CORDEL EPISTEMOLÓGICO

Trabalho produzido pelos acadêmicos de doutorado, Hudson Oliveira, e de mestrado, Flávio Monteiro, sob a orientação da professora Carolina Andion, no comitê da aula sobre conhecimento e discurso sobre as ciências.


“ROMANCE E CRISE DA CIÊNCIA”


Fonte: Sev. Borges


I

FILHA DO MÉTODO E DA RAZÃO

A VAIDOSA DONA CIÊNCIA

DE SOBRENOME “NATURAL”

Fonte: J. Victtor


CASOU-SE COM UM RAPAGÃO

TAMBÉM CHAMADO CIÊNCIA

DE SOBRENOME “SOCIAL”


II


TIVERAM UMA LINDA FILHA

CHAMADA “CIÊNCIA MODERNA”

É OBEDIENTE AO MÉTODO

E DA RAZÃO É SUBALTERNA


Fonte: shutterstock.com


COM O POVO NÃO SE MISTURA

É CONSIDERADA ARROGANTE

ELABOROU UMA ESTRUTURA

O “PARADIGMA DOMINANTE”!


III


A TEORIA QUÂNTICA E O ANTIPOSITIVISMO,

O CONHECIMENTO SOBRE SI E OUTROS DESLIZES

ABALARAM IRREVERSIVELMENTE O PARADIGMA

QUE NUM CHILIQUE ENTROU EM CRISE


IV


FLERTA AGORA COM O SENSO COMUM

CABRA MUITO POPULAR

SE APROXIMANDO DAS GENTES

NO “PARADIGMA EMERGENTE”


V


DIZEM POR AÍ QUE OS DOIS VÃO SE CASAR

E SE APROXIMAR DO POVO E DO ARTISTA

SEMPRE JUNTOS MONTADOS NO LOMBO

DO JEGUE CHAMADO CIENTISTA!


Fonte: J. Borges

A teoria ator-rede e o fenômeno das fake news: uma fábula da pós-modernidade?

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Kely Mattos de Figueiredo.

A Teoria Ator-Rede (TAR), ou Actor-Network Theory (ANT), também conhecida como sociologia das associações, consiste num aporte teórico-metodológico que foi desenvolvido por Bruno Latour, Michel Callon e John Law, visando, a princípio, contribuir para os estudos de ciência e tecnologia através de um olhar aprofundado sobre as noções de espaço e lugar, de micro e macro, de estruturas e de interações locais. Interrompendo as noções de escala, ela vê conexões e articulações entre atuantes num espaço relacional plano. (LATOUR, 2012).

Tal teoria destaca-se por evidenciar a proposição hipoteticamente simétrica entre as relações humanas e aquilo que denomina como não-humanos, a exemplo de objetos, animais, fenômenos da natureza e artefatos materiais, ou seja, toda a variedade de elementos que perpassam a condição humana (LATOUR, 2012). 

Nesse sentido, quando os humanos se relacionam e interagem com os não-humanos, acabam por formar associações, produzindo, assim, os fenômenos sociais (LATOUR, 2012). Assim, a referida teoria compreende a sociedade como nada mais do que o resultado das muitas associações estabelecidas entre os citados anteriormente (LATOUR, 2012). 

Neste contexto de interação entre humanos e elementos não humanos, surge a problemática das fake news, fenômeno social proliferado principalmente nos últimos anos pela relação humano-tecnológica, cujas consequências são a proliferação, principalmente, de conteúdos falsos/extremistas e de cunho geralmente duvidoso. Contudo, é errôneo pensar que se trata de um fenômeno moderno: a desinformação (dito pela Unesco como o termo mais coerente a ser utilizado, apesar de muitos associarem o termo como sinônimo de fake news) é um velho conhecido das sociedades, embora tenha sido substancialmente nutrido por novas tecnologias (UNESCO, 2018).

Fonte: Artuzi (2019).
Neste sentido, é sabido que e a manipulação de informações era uma característica historicamente conhecida muito antes do jornalismo moderno estabelecer os padrões que definem as notícias como um gênero contendo regras particulares de integridade (UNESCO, 2018), contudo, o avanço das tecnologias e das mídias sociais contribuem para a repercussão rápida desse tipo de informação (UNESCO, 2018).

Posto isto, é de conhecimento dos mais “sabidos” que as tecnologias disponíveis hoje podem simplificar a manipulação e a fabricação de conteúdo, incluindo o protagonismo (e o papel de vilã) das redes sociais para ampliar diariamente as “verdades absolutas”, vendidas por Estados, políticos e entidades corporativas, e visando o compartilhamento e a credulidade da massa não-crítica (LATOUR, 2012). Desse processo, pode-se dizer que o estrago começa a tomar proporções largas para a desestabilização social – das micro às macro sociedades e/ou grupos.  

A questão é que a desinformação, em contexto de polarização, vem pouco a pouco dominando os contextos da vida cotidiana – seja pelo compartilhamento de alguma “corrente do WhatsApp”, ou a postagem de notícias sensacionalistas de fontes duvidosas, principalmente em redes sociais, como o Facebook. (UNESCO, 2018).

A consequência disso tudo é que o fenômeno da desinformação (ou demais sinônimos) vai ao encontro do que Latour (2012) chama de “social”: não se trata de uma coisa homogênea, muito pelo contrário; não distingue uma coisa das outras, “como um carneiro negro entre carneiros brancos, e sim um tipo de conexão entre coisas que não são, em si mesmas, sociais” (LATOUR, 2012, p. 23).

Assim sendo, tal conexão entre as redes estabelecidas faz parte o indivíduo ser o que ele é, sem o separar de suas ações – o que sugere a reflexão acerca do fato que a identidade dos indivíduos não existe sem a glória e a “desgraça social.” (LATOUR, 2012). Isso porque, segundo o autor, (1) se um indivíduo junto com demais criou recursos de comunicação e tecnologia pensando na agilidade das relações sociais; (2) e se o uso de tais recursos vem propiciando, igualmente, vantagens e distúrbios coletivos, (3) o resultado dessa fábula reavivada na pós-modernidade é culpa e também parte intrínseca de nossas vidas – individuais e coletivas.

Portanto, um dos objetivos pertinentes da TAR junto ao fenômeno abordado seria o de elencar possíveis olhares sobre como se engajar à educação da sociedade em tempos de pós-verdade. Assim, por exemplo, ao invés de se adotar uma abordagem puramente técnica e sistematizada, como a dos livros didáticos, pode-se procurar uma estratégia didática holística, isto é, ao invés de ensinar simplesmente que a terra é redonda ou que vacinas funcionam, é pertinente discutir quais são as evidências que sustentam essas ideias e como essa rede tenta ser desarticulada por programas concorrentes e vice-versa. Nesse contexto, pode-se discutir, também, as questões de poder e de disputa que envolvem as práticas sociais, incluindo a científica. (LIMA et al., 2019).

Ao atar os atores em suas redes, denota-se, assim, que aquilo que fortalece uma proposição é a rede que ela articula e não uma suposta objetividade. Assim, quando propostas alternativas se apresentarem para a opinião pública, elas terão que mobilizar uma rede satisfatória para fazer frente ao que já foi massificado. Essas medidas, contudo, não garantem que as pós-verdades serão abandonadas; mas, ainda que paulatinamente, busca contribuir para a formação de cidadãos com maior possibilidade de desenvolver um olhar reflexivo sobre o que lhes é apresentado. (LIMA et al., 2019; LATOUR, 2012).

À guisa de conclusão, cabe refletir a respeito do comportamento da sociedade frente a fenômenos amplificados e intensificados pelos artefatos tecnológicos, de modo que se seja possível a ressignificação de ações subjetivas daqueles que participam desta atuação-rede, formando cidadãos capazes de analisar criticamente não só as informações recebidas, mas o contexto que cerca e, de tal modo, discernir sobre os fatos, as consequências e, principalmente, questionar a bolha contemporânea que permeia a vida em sociedade. 

Referências:

ARTUZI, Thomás. [Imagem de pessoa sendo sugada por tela de celular.] In: GARATTONI, Bruno; SZKLARZ, Eduardo. Você tira o celular do bolso mais de 200 vezes por dia. Super Interessante, Comportamento, 23/09/2019. Disponível em: https://super.abril.com.br/comportamento/voce-tira-o-celular-do-bolso-mais-de-200-vezes-por-dia/. Acesso em: 17/11/2019.
LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria ator-rede. Bauru: EDUSC, 2012.
LIMA, Nathan Willig et al. Educação em ciências nos tempos de pós-verdade: reflexões metafísicas a partir dos estudos das ciências de Bruno Latour. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, v. 19, p. 155-189, 2019.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A
CULTURA (UNESCO). Journalism, ‘fake news’ & disinformation. France:
Unesco, 2018.

Pela indissociabilidade entre ciência, natureza e sociedade

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Camila Alves d’Avila.

A base dos problemas ambientais pode ser relacionada com o início da ciência: na busca de melhor compreender e dominar a natureza, o ser humano passou a distanciar-se dela. No século XVIII, o surgimento da Revolução Industrial fez com que essa situação se agravasse, uma vez que, por meio do racionalismo positivista e do princípio de eficiência, as noções de ordem e progresso eram propagadas enquanto motores da dinâmica social da época. Assim, esse movimento de afastamento ia se consolidando, ao passo que as pessoas se encantavam cada vez mais com os avanços da tecnologia e da ciência, conscientes apenas de uma realidade de curto-prazo (DE CAMPOS; PALMA, 2017). A produção do conhecimento, por sua vez, se referia às demandas estratégicas advindas de grandes indústrias, para contribuir na produção de novos produtos (FLORIANI, 2000). 

Aos poucos, as consequências desse ritmo desenfreado de produção começaram a emergir, trazendo consigo manifestações que defendiam um novo olhar sobre o desenvolvimento socioeconômico. Entre as décadas de 60 e 70, a proteção do ecossistema tornava-se pauta de estudos e debates, conquistando a atenção do público que assimilava sua relevância. Nesse contexto, os cientistas sociais não se mobilizavam suficientemente, fazendo com que o apoio por parte da academia se desse de maneira lenta. Foi só na década de 90 que as ciências sociais estabilizaram um bom nível de pesquisa e produção acerca do meio-ambiente. Em 1993, uma revista francesa chamada Nature, Science, Sociétés era lançada. Aqui, a noção de que essas três questões – natureza, ciência e sociedade – não deveriam ser desassociadas, começava a se legitimar (CHATEAURAYNAUD, 2015). Alguns anos depois, Floriani (2000) reforçava essa relação ao denunciar o poder de intervenção, por parte da ciência, na natureza e na sociedade:

uma das principais críticas dirigidas ao atual processo de produção do conhecimento científico deriva de sua hiper-especialização (leia-se fragmentação), trazendo graves consequências para o entendimento e a explicação da realidade, principalmente no domínio das ciências da vida, da natureza e também da sociedade; como as sociedades modernas estão apoiadas em bases produtivistas, ao conhecimento científico é imposta uma racionalidade instrumental, traduzindo-se em técnica intervencionista, tanto na natureza como na sociedade [...]. (FLORIANI, 2000, p. 5)

Dessa forma, dada a crescente consciência da indispensabilidade de um desenvolvimento sustentável, se fez urgente uma reconfiguração profunda na forma de fazer ciência, bem como nos paradigmas e nas interações sociais de forma geral. No campo científico, exaltava-se o preciso afastamento da “ciência pura”, totalmente livre de necessidade social, e da “ciência escrava”, dominada por demandas político-econômicas (MELO, 2011). A sociologia da ciência surge nesse meio, tendo como objeto de estudo os modos pelos quais as condições sociais influenciam a pesquisa científica e a difusão do conhecimento científico que, por sua vez, influenciam o comportamento social (BEN-DAVID, 1975).
Fonte: Tech Brasil Teaching School (2019).
Nesse campo, pode-se destacar a contribuição do antropólogo, sociólogo e filósofo Bruno Latour, reconhecido por defender a necessidade de construção de um novo mundo comum, coletivo e inclusivo. Em sua obra Politics of Nature (2004), ele formula a concepção de uma nova Constituição que ponderasse também os não-humanos, em nome da ecologia, e reafirma as conexões entre ciência, sociedade e natureza. Latour é principalmente renomado por ter sido um dos fundadores da Teoria Ator-Rede, que propõe uma redefinição do que se entende por “social” e dá total foco para a lógica das associações – também conhecida como sociologia das associações –, na qual humanos e não-humanos têm poder de agência. Assim, ator é aquele que produz ações para com sua rede que, respectivamente, é representada pelas conexões e interligações dessas ações (LATOUR, 2012; CHATEAURAYNAUD, 2015; DE CAMPOS; PALMA, 2017).

Ainda, por meio de sua afirmação de que “jamais fomos modernos”, Latour (1994) faz uma dura crítica ao racionalismo e a institucionalização de dicotomias, que buscaram purificar entidades e objetos, como exigência estabelecida pelo projeto epistemológico da modernidade. Ao verificar o trabalho prático da ciência, revela-se que essas polaridades são impossíveis de serem mantidas. Percebe-se, então, um rompimento do paradigma moderno da ciência, de padrão cartesiano e positivista, que reduz a complexidade dos fenômenos para compreendê-los de forma ordenada. Igualmente, a observação da realidade passa a ir além da ótica utilitarista e antropocêntrica, emergindo uma visão direcionada para a valorização do ecossistema em sua totalidade. Novamente, enfatiza-se que não é possível tratar a ciência, a sociedade e a natureza de forma isolada, pois estão intrinsicamente conectadas (MORIN, 2003; DE CAMPOS; PALMA, 2017).

Essa orientação sistêmica é fundamental para a promulgação dos princípios do desenvolvimento sustentável e abre um novo caminho para os estudos no campo da sustentabilidade, visto que essa “deve ser compreendida como um fenômeno complexo, a partir de conexões entre práticas heterogêneas, indissociáveis e em constante movimento” (DE CAMPOS; PALMA, 2017, p. 64). 

A partir dos argumentos aqui expostos, é esclarecida a relevância da sociologia da ciência, bem como da sociologia das associações, para o entendimento de que existe uma relação indissociável entre ciência, natureza e sociedade. Por sua vez, essa relação se faz importante para a consolidação de uma agenda socioambiental que, segundo Floriani (2000, p. 37), exige “o concurso desse diálogo interdisciplinar, no qual as ciências da vida, da natureza e da sociedade buscarão novas alianças”.

Referências:

BEN-DAVID, J. Sociologia da ciência. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1975.
CHATEAURAYNAUD, F. Environmental issues between regulation and conflict. Document de recherché du GSPR, Paris, EHESS, 2015.
DE CAMPOS, S; PALMA, L. Contribuições da teoria ator-rede para o estudo da sustentabilidade. Revista Metropolitana de Sustentabilidade, v. 7, n. 1, p. 47-67, 2017.
FLORIANI, D. Diálogos interdisciplinares para uma agenda socioambiental: breve inventário do debate sobre ciência, sociedade e natureza. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 1, p. 21-39, 2000.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
_____. Politcs of nature: how to bring the sciences into democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2004.
_____. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator rede. New York: Oxford University Press, 2012.
MELO, D. A agenda do professor pesquisador em administração: uma análise baseada na sociologia da ciência. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2011.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.
TECH BRASIL TEACHING SCHOOL. [Imagem de Globo terrestre.] Maestría: didáctica de la historia y la geografia em primaria. Tech Education, 2019. Disponível em:
https://www.techtitute.com/educacion/maestria/maestria-didactica-geografia-historia-educacion-primaria. Acesso em: 24/11/2019.

Da sociologia do conhecimento à sociologia da ciência

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de doutorado Marília Ribas Machado.

Neste short paper serão abordadas as perspectivas sociológicas de Merton e de Bourdieu, assim como, de que forma a sociologia da ciência de Bourdieu consegue realizar correspondências além da teoria proposta em Merton.

A ciência passou por uma crise há algumas décadas e, naquele momento, os filósofos (responsáveis pelo fazer científico) foram convidados a justificar a ciência como um meio de acordo com os fins da sua utilidade econômica. Segundo Ben-David (1975), a sociologia da ciência caracteriza-se por estudar os modos pelos quais a produção científica e a difusão do conhecimento científico sofrem influências das condições sociais, bem como, de que forma a ciência influencia no comportamento da sociedade. 

A partir disso, Merton definiu a ciência a partir de uma perspectiva sociológica, como uma atividade social, possuidora de suas regras e de suas normas institucionalizadas (BEN-DAVID, 1975). Com isto, Merton procurou definir o ethos da ciência, ou a ciência como um campo com certo grau de independência e separada das demais instituições sociais, ou seja, uma instituição autônoma que não sofre influências da política, da economia, da teologia.

Nesse sentido, Merton (2013, p. 182) destaca algumas das principais características da ciência, afirmando que a “ciência é uma palavra enganosamente inconclusiva, que se refere a uma variedade de itens distintos, embora inter-relacionados entre si”. Ele ainda declara que a ciência é comumente usada para denotar um conjunto de métodos característicos por meio dos quais o conhecimento é certificado; um estoque de conhecimento acumulado que se origina da aplicação desses métodos; e, ainda, um conjunto de valores e costumes culturais que governam as atividades denominadas científicas. 

Tais costumes que governam a atividade científica propõem fundamentos derivados de objetivos e métodos baseados em fundamentos morais e técnicos, fundamentalmente. Merton (2013) elenca quatro chamados imperativos institucionais, compreendidos pela ciência moderna para fundamentar a atividade científica: universalismo; comunismo; ceticismo organizado; e desinteresse. 

O universalismo delimita uma dimensão impessoal da ciência, ou seja, caracteriza-se por considerar que as alegações da sociologia do conhecimento devem ser submetidas a critérios impessoais e pré-estabelecidos. O comunismo diz respeito ao fato de que as descobertas da ciência são produto de uma colaboração social dirigida para a comunidade. O  ceticismo organizado questiona determinada rotina estabelecida, da autoridade, além dos procedimentos constituintes do campo. E o desinteresse é um elemento básico da ciência. Merton não nega que há interesse e competição na instituição científica, porém afirma que esses impulsos interessados encontram poucas oportunidades de expressar-se.

Nesse sentido, a ideia do fazer científico proposto por Merton remete a uma ciência que é autônoma, independente e separada das demais instituições sociais. Em contraposição a isso, Bourdieu (2013) estabeleceu o debate acerca dos campos científicos, caracterizando o campo da ciência - a instituição científica - como um ambiente de lutas, embates e poder, tal qual ocorre em outros campos sociais. Para Bourdieu, o campo científico é coordenado por um sistema de relações objetivas entre posições adquiridas através de lutas simbólicas, que se autonomizou (relativamente) do espaço social. Além disto, é um sistema constituído por relações objetivas entre posições adquiridas em lutas anteriores. É, segundo ele, um espaço de intensa competição entre os concorrentes do campo, ou seja, um campo formado por forças e por intensos conflitivos, com o objetivo de conservar ou transformar o mesmo. Desta forma, o que está em jogo, em disputa, são os monopólios da autoridade científica.

Nesta perspectiva, por serem ambientes de lutas e disputas,  prevalece a ideia de que o campo científico legitima formas específicas de interesse,  produz e reproduz habitus próprios daquele campo. E, ao contrário da sociologia proposta por Merton, Bourdieu mostra que a ciência não é desinteressada; é produtora de determinadas formas específicas de interesse, com o intuito de aquisição de autoridade científica (capital científico). Bourdieu (2013) afirma ainda que as práticas científicas somente mostram-se desinteressadas quando se referem a interesses diversos, exigidos por um campo distinto. Desta forma, o que chamamos de “interesse” por uma atividade científica tem sempre dupla face.

Referências:

BEN-DAVID, J. Introdução. In: BEN-DAVID, J. et al. Sociologia da ciência. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1975. p. 1-32.
BLOOR, D. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: Editora Unesp, 2009. Introdução.
BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2013.
MERTON, R. K. A ciência e a estrutura social democrática. In: MERTON, R. K. Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013.

Orçamento público e a pluralidade de ideias

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Julia De Marchi.

A Constituição Federal de 1988 traz ao cenário municipal brasileiro o princípio da “cooperação das associações representativas no planejamento municipal” (artigo 29, inciso XII). Esse princípio, mais tarde reforçado pelo Estatuto da Cidade em seu art. 44, apresenta a participação popular como fundamental na construção do orçamento público municipal. 

É através do orçamento público que a cidade planeja os seus próximos passos, definindo suas prioridades e objetivos, e todos os gastos durante cada ano deverão estar contemplados nele. Ou seja, o orçamento é uma das ferramentas mais importantes na gestão pública. É ela que determinará se uma escola ou um posto de saúde serão construídos naquele ano, por exemplo. 

Durante muito tempo difundiu-se a ideia de que a gestão pública era de responsabilidade exclusiva dos políticos e tecnocratas. Porém, se o orçamento é/deve ser um espelho das necessidades e prioridades de uma cidade, como o prefeito, vereadores e técnicos seriam capazes sozinhos de definir essas prioridades? Assim, o orçamento participativo é essencial para a construção de uma sociedade mais democrática. Com ele, o poder de decisão não fica restrito aos gestores municipais, passando a ser responsabilidade de toda a sociedade.

A teoria construtivista traz uma acepção acerca do conhecimento que pode ser utilizado para entender a importância do orçamento participativo. Essa teoria defende o pressuposto de que o conhecimento não é algo a ser aprendido, mas sim construído. Ou seja, essa forma de conhecimento baseia-se na interação do sujeito com o meio e, por conseguinte, com o objeto (KHUN, 1987). Ressalta-se que o construtivismo não é um método ou uma prática, mas sim uma epistemologia que parte da noção de que o sujeito constrói o conhecimento. 

Baseando a análise do orçamento participativo nesta teoria, fica claro que os gestores municipais não podem aprender as necessidades de uma determinada localidade usando como instrumento somente as leis e procedimentos técnicos. Esse entendimento será construído através das interações de cada indivíduo com o meio. Portanto, cada indivíduo experimentará essa interação de uma forma. 

Khun (1987) evidencia essa relação ao afirmar que duas pessoas diferentes podem receber os mesmos estímulos do ambiente/objeto e ainda assim terem sensações muito diferentes. Diante disso, podemos considerar que pessoas que vivem em uma mesma cidade ou até em um mesmo bairro, apesar de muitas vezes vivenciarem as mesmas situações, poderão ter sensações diferentes acerca do vivido. Essa multiplicidade de visões é de grande valia para a construção de uma cidade mais democrática. 

Nunes (1990) reforça que o construtivismo considera que tanto o ambiente social quanto o ambiente físico oferecem oportunidades de interação do sujeito com o objeto. Portanto, para a construção do conhecimento deve-se levar em conta o contexto que o sujeito está inserido, incluindo seus aspectos históricos, culturais e sociais. E essas interações geram conflitos, ou desequilíbrios, que levam a uma reestruturação das construções mentais já existentes no indivíduo (NUNES, 1990).
Fonte: Paris Musees (2016).
Isto posto, destaca-se que “todos esses processos são deliberados e neles procuramos e desenvolvemos regras e critérios. Isto é, tentamos interpretar as sensações que estão à nossa disposição para podermos analisar o que o dado é para nós” (KHUN, 1987, p. 241). Considera-se, então, que há certos padrões neurológicos em comum, ainda que isso não signifique que todos levem às mesmas interpretações.

Logo, não parece haver lógica na construção de um orçamento municipal de forma padronizada, tendo em vista apenas os mandamentos legais e com caráter top-down. Esse modelo de relação hierárquica do poder público com a sociedade, onde um é entendido como o sujeito e o outro o objeto, já não é mais válido. Ambos devem ser vistos como sujeitos na construção das cidades.

Assim, através da elaboração de orçamentos participativos, tanto a compreensão dos problemas municipais quanto a proposição de soluções e estabelecimento de prioridades serão definidos em conjunto com os principais envolvidos, os moradores. Há muito a se ganhar nessa interação, afinal, o que cada cidadão conhece a respeito de sua cidade não lhe foi ensinado, mas sim vivido no dia-a-dia, construído. Por isso, é preciso ampliar cada vez mais a participação popular no orçamento público, para que a cada ano tenhamos uma maior pluralidade de visões e percepções acerca das necessidades municipais, possibilitando a construção de políticas públicas cada vez mais próximas dos cidadãos. 

Referências bibliográficas:

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Congresso Nacional.
_____. (2001) Lei 10.257 de 10 de julho de 2001: regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília: Congresso Nacional.
KHUN, Tomas. Posfácio. In: KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 217-257.
NUNES, Terezinha. Construtivismo e alfabetização: um balanço crítico. Educ. Rev.,  Belo Horizonte ,  n. 12, dez. 1990, p. 21-32.
PARIS MUSEES. [Imagem de mãos e lâmpadas.] In: KOGAN, Ariel. Paris: uma referência em orçamento participativo 2.0. 19/10/2016. Disponível em: https://br.okfn.org/2016/10/19/paris-%E2%80%8Auma-referencia-em-orcamento-participativo-2-0/. Acesso em: 20/11/2019.