís do Espírito Santo.

     Em “Ideia da Fenomenologia (Cinco Lições)”, Edmund Husserl (1859-1938) vai apresentar a sua obra máxima que foi responsável pela disseminação, desdobramentos e demais argumentações acerca da Fenomenologia. Do grego phainomenon + logos (fenômeno + estudo), esta filosofia busca investigar o fenômeno, a essência, sendo que, essência não é entendida aqui como uma forma pura. Para Husserl essência é tudo aquilo que é retido no intencional. Fenomenologia significa discurso sobre aquilo que se mostra como é. Daí a ênfase no sujeito e a preocupação em identificar os objetos da consciência.
   O positivismo idealizado por Augusto Comte tem sua lógica de compreensão do fenômeno totalmente ao contrário. Sua ênfase está no objeto e busca compreender as condições imutáveis da sociedade (ordem) e as leis que conduzem o seu desenvolvimento (progresso). Para o positivismo a demonstração é um fator importante e o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro, daí a se dedicar a “experiência” pura, tal qual pregada pelo empirismo. O positivismo refuta qualquer tipo de crendices, influências religiosas e a metafísica. Dedica-se a observações empíricas. Outra corrente filosófica que vale ser citada é o utilitarismo, que discute o princípio da utilidade, proposto por Jeremy Bentham e desenvolvido amplamente por Stuart Mill. Bentham apresenta a importância de se compreender a dor e o prazer e como estas influenciarão as racionalidades dos indivíduos (a busca da felicidade através da razão e da lei).
    Ora, se este ensaio é sobre fenomenologia, por que falar em positivismo e utilitarismo? Ocorre que tanto o positivismo quanto o utilitarismo são duas correntes teóricas que influenciaram, intensamente, o desenvolvimento do ensino e da pesquisa no campo da Administração – e ainda se fazem presente. O positivismo surgiu pregando que era o verdadeiro progresso das ciências com ênfase na experiência e nos fatos para propor um conhecimento por meio do rigor científico. Esta corrente bebe do empirismo e influenciará o utilitarismo inglês. Ademais delineou na Administração o desenvolvimento de uma ciência que busca a demonstração rigorosa dos fatos observáveis com ênfase na racionalidade e munida de inúmeros modelos organizacionais. “Se esta é a nossa origem como você ousa escorregar e entrar no riacho inverossímil chamado fenomenologia? ”, disse um avaliador durante minha qualificação no mestrado". 
     No mestrado a minha organização em estudo foram as feiras livres e me propus a analisar o possível fechamento destas feiras (8 no total) na fronteira Brasil-Bolívia. Para tanto, a partir da fala dos sujeitos, foram evidenciados os fenômenos, as imagens, fantasias, ritos, emoções e a consciência das pessoas sobre o possível fechamento. “Sou a feirante mais antiga e a única aqui da minha época que ainda atua na feira [...] se eu parar de trabalhar eu morro. E se a prefeitura fechar a feira como tão falando, também morro” (Entrevistada, 84 anos, feirante há 50 anos na região). A partir das falas dos inúmeros sujeitos (numa bola de neve que chegou a 285 entrevistas) a dissertação foi delineada. Diversas citações tiveram que ser retiradas por decisão da banca, afinal espera-se de um administrador um trabalho dedutivo, preciso, buscando a causa-efeito e que apresente sua pesquisa com viabilidade-confiabilidade (positivista). É preciso inferir uma lei geral a partir dos casos observados e não apresentar um trabalho por meio da indução, reflexivo, analítico, através da interpretação da realidade do senso comum (fenomenologia) (SCHÜTZ, 2002). Tais afirmativas exemplificam algumas falas do que foi me dito na qualificação e, hoje, eu não acredito e nem concordo com elas. Por fim, acabou que, na escrita - no papel, a fenomenologia foi retirada da dissertação - desapareceu. Contudo, na essência, ela esteve presente nas 170 páginas da dissertação pois, naquele momento, foi impossível não vivenciar os pressupostos da fenomenologia (apresentados a seguir). Este ensaio poderia ter o título fantasioso de “Xii... de repente eu fiz fenomenologia!”. Por esse motivo, o meu argumento será: desmitificação da fenomenologia e sua importância para a Administração. Trata-se de uma interessante aproximação entre a Administração (majoritariamente positivista) e a fenomenologia (estudo do fenômeno).
     Anterior a Husserl, alguns autores notórios já haviam empregado o termo fenomenologia em seus estudos, a destacar Kant. Contudo foi com Husserl que, na virada do século, o termo ganhou expressividade. Naquele momento o autor criticou a psicologia experimental (na lógica) que possuía sua ênfase no emocional humano, em detrimento da consciência racional para propor o pensamento puro. Para o autor, a empiria é instável e superficial, por isso, não fornece o rigor científico necessário para uma profunda investigação filosófica. Assim, Husserl dedica-se a criar uma epistemologia que fornece para a filosofia a ciência e o rigor (sua influência da lógica). Para ele, o método fenomenológico atenderia esse pressuposto por ser um método crítico do conhecimento, uma doutrina universal das essências que se integra a ciência da essência do conhecimento. Considera, num primeiro grau, o pensamento, a imaginação e a reflexão (HUSSERL, 2008; BOAVA e MACEDO, 2011). Schütz (1979) afirma que os fenomenologistas desdenham todos os fatos empíricos e os métodos científicos, mais ou menos estabelecidos, para coletá-los e interpretá-los. Recomeçam a pesquisa repetidas vezes. Buscam seu lugar entre o realismo e o idealismo. O argumento principal de Husserl (2008) é apresentar um método de investigação que tenha o objetivo de apreender o fenômeno através da consciência. Para conseguir tal façanha, Husserl apresenta a redução fenomenológica.  
     A redução fenomenológica Epoché (suspensão do juízo) “proporciona o acesso ao modo transcendental; possibilita o retorno a consciência. Vemos nela como é que os objetos se constituem” (HUSSERL, 2008, p.10). “Trata-se de suspender momentaneamente o juízo sobre a existência ou não existência do fenômeno para verificação desse fenômeno numa nova perspectiva” (BOAVA e MACEDO, 2011, p.6). Na fenomenologia o foco é o sujeito, logo, a redução faz-se necessária para se evidenciar os sentidos que são percebidos e como este é transmitido a consciência. Para tanto, na redução fenomenológica, suspendemos nossos julgamentos e crenças na tradição da ciência (temporariamente) e buscamos captar os fenômenos – as experiências de vida dos seres humanos, observando de uma nova forma.  Alegria, medo, ilusão, felicidade, realidade – tudo que é possível aparecer na consciência e trazido à luz. Assim, a máxima da fenomenologia é voltar as próprias coisas. Os fenômenos captados da consciência exteriorizam as experiências, a verdade, o como as coisas são feitas. Na fenomenologia não há pressuposições, parte-se do zero e a ênfase é centrada no sujeito (HUSSERL, 2008; BOAVA e MACEDO, 2011).
     Mas o que é o fenômeno para a fenomenologia? A partir das leituras de Husserl (2008), Schütz (1979), Ales Bello (2006), Boava e Macedo (2011) e Souza e Guedes (2011) compreende-se que o fenômeno é tudo aquilo que possui vivência – o aparecer e o que aparece. A vivência de um eu é identificada em diversos tipos de dados, não só os genuínos, mas também os intencionais e, ou, falaciosos, que podem ser evidenciados nas vivências. Logo a fenomenologia é a ciência dos fenômenos cognoscitivos – manifestações de atos da consciência. Já o fenômeno é aquilo que se mostra, aparece ou parece. “Tomemos a fenomenologia como reflexão do fenômeno ou sobre aquilo que se mostra. Nosso problema é: o que é que se mostra e como se mostra” (ALES BELLO, 2006, p.18).
     Outros pontos da fenomenologia merecem destaques e maior aprofundamento, contudo, findarei com a intencionalidade. Husserl (2008) apresenta que uma das principais características da consciência é a intencionalidade. Todo ato é intencional, logo a consciência intencional retrata as aparências e a experiência humana. “Toda consciência é consciência de algo” (HUSSERL, 2008). Assim, o conceito de intencionalidade de Husserl diz que a consciência está orientada para algo, ou possui consciência de um determinado objeto. Dessa forma, surgem dois outros conceitos: imanente (o que eu vejo desse objeto – exemplo, a fachada de uma organização) e o transcendente (a objetivação pessoal sobre o objeto analisado, no meu exemplo, como eu vejo determinada organização – a imagem que eu crio em meu consciente). Segundo Husserl a transformação do imanente em transcendente é chamado de análise intencional. (HUSSERL, 2008; SOUZA e GUEDES, 2011).
    Partindo dessa apresentação, sobre os principais pontos da fenomenologia, apresenta-se sua aplicação na Administração. Em uma simples busca com os termos "administração" and "fenomenologia", obteve-se 163 artigos, desde 1997 (data do primeiro artigo) até 2018. Analisando os 20 artigos mais citados, a maior parte dedica-se a apresentar a fenomenologia como uma estratégia de pesquisa para a Administração. Ou seja, apresenta-se como artigo teórico. Apenas 2% utilizaram a fenomenologia na prática, como é o caso do artigo “Relações de Gênero e Subjetividade na Mineração: um estudo a partir da Fenomenologia Social”, de Oliveira et. al (2012) publicado na RAC: Revista de Administração Contemporânea, que buscou analisar o processo de relações de gênero no contexto organizacional de uma empresa de mineração. Com ênfase na subjetividade e nos estudos de Schütz, o artigo defende o uso exclusivo da fenomenologia na pesquisa social sobre gênero e pode servir como referência para futuras investigações
     Apresentado os principais pressupostos que desmitificam a fenomenologia e balizam sua utilização na Administração, vou brevemente relatar como eu procedi na elaboração da dissertação, involuntariamente eu confesso, que acabou me levando a fenomenologia. O caminho básico que eu percorri foi compreender como os sujeitos buscam sentido para o fenômeno (redução Eidética) e como é o sujeito que busca sentido (redução Transcendental). No primeiro caso o sujeito percebe o sentido das coisas ora imediatamente, ora com dificuldade de perceber. No meu caso uma grande parte dos sujeitos (feirantes e consumidores) percebiam o impacto que o fechamento das feiras trariam para a economia e para a cultura local - de forma imediata. Contudo, haviam entrevistados que não identificavam esse sentido tão facilmente, a destacar, a Associação Comercial, que pensava apenas no viés econômico.
     No intuito de entender o sentido das coisas, a essência, foi realizado uma pesquisa historiográfica, em jornais locais a partir da década de 50, que mostravam que historicamente, a cidade apresentou inúmeras vezes a abertura e o fechamento abrupto de diversas feiras. Contudo, as pessoas voltam a se rearranjar e a formar novas feiras. Essa pesquisa histórica foi realizada devido aos relatos dos próprios entrevistados que sinalizaram experiências de ódio, dor e de alegrias sobre toda a história da feira. Uma entrevistada de 37 anos, filha de feirantes, atual esposa de feirante e ex-participante da Feira Bras-Bol (uma espécie de camelódromo fechada em 2013, por cunho político, mas justificada devido ao incêndio da Boate Kiss), relatou: “Chegaram e acabaram com a feirinha (Bras-Bol) [...] também somos brasileiros. Somos filho desse país [...] vamos viver do que? Muitos estavam com raiva do prefeito e outros simplesmente estão correndo atrás de um novo espaço para trabalhar. É muito mais que dinheiro, tem tradição”. A redução eidética permite compreender, rapidamente, o problema econômico que tal fechamento proporcionou a todos os moradores, desde o cliente que não terá mais este canal para fazer suas compras, até o feirante que não terá trabalho. Porém, além da visão física do evento, temos a intuitiva, o ódio, o desespero e a preocupação que o fechamento trouxe. É nesse segundo ponto que a construção da dissertação foi centrada: em compreender o sentido das coisas. O sentido de ser fronteiriço; o sentido de ser feirante; a representação da feira para a sociedade.
     Após o fechamento da primeira feira (BRAS-BOL), a prefeitura nunca soltou uma nota oficial sobre querer, ou não, fechar as feiras livres. Contudo, como isto já era um fenômeno sentido pelos feirantes mais antigos e recorrente na história da cidade, a notícia passou a ser considerada como real (SCHÜTZ, 2002). Podemos fazer aqui uma alusão ao texto “Dom Quixote e o problema da realidade”, quando Schütz afirma que dentro de um espaço, tempo e causalidade ocorrerá o desenvolvimento de uma ação. Nos jogos, no faz de conta e no vamos fingir, um observador, assumindo papel de cientista, poderá interpretar que tudo o que está sendo dito é verdadeiro (redução fenomenológica), visto que, para os sujeitos, é assim que as coisas lhe parecem. Como sendo reais e passíveis de acontecer. Não é plausível subestimar o consciente dos entrevistados, pois, entre o sonho (o feirante em busca de melhores condições de vida) e a fantasia (o Brasil é visto como o local para realizar esse sonho) existem inúmeros subuniversos que aqui fazem fronteira com a realidade. São as ações introjetadas no consciente dos sujeitos que evidenciam sua ação, sua realidade. Logo, nós, enquanto pesquisadores, temos que ter a capacidade de interpretar a realidade do senso comum da vida cotidiana, pois, esta delineará a ação presente e futura. 
     E como acabou a dissertação? A aprovação unânime se fez presente mesmo frente a ausência de se assumir a postura fenomenológica (por escrita) na dissertação. A plateia era grande (cerca de 30 pessoas) e muitos (moradores locais frequentadores das feiras) já estavam fervorosos com os comentários de um outro avaliador. Essa observação realizada por mim, lá do palco, em um momento epifânio, só destaca a importância da fenomenologia em interpretar a realidade do senso comum (SCHÜTZ, 2002). Por tudo isso devemos desmitificar a fenomenologia como uma ciência irrelevante, sem rigor, baseada em senso comum. Ela pode se apresentar como de grande importância para a Administração. Ah... as feiras seguem firmes em suas dinâmicas territoriais.

QUESTIONAMENTOS:
1) Qual a importância da fenomenologia para a Administração?
2) O que é o fenômeno para a fenomenologia?
3) Quais os principais empregos da fenomenologia na Administração no Brasil?

REFERÊNCIAS
ALES BELLO, A. Introdução à fenomenologia. Bauru, SP : Eduse, 2006 
BOAVA, D. L. T.; MACEDO, F. M. F. Contribuições da fenomenologia para os estudos organizacionais. CADERNOS EBAPE.BR, v. 9, Edição Especial, artigo 2, Rio de Janeiro, jul. 2011
ESPIRITO SANTO, A. L. A comercialização de produtos agrícolas em Corumbá-MS: propostas para o fortalecimento da agricultura familiar e da feira livre. (Dissertação de Mestrado). UFMS. Mestrado em Estudos Fronteiriços, Corumbá, 2015.
HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados.
SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
SCHUTZ, A. Don Quixote e o Problema da Realidade In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SOUZA, M. S. V. B.; GUEDES, G. G. A fenomenologia como método de pesquisa em Administração. Universitas Gestão e TI, v. 2, n. 1, p. 47-58, jan./jun. 2012                                            

Fenomenologia parte 2: Ce n'est pas un rouge à lèvres: Gênero e Fenomenologia

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Mestrado Acadêmico Maria Eduarda Dias.

     O objetivo deste paper é apresentar considerações, apontamentos e principalmente reflexões acerca da questão de gênero, numa perspectiva social fenomenológica.
    Para a fenomenologia, diferente do que defende a corrente positivista, a consciência pessoal também constitui e percebe a realidade no estudo das Ciências Sociais. Neste caso, cabe primeiro a consciência individual interpretar os objetos que nos rodeiam. Quando se trata da questão do gênero, os objetos definidos como “femininos” ou “masculinos” se dividem e se propagam no consciente coletivo da sociedade. A “corrente da consciência” (Schütz, 1979, p.60) transforma o significado dos objetos. Toda a construção de gênero é algo que se inicia no consciente e transcende o real.
É claro que biologicamente, homens e mulheres possuem suas particularidades, mas a interpretação que é dada às cores rosa e azul (Figura 1) por exemplo, foi estabelecida pelo consciente coletivo. Para a fenomenologia, provar empiricamente que tal objeto consiste num simples batom - noema, o objeto em si (Figura 2), não é suficiente quando inserido na questão do gênero. Neste caso, o objeto adquire outros significados - noesis, as percepções sobre o objeto.

     Descartes e Kant já haviam trazido, antes de Husserl, a concepção das capacidades cognitivas e de reflexão, mas referindo-se apenas ao noema, o objeto real. Na fenomenologia, o caráter transcendental do ator de pensar também é abordado. A concepção de gênero, quando discutida no campo das Ciências Sociais, é um fenômeno que foi construído, e muitas vezes se modifica ao interagir com outros temas. Quando Latour (1994) utiliza a expressão “Fio de Ariadne” para discutir a conexão entre diferentes temas que se afetam mutuamente, também podemos encaixá-lo na questão de gênero, visto que se relaciona com outros campos de discussão, tais como sexualidade, preconceito, equiparação salarial, violência, participação política, etc. A fenomenologia traz a percepção consciente desses fenômenos interrelacionados, ou seja, o que é construído na consciência humana e o significado que damos a objetos e eventos de acordo com a nossa inserção em um espaço-tempo específico existem, se transformam e por muitas vezes interagem entre si.
    A temporalidade (Schutz,1979) afeta diretamente a trajetória do fenômeno do gênero. Por exemplo, em alguns países, as mulheres não podiam usar calças até o início do século XX, mas atualmente isso é comum. A questão do espaço em que o indivíduo se insere também afeta a construção de gênero, haja vista que a trajetória dessa discussão no Ocidente e no Oriente é muito diferente, devido às particularidades de cada cultura. Toda a história da construção de gênero é constituída de fases, que compõem atos de atenção (Schutz, 1979, p.63), momentos que ficaram no passado e se tornaram experiências vividas, como o Sufrágio Feminino. Hoje, tal direito foi conquistado em muitos países e se tornou um momento da história do caráter prático da construção de gênero na sociedade, que é (Schutz, 1979, p.75)
     a) incoerente: os interesses da sociedade mudam continuamente, e provocam transformações relevantes para o debate sobre gênero. Eventos vão ocorrendo e modificando constantemente o plano pré concebido sobre essa questão. Alguns símbolos da representatividade feminina, como Frida Kahlo na pintura, Bette Davis no cinema e Virgínia Woolf na literatura, demoliram toda uma concepção de gênero que fora pré-estabelecida antes de suas contribuições.
        b) apenas parcialmente clara: o ser humano tem uma certa resistência em saber as origens de um fenômeno, como ele se criou, quando e por quê. Não é a toa que obras que tratam de gênero, como o documentário “O corpo das mulheres”, que traz uma reflexão sobre a objetificação da mulher na mídia, ou o livro “Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir, geralmente são consideradas polêmicas.
       c) não está livre de contradições: resgatando novamente o “Fio de Ariadne”, o ser humano possui diversas opiniões sobre diferentes temas, de acordo com a sua relevância. A opinião individual que se tem sobre gênero pode - ou não - seguir um caminho lógico quando comparado à outros temas Por exemplo, nada impede um militante do movimento anti-racismo de ser machista.
     Mesmo ao se conectar com outros temas, a questão de gênero mantém suas particularidades. Ela pode ser considerada, quando observada pela metodologia fenomenológica, como um fenômeno social histórico que se manifesta de maneiras diferentes em cada cultura. Explicações biológicas não são suficientes para explicar todo o seu fenômeno, os sentimentos pessoais são relevantes. As experiências vividas por homens e mulheres são diferentes, dependendo da inserção temporal e espacial de cada indivíduo em uma determinada sociedade, e são elas - as experiências - que formam a estrutura desse fenômeno. No conto “A Mensagem”, de Clarice Lispector, é discutida através de metáforas a separação que existe entre os universos “masculinos” e “femininos”. Um garoto e uma garota, ao se tornarem amigos, começam a perceber que suas diferenças não se limitam ao seu sexo biológico, mas a questões maiores. O rapaz, ao tentar manter essa amizade, passa a tratar a amiga como um “camarada”. A hierarquização histórica do gênero, que “situa os homens numa posição de poder” (KUHNEN, 2014, p.02), pode ter sido o causador desse comportamento. Porém, a garota não se sente confortável com esse tratamento, ou, “(...)sobretudo a moça já começara a não sentir prazer em ser condecorada com o título de homem ao menor sinal que apresentava de… de ser uma pessoa.” [LISPECTOR, 1998, p.122].
Por causa do desejo que a moça apresenta de ser, antes de tudo, tratada como uma pessoa, os dois amigos falham ao se adaptar a esse sistema e acabam se separando. A separação dos dois ocorre em frente a uma casa, que pode ser interpretada como uma metáfora do fenômeno em si. A autora descreve a casa como alta, gasta e pesada; uma casa angustiada. Sua aparência levanta questionamentos:
“A casa era angústia e calma. Como palavra nenhuma o fora. Era uma construção que pesava no peito dos dois. Um sobrado como quem leva a mão à garganta. Quem? quem a construíra, levantando aquela feiura pedra por pedra, aquela catedral do medo solidificado? Ou fora o tempo que se colara em paredes simples e lhes dera aquele ar de estrangulamento, aquele silêncio de enforcado tranquilo?” [LISPECTOR, 1998, p.128-129]
     A pergunta “Quem?”, neste caso, traz uma inquietação: como esse fenômeno se originou, como se formou, quem o impôs? Seguindo a perspectiva fenomenológica, não há apenas um culpado. A separação dos universos “masculinos” e “femininos” se criaram conforme o tempo, e foram afetado por diversos fatores, construídos de maneira relativa em cada sociedade, em cada multiverso, com elementos considerados reais e não reais, mas que existem da sua maneira.
   Buscou-se neste ensaio, através de exemplos e imagens, provocar a reflexão sobre o fenômeno social do gênero que, apesar de influenciado por questões biológicas (mundo real), não se limita a elas. A Ciência Moderna, ao tentar demarcar aquilo que é, e que não é Ciência (Demo, 1985) foi incapaz de frear a metamorfose dos fenômenos, o “agora assim” e “agora assim” da temporalidade, o ato de “sentir o pensar” (Schutz, 1979). É como disse Virginia Woolf, no livro “Um Teto Todo Seu”: “Não há barreira, fechadura ou ferrolho que possas impor à liberdade da minha mente”. 

REFERÊNCIAS

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
KUHNEN, T. A. A ética do cuidado como teoria feminista. Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, Universidade Estadual de Londrina, maio de 2014.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LISPECTOR, C. A Mensagem. In Felicidade Clandestina. Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1998, 1º ed. 120p.-136p.
SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 
SCHUTZ, A. Don Quixote e o Problema da Realidade In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SOCIEDADE DOS ILUSTRADORES DO BRASIL. Seleção Batom, Lápis e TPM 2015. Disponível em: <http://sib.org.br/sib-news/selecao-batom-lapis-tpm-2015/> Acesso em: 24/04/2018