A Ciência do Poder

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de doutorado Ana Luiza Leite

Desde que nascemos, buscamos entender o mundo à nossa volta. Inicialmente, somos guiados pelas ideias e conhecimentos de nossos familiares, até que se esgotam e começam os “porque sim” e “porque não”. Todo esse poder dos adultos, essa influência, vai se perdendo aos poucos, quando vamos descobrindo que ninguém sabe de nada, isto é, que nenhum saber é exatamente seguro (BACON, 1979). E o mundo e a vida ainda são grandes incógnitas para todos. Aí buscamos o tal do poder, o tal do controle (necessidade intrínseca à natureza humana), na busca de novos conhecimentos, sem deixar de ter fé (o caminho é árduo). Buscamos a tal da ciência. Que a ciência é poderosa já sabemos. Desenvolvo esse ensaio a fim de exaltar a ciência moderna como uma Ciência do Poder devido às suas características.

Descartes (1979) entende que somos como um edifício projetado desde a infância por muitos arquitetos, ou seja, caso usássemos do raciocínio desde criança, o nosso relacionamento com o mundo poderia ser bem diferente do que se tem. Somos influenciados por ideias, opiniões, preconceitos, interpretações e intenções, bem como influenciamos os outros (BARBOSA et al., 2013). Ou seja, no sistema em que somos criados não precisamos raciocinar desde cedo, recebendo grande parte das influências justamente na infância. Ao longo do tempo, vamos construindo nossas próprias ideologias que estão carregadas de influência do que nos é apresentado, do que a ciência nos mostra.

Da mesma forma, no campo científico, somos influenciados por relações de força que estabelecem tendências e orientações para produção e reprodução do conhecimento (BARBOSA et al., 2013). Contudo, a Ciência Moderna nos apresenta que a ideologia mais inteligente é aquela que se escamoteia (ocasiona o desaparecimento sem que ninguém dê falta) na ciência e tem no intelectual uma figura importante na elaboração de argumentos de justificação do poder (DEMO, 1985). Isto é, na Ciência Moderna a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico (SANTOS, 1995).

O que tento apresentar, singelamente, aqui, é como a Ciência Moderna ganhou poder e força ao longo do tempo, isto é, como imiscuiu-se entre os homens sem ser percebido, de modo disfarçado e carregado de subterfúgios (BARBOSA et al., 2013). Descartes (1979) traz o entendimento que está mais próximo de ser verdadeiro, o simples raciocinar de um homem de bom senso a respeito das coisas do mundo do que a ciência que está contida em livros que reúnem opiniões de diversas pessoas. Mas então, como fazer ciência? Descartes e Bacon tentam nos mostrar a mais adequada forma de fazer ciência: racionalidade e experimentação, respectivamente. Assim, influenciaram pesquisadores, ganharam força, adquiriram poder, esbanjaram autoridade científica e construiu-se um paradigma dominante na ciência. Os dominantes são aqueles que impõem a definição de ciência e determinam que a realização ideal consiste em ter, ser e fazer aquilo que eles têm, são e fazem (BOURDIEU, 1976, apud BARBOSA et al., 2013).

Fonte: Bio Diversidad La (2017)

No campo da Administração, por exemplo, notamos um campo científico contendo lutas de poder, monopólios, estratégias, relações de forças, interesses particulares, de lucro etc. O próprio sistema de capitalismo agrega o apetite por novos conhecimentos, de simpatia pela experimentação e de uma robusta crença na exploração da natureza (KNELLER, 1980). Na nossa própria família, vivemos em uma hierarquia onde há constantes influências e autoridades. Ou seja, como a ciência não irá apresentar poder, se tudo a nossa volta (família, trabalho, escola, sistema econômico) está impregnado dele? Longe de esgotar as discussões, Barbosa et al. (2013) buscaram reafirmar o entendimento de que o fazer científico envolve uma atividade humana que possui vínculo indissociável com espaço, tempo e imbrica-se com jogos de poder.

Lembro-os que a Ciência é uma atividade humana complexa, histórica e coletivamente construída, que influencia e sofre influências de questões sociais, tecnológicas, culturais, éticas e políticas (KNELLER, 1980). Falamos, então, um pouco sobre algumas características da Ciência Moderna e seu envolto poder: corrigibilidade, objetividade e experimentação.

A corrigibilidade da Ciência é histórica na medida em que todo e qualquer enunciado ou conjunto de enunciados científicos está aberto à revisão ou substituição, à luz de novas provas ou novas ideias (KNELLER, 1980). Ah, o Poder da Humildade! Quando achamos que já temos todo o conhecimento, nos limitamos em aprender algo novo. Ou seja, tem que ter poder para convidar outros pesquisadores a realizarem correções e apresentarem novos estudos.

À medida que a Ciência foi crescendo tornou-se mais objetiva (KNELLER, 1980) e racional (DESCARTES, 1979). A objetividade e a racionalidade nos trazem o sentimento de fidedignidade, de certo, de adequado, de razão. Ora, o Poder estar justamente na razão, no entendimento, no pensar. Não é à toa que Penso, logo Existo, não é mesmo, Descartes?

A explicação, experimentação e demonstração com rigor também é uma característica importante na Ciência Moderna (BACON, 1979). Parte-se de uma hipótese e a consequente observação e classificação de um fenômeno em condições controladas. Condições controladas (humm) implicam poder. O que dizer, então, da quantidade de poder intrínseca a uma prova irrefutável?

Desta forma, a Ciência do Poder tem ganhado a dominação no modo de fazer ciência, conquistando o poder e o utilizando a seu favor ao longo do tempo. Contudo, conforme a continuidade do tempo e consequente evolução do conhecimento, a ciência tem passado por uma crise, onde surge um novo paradigma em busca do “poder”. A crise do paradigma da Ciência Moderna se explica por condições teóricas e sociais (SANTOS, 1995). A identificação dos limites, das insuficiências estruturais do paradigma científico moderno e o resultado do grande avanço no aprofundamento do conhecimento, permitiram ver a fragilidade dos pilares em que se funda (SANTOS, 1995). Os questionamentos que me resta são: o poder pode ser transferido a esse novo paradigma emergente? Terá esse novo paradigma características suficientemente impregnadas de poder?

Referências

BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. (trechos escolhidos)
BARBOSA, M. A. C. et al. Nem só de debates epistemológicos vive o pesquisador em administração: alguns apontamentos sobre disputas entre paradigmas e campo científico. Cadernos EBAPE.BR, v. 11, n. 4, p. 636-651, 2013.
BIO DIVERSIDAD LA. [Imagem de uma mão segurando o globo terrestre.], 2017. Disponível em: <http://www.biodiversidadla.org/Documentos/Contra_la_dominacion>. Acesso em: set. 2020.
DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
DESCARTES, R. Discurso do Método. In: René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
KNELLER. A Ciência como Atividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 15-29.
SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. Afrontamento, 1995.

Ativismo Científico nas Redes Sociais

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de doutorado Vanessa Regina Ostrowski

Em nossa sociedade moderna, com advento das mídias sociais, observa-se o surgimento de uma nova profissão: “influencer”; este profissional é um novo tipo de endossante, teoricamente independente, de comportamentos, atitudes. A existência dos influencers pode ser um grande problema para uma sociedade como a brasileira, pois inúmeros são aqueles que, munidos de ideologias, deturparam fatos, buscando adesão de um grande número de seguidores. Entretanto, esta pode ser uma oportunidade de a ciência aproximar-se da sociedade, pois a comunidade científica para além de discutir metodologias, epistemologias e ontologias precisa contribuir para o avanço da sociedade.

Por meio de plataformas de mídia social como Twitter, Instagram e Facebook os influencers ditam as preferências e os gostos de seus seguidores, sendo reconhecidos como líderes (FREBERG et al., 2011). Os influencers não possuem necessariamente uma formação na área ou áreas a respeito da qual opinam. Eles defendem seus pontos de vista e lidam com as expectativas de um público amplo e variado. Um público carente de ídolos que forneçam atalhos, respostas rápidas e informações instantâneas. Na defesa de ideologias, os influencers utilizam-se de informações incorretas, imprecisas, falaciosas e colocam uma capa de ciência objetiva para justificar seus posicionamentos.

Fonte: Horvath (2019)

A falta de conhecimento profundo nos temas, bem como a falta de reflexão a respeito das opiniões emitidas podem ser especialmente prejudiciais em sociedades pouco críticas como a brasileira. No Brasil, há um problema estrutural, qualidade da educação, apesar da narrativa de aumento dos investimentos no setor, os resultados do PISA (Programme for International Student Assessment) demonstram a estabilidade de resultados medíocres nas últimas duas décadas (ver: www.pisa.oecd.org) Os resultados demonstram o parco conhecimento dos conceitos de ciência e o letramento dos adolescentes brasileiros. Esta informação torna-se ainda mais preocupante quando nos atentamos que o teste é realizado com as escolas que tiveram o melhor desempenho no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio).

Segundo relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) de 2019 no Brasil, apenas 21% dos jovens entre 25 e 34 anos possuem ensino superior e entre pessoas de 24 a 64 anos, somente 0,84% concluíram o mestrado e 0,11% finalizaram o doutorado. Os baixos índices de educação formal demonstram a fragilidade do pensamento crítico da população em geral. Neste cenário, faz-se necessário que a comunidade científica também desenvolva seus influencers, ocupe espaço nas mídias sociais e dissemine a ciência de forma mais simples a sociedade, pois a linguagem acadêmica por vezes é inteligível ao não acadêmico.

Há em nossa sociedade grupos que fomentam a disseminação de conhecimento científico por meio de canais diversos, como documentários, revistas, reportagens com intuito de popularização da ciência. Esses canais buscam, por meio de linguagem comum, vídeos ilustrativos, por vezes divertidos, demonstrar conceitos científicos complexos ao público em geral. Estes influencers vêm ganhando espaço nas mídias sociais, canais como Nerdologia, Neurovox, Casa do Saber, Superleituras são canais de destaque nessa área. Quando a pessoa comum passa a compreender a ciência fica mais difícil ser captada por ideólogos. O fazer científico cada vez mais científico, mesmo que isso seja um ideal intangível (DEMO, 1985) deve ser buscado, assim como a divulgação ampla do conhecimento.

Fonte: Png Image (2020)

Desde a modernidade o conhecimento científico foi o tipo de conhecimento mais difundido na humanidade e propõe além de conhecer os problemas da humanidade resolvê-los, procura além de conhecer, transformar a realidade (SANTOS, 1988). A ciência não é soberana, pelo contrário ela se reconstrói e se reinventa constantemente, entretanto quando uma teoria é sancionada outras são caladas (DEMO, 2012). Esse movimento impulsiona o progresso da ciência e deveria ser puramente científico, contudo o conhecimento é uma fonte de saber e, como tal, está sujeito às relações interpessoais e subjetividades.

O saber é poder (BACON, 1973), esta frase já foi pronunciada por inúmeros pensadores e cientistas. Por isso, a comunidade científica tem como dever disseminar conhecimento e contestar ideologias que prejudiquem a sociedade como um todo. À medida que a ciência se desenvolve o homem percebe-se como possuidor da capacidade de dominar o mundo (KNELLER, 1980). Faz-se muito importante que esta percepção seja compartilhada pela sociedade como um todo não apenas por grupos isolados que podem manipular a sociedade em prol de suas causas. As mudanças na sociedade são acompanhadas pela ciência, os influencers são apenas mais uma mudança, uma adaptação pela qual iremos passar. Os influencers ideólogos são apenas mais um problema gerado pela própria ciência ao gerar soluções para a comunicação.

A ciência é histórica no sentido de que é um processo em constante evolução, à medida que novos conhecimentos são constituídos para solucionar problemas, novos problemas são gerados (KNELLER, 1980). Não haverá momento em que a ciência será superada, pois seu objeto de estudo é a realidade que está em constante mudança. A ciência tem como questão central explicar a realidade da melhor maneira possível, contudo esta explicação será sempre parcial e imperfeita (DEMO, 1985).

O avanço da ciência, as complexidades e incertezas da atualidade demandam um ativismo científico com intuito de divulgar a ciência em canais não tradicionais. A ciência além de formar cientistas deve formar influencers, comunicadores que possam traduzir a linguagem científica ao cidadão comum, que possa conquistar e apresentar os paradigmas científicos não como verdades absolutas, incontestáveis, mas como verdades que estão sendo construídas e reconstruídas com o passar do tempo (KNELLER, 1980).

Referências

BACON, F. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza (1620). Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, Livro XIII, 1973.
DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. Atlas, 1985.
DEMO, P. Ciência Rebelde: para continuar aprendendo, cumpre desestruturar-se. São Paulo: Atlas,2012.
FREBERG, K.; GRAHAM, K.; MCGAUGHEY, K.; FREBERG, L. A. Who are the social media influencers? A study of public perceptions of personality. Public Relations Review, 37 (1), 2011, 90–92.
HORVATH, V. [Digital Influencer: Como se tornar um Influenciador Digital e ganhar dinheiro produzindo conteúdo para Redes Sociais.], 2019. Disponível em: <http://agenciafirma.com.br/blog/digital-influencer-como-se-tornar-um/>. Acesso em: out. 2020.
KNELLER, G. F. A ciência como atividade humana. Zahar, 1980.
SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, 2 (2), 1988, 46–71.
PNG IMAGE. [Imagem de uma lâmpada com diferentes elementos vinculados às redes sociais]. Disponível em: <https://pngimage.net/fikir-png-8/>. Acesso em: out. 2020.