ANT and Beatles: de formigas a besouros

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Rafael Tachini de Melo

       Os Beatles são a maior banda de rock de todos os tempos, sua música é tocada em todas as partes do mundo, e um beatlemaníaco pode ser de qualquer idade, gênero, cor, classe ou cultura. No oriente ou no ocidente, sempre existirá um fã dos Beatles. Muitos dizem que a trajetória dos garotos de Liverpool influenciou a vida destes inúmeros fãs, em uma visão clássica de um fenômeno social sobre as pessoas, a cultura, a política, a sociedade em geral, a qual foi exprimida por Émile Durkheim. Mas será que foi dessa maneira?
      A teoria ator-rede, de Bruno Latour, conhecida pelo acrônimo em inglês ANT (Actor Network Theory) traz uma lente diferente para a mesma circunstância, e recria tal visão, de maneira a demonstrar que a inspiração dos Beatles na vida de um intitulado beatlemaníaco, que aqui me incluo, decorreu da sua atuação e das suas mais íntimas experiências pessoais, que encontraram essas clássicas canções. 
       Por outro lado, os argumentos de que os Beatles foram influenciados pelo movimento beatnik, pela religião hindu, e até pelo uso de drogas sintéticas também são falhos sob a perspectiva latouriana. Para chegar a essa conclusão, precisamos primeiro adentrar na confecção desta objetiva. Bruno Latour busca desconstruir o conceito de definição do fenômeno social, da ordem social, como fenômeno aparentemente supra existente que explica os mais variados aspectos de esferas consideradas “não sociais”, como direito, psicologia, economia, geografia, ou seja, a definição clássica de ciência do social, numa espécie de purificação dos elementos estudados. Para tanto, cria a visão de ciência das associações, indo na raiz latina da palavra social, socius que redefine a sociologia como sendo busca de associações, o social não é algo entre outros, mas sim um tipo de conexão entre coisas que não são, em si mesmas, somente sociais. 
    A sociedade moderna restringiu o significado de social às relações humanas. Em verdade o significado de social é muito mais que o contexto humano, e se entrelaça em associações e agregados de forma infinita. A primeira visão da sociologia teria confundido aquilo que devia ser explicado com a explicação. Ou seja, o contexto social não é a explicação para o direito, a biologia, a ciência ou a religião, mas cada um desses fatores associados explica o que é a sociedade. É esse o caminho da sociologia das associações que a teoria do Ator-Rede adota. Os atores não são meros informantes de tipos conhecidos, mas tem capacidade de elaboração das teorias sobre a constituição do social. Bebendo na fonte de Gabriel Tarde, a teoria do Ator-Rede busca recriar uma sociologia apta a justificar como a sociedade é, em vez de usar a sociedade para justificar um ou outro aspecto. 
    A teoria ator-rede portanto seria, inclusive, imparcial, ao considerar as percepções do ator e transformar a unificação de cada percepção e atuação das coisas (e pessoas) que compõem progressivamente e coletivamente um mundo comum, ao invés de impor leis e predefinições de fenômenos sociais, na visão de Durkheim, para se alcançar um “retrato social”. Ao mesmo tempo não é tão somente descritiva, tem caráter de ativação e política na influência e montagem do mundo comum. 
      Ao retomar a trajetória de cada membro dos Beatles, e sua própria composição, verifica-se uma profusão de associações pessoais, familiares, políticas, legais, científicas que formaram o mundo comum deles próprios e de milhares de pessoas. Paul e John foram apresentados por um amigo em comum, pouco antes da apresentação da banda Quarrymen, que tinha John Lennon como líder, em uma festa da St. Peter’s Church.

Uma despretensiosa foto daquela apresentação, que marca um dia histórico 
      Enquanto George Harrison e Ringo Starr cresceram em famílias com pai e mãe, Paul McCartney perdeu sua mãe ainda quando criança, e John Lennon foi criado pela Tia Mimi, e acabou por conhecer sua mãe apenas na adolescência, descobrindo da maneira mais traumática possível, que ela morava a poucos minutos a pé da sua casa, mas ia visitá-lo com pouca frequência, chegando inclusive de ônibus para dar a noção de uma distante viagem. 
   A ausência da presença materna na vida de Lennon/McCartney os levou à música como passatempo, fuga e paixão em inúmeras tardes de composição na adolescência. Um paradoxo na vida de John, é que apesar da ausência de sua mãe, ganhou justamente dela o seu primeiro banjo. George Harrison conheceu os dois no ônibus que os levava para a escola. Ringo Starr integrou a banda apenas quando esta estava na iminência do sucesso, diante da insatisfação dos demais membros com Pete Best, o então baterista dos Beatles.
      Sobre Ringo, marcante é o fato de que poderia ter morrido em um bombardeio da Segunda Guerra Mundial, ainda criança, pois a segunda casa ao lado da sua foi completamente destruída por uma bomba. A atuação de milissegundos para frente ou para traz de um artilheiro alemão em uma aeronave nazista definiu a trajetória da banda.
      Mergulhados na saída da adolescência, nos seus vinte e poucos anos, o grupo galgou ao sucesso por meio de músicas que falavam de amor e relacionamento, como Love me do (1962), She Loves you, I want to hold your Hand (1963) e And I Love Her (1964). Neste ponto, interessante um aparte. Com base na teoria do ator-rede, a influência que as músicas têm na vida das pessoas não é de cima para baixo. Não vou buscar ou amar alguém somente pelo contexto da música que ouvi, mas sim por experiências pessoais e musicais, que acabam por influenciar o jeito de pensar e agir do indíviduo e sua relação com tudo a sua volta e moldar o coletivo e o mundo comum.
        A vontade de cada indivíduo em ver os Beatles levou à formação de um jeito até então inédito de se bandas se apresentarem: um concerto em um estádio. Em Nova York, em 1965, o Shea Stadium foi palco do maior show até então realizado, que alcançou 55.000 (cinquenta e cinco mil) pessoas, público que até hoje poucas bandas conseguem alcançar.
       A catarse e a histeria em volta dos Beatles nada mais é que tudo e todos, com a bagagem de suas experiências e relacionamentos, agindo para formar o coletivo e o mundo comum. Em que pese tudo não passasse de barulho e caos, como testemunhado pelo próprio Lennon, até a fabricante de caixas de som à época desenvolveu o então alto falante mais potente do mundo especialmente para o show. Elementos considerados pela ciência moderna sociais e naturais (tecnologia), entrelaçados, moldaram aquele cenário. 
      O show quase não ocorreu, pois era necessário um depósito de 50 (cinquenta) mil dólares, quantia exorbitante na época, sendo que o produtor americano responsável desenvolveu um método de venda inédito até então para shows, anunciou a pré-venda de ingressos para atingir tal quantia. Este show marcou as percepções de cada beatle até onde tinham chegado e no que tinham transformado a experiência musical para os demais. Um tanto quanto barulhenta e não contemplativa. E eles começam a falar das suas angústias através de músicas.
      Em Help (1965), pedem um socorro ante a maratona de shows. A percepção dos besouros, como atores, de como se transformaram comercialmente, a necessidade deles de ir atrás das suas essências decorrentes de vivências e angustias pessoais e profissionais mudou a forma de eles fazerem música. A busca pessoal de novas experiências e a complexidade das experiências de suas vidas os levaram a parar as turnês e compor músicas focadas no passado e na reflexão.
     Uma tríade de sucessos com esse mote surgiu: Eleanor Rigby (1966) era o nome escrito em uma lápide de um cemitério da Igreja tal, em Liverpool, onde John, Paul e George, ainda adolescentes, costumavam beber escondidos, e inventavam histórias sobre as pessoas falecidas. Penny Lane (1967) era a rua nas redondezas de onde John, Paul e George passaram a infância, onde havia o banco, a barbearia e a igreja que frequentavam, tudo descrito na canção. Strawberry fields forever (1967) falava do orfanato próximo da casa de John, que quando adolescente, costumava invadir, muitos dizem para brincar, outros para vandalizar a instituição, mas todos concordam que se reconhecia nas crianças, por também não ter pai e mãe presentes.
      No álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967) os Beatles fazem uma desconstrução, sob a alcunha de uma banda alter ego, apresentando as inúmeras influências que permearam a vida de cada um. Figuras políticas, religiosas, do esporte, da música, da cultura em geral, de amigos pessoais e inclusive os próprios Beatles. Esta capa é o retrato claro de que a vivência pessoal de cada um deles os levou até onde estavam, e formou o mundo comum dos beatlemaníacos, que viveram este álbum. É a última expressão da consecução da teoria ator-rede

Capa do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band 
       No final da carreira da banda, o relacionamento entre os integrantes estava desgastado, e as experiências diárias levaram à composições clássicas e marcantes, mas que expressaram o humor daquele momento, como Let it Be (1969), expressão que fala em “deixar estar”, para não se preocupar que tudo vai dar certo [caso a banda termine], e I’ve got a feeling (1970), uma música que trata, ao mesmo tempo, de amor, humor e de consolo, ao falar que todo mundo passa por momentos difíceis e engraçados na vida.
    A trajetória dos pequenos besouros soa como o pequeno trabalho de Latour como formiga na formação do mundo comum. Eles se tornaram famosos, apaixonantes, instigantes, mas tudo isso adveio das suas experiências e vivências no seu meio, no seu inter-relacionamento com o mundo pessoal, local, cultural, religioso, social, científico, técnico, etc., não se podendo conceber que o “contexto social”, seja lá o que seja isso, é que foi o fator de criação desta marcante expressão musico-cultural do século XX ou de sua legião de fãs.


Referências.
DAVIES, Hunter. As letras dos Beatles - A história por trás das canções.Tradução de Maria da Anunciação Rodrigues. São Paulo: Planeta do Brasil, 2016.
DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007
HEWITT, Paolo. Love me do – 50 momentos marcantes dos Beatles. Tradução de Leandro Woyakoski. Rio de Janeiro: Versus Editora, 2014.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LATOUR, B. Reagregando o Social. Uma Introdução à Teoria do Ator Rede. New York: Oxford University Press, 2012.
PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. O criticismo Kantiano e O positivismo In: PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da Filosofia. São Paulo: Mehoramentos, 1990 (trechos escolhidos).

O Fantástico da Ilha de Santa Catarina: A complexidade das pedras do Itaguaçu

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Mestrado Acadêmico Maria Eduarda Dias.

O objetivo deste ensaio é observar que as pedras do Itaguaçu, bairro localizado em Florianópolis, apesar de imóveis, são capazes de transitar entre diferentes campos de conhecimentos científicos, e desta forma construir identidades múltiplas e complexas.
O bairro Itaguaçu localiza-se na parte continental da cidade de Florianópolis. De origem tupi, seu nome significa “Pedras Grandes”, o que pode ser explicado por seu horizonte repleto de enormes monumentos rochosos espalhadas pelo mar. Segundo Alencar (2013, p.85) "A paisagem encontrada na praia do Itaguaçu é composta por seixos, blocos e matacões de rochas “arredondados” que suscitam no imaginário popular uma ideia de empilhamento antrópico".
Geograficamente, a riqueza das formações rochosas de Itaguaçu constituídas no decorrer da história constituem em um belo cenário, que pode ser contemplado na Figura 1.

Figura 1 - Formações rochosas do bairro Itaguaçu
Inspirado nas belas paisagens de seu bairro nativo, o historiador e artista Franklin Cascaes coletou através do método de história oral lendas sobre a personalidade mística deste conglomerado de rochas. Entre a coleta de dados culturais de Cascaes, existe o conto de uma briga entre bruxas festeiras e um diabo invejoso, que acabou por resultar na formação das tais rochas dos Itaguaçu, como é visto na Figura 2.


Figura 2 - Placa fixada em uma das pedras da praia de Itaguaçu
A união entre o deleite contemplativo destas formações rochosas e o entretenimento de lendas místicas passadas de geração a geração, faz desenvolver o potencial turístico e econômico do bairro. Passeios turísticos são realizados com frequência na região, monumentos em homenagem à Franklin Cascaes foram erguidos e o comércio local se mantém. O restaurante Recanto das Pedras é um ponto turístico essencial do bairro, por apresentar a gastronomia local e também proporcionar uma vista privilegiada, como pode ser apreciada na Figura 3.

Figura 3 - Bairro Itaguaçu, em Florianópolis
Diante desta sucinta descrição do bairro Itaguaçu, é possível perceber a multiplicidade de papéis que o território adquiriu a partir das formações rochosas do local. Latour (1994) ao evidenciar a presença de elementos não humanos, reconhece a influência desses objetos na realidade e nas interações sociais. A Guerra das Ciências, evidenciada por Demo (1985), retrata a priorização das Ciências Naturais às Ciências Sociais no decorrer da história e o predomínio do pensamento cartesiano, de “tentar conceber um universo que fosse uma máquina determinista perfeita” (MORIN, 2003, p.58). Todavia, explicações centradas exclusivamente em fatos reais e palpáveis nem sempre conseguem explorar um campo de causa de maneira abrangente, devido à sua complexidade. Retomando o exemplo deste ensaio, os aspectos geológicos e geográficos das formações rochosas são essenciais para que se compreenda o mundo real, mas os mitos que surgiram através delas também fazem parte da realidade local, da cultura do povo “manezinho”. Morin (2003, p.64) reconhece a importância das descobertas feitas pelas Ciências Naturais, mas, ao contrário do Positivismo, considera também a complexidade das Ciências Sociais e da autonomia humana: 

A noção de autonomia humana é complexa já que ela depende de condições culturais e sociais. Para sermos nós mesmos precisamos aprender uma linguagem, uma cultura, um saber, e é preciso que esta própria cultura seja bastante variada para que possamos escolher no estoque das idéias existentes e refletir de maneira autônoma. Portanto, esta autonomia se alimenta de dependência; nós dependemos de uma educação, de uma linguagem, de uma cultura, de uma sociedade, dependemos claro de um cérebro, ele mesmo produto de um programa genético, e dependemos também de nos sos genes.

O sistema de símbolos artificiais da nossa sociedade geram um estoque de dados, e a Demarcação Científica (Demo, 1985) visa categorizar o que é e o que não é Ciência. Obcecados pela razão e guiados pelo pensamento cartesiano, os filósofos do século XVIII, acabavam por nutrir uma espécie de “paranóia”, que os impedia de compreender os mitos, a religião, enfim, elementos metafísicos que constituem a identidade humana, de maneira profunda. Essa busca incessante por responder de maneira objetiva e factual uma lista infinita de “por quês” limitava a compreensão mais abrangente de algumas questões. Desta forma, conforme Le Moigne (2003), na abordagem do Paradigma da Complexidade, a razão pura criticada por Kant vai do “por quê?”, para o “por quê não?” Por quê não dar a mesma relevância às diferentes comunidades científicas e seus paradigmas, perceber as suas contribuições, as suas formas de explicar o mundo, formas estas que se complementam e interagem? Quando preservar a cultura local se torna um mero hobby e não uma preocupação científica, muito do nosso conhecimento sobre o mundo se perde.

O trabalho de Franklin Cascaes comprova essa afirmação, através dos dados de história oral compilados e preservados em suas obras, que quase se perderam com o passar dos anos, pela falta de pesquisa, de registro, de apropriação das Ciências Sociais neste campo. Mas não cabe apenas aos Sociólogos tal exercício. Morin (2003, p.75) afirma que “(...) o sociólogo é uma parte desta sociedade. O fato de ser detentor de uma cultura sociológica não o coloca no centro da sociedade. “
Quando Schutz (1979) traz com a Fenomenologia a concepção de multiversos, a cultura local “manezinha”, é um dos multiversos que constituem Florianópolis, uma ilha tão complexa quanto o próprio conceito de Sujeito. Desta forma, por quê não cabe ao Sujeito Cidadão preservar a cultura das cidades, ao colocar-se no centro de seu próprio mundo, saber e procurar entender sua existência e aquilo que faz parte de sua história? Uma Floripa natural, cultural, universitária, mística, tecnológica e turística, transcende aquilo que consegue ser explicado pelos paradigmas científicos cartesianos, pois pertence a cada indivíduo de uma forma particular, de acordo com a sua história e as suas experiências e se transforma a cada momento, em uma construção contínua. As pedras do Itaguaçu, apesar de imóveis, tem seus significados transformados em conjunto com o Sujeito e com a cidade, e formam um ecossistema vivo e dinâmico: um paradigma complexo.


REFERÊNCIAS


ALENCAR, R. A Geodiversidade da Ilha de Santa Catarina: Explorando seu valor didático no 6º ano do ensino fundamental. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Geografia, Florianópolis, 2013
CASCAES, F. O Fantástico da Ilha de Santa Catarina. Coleção Repertório, Ed. UFSC, Florianópolis, 2015, 272p.
DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987, p.217-257.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LE MOIGNE, J-L. O construtivismo em construção In: Le constructivisme: modeliser pour comprendre. Paris: L´Harmattan, 2003 (tradução livre por Carolina Andion).
MORIN, E.. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 2003 (Cap. 3 e 5).
SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

Limites da cooperação científica.

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Doutorado Fernando Zatt Schardosin

     O conhecimento é entendido como ato de perceber ou compreender por meio da razão ou da experiência, entendimento no qual o ato de perceber se dá através do notório, por intuição ou perspicácia, e no qual, o ato de compreender se dá pelo uso do intelecto, cuja capacidade permite o entendimento. Em decorrência da amplitude do conceito, apresenta-se o conhecimento com inúmeras formas, dentre as quais, o entendimento da aquisição por meio da razão, por meio da experiência, por meio do amor ou então pela dor, pelas letras ou pela observação.
O conhecimento pode ainda ser produzido e disseminado de dois modos, formal e informal, as organizações são uma das maneiras de conduzir ao conhecimento formal, que podem ser universidades, institutos, empresas, revelando que não existe uma única fonte, mas várias, a fonte do conhecimento possui proteção, dada pelos direitos de propriedade, o que impossibilita, por exemplo, que uma frase dita por mim, seja propagada por outros, sem a devida citação da fonte. Os direitos assegurados possibilitam exclusividade de uso ao seu detentor e ainda, de modo frequente, de não uso para os demais (MERTON, 2013).
    Se esta relação for ampliada para os objetos desenvolvidos a partir do conhecimento, passa a representar um caráter econômico, pois os ganhos auferidos foram proporcionados por meio da tecnologia de outrem, desenvolvida através do conhecimento daquele, não bastando uma referência há quem desenvolveu primeiro, passa a ser necessária a contraprestação financeira. Existe, portanto, um conhecimento de base, que promove a ciência e proporciona entendimento a todos os demais, incluso a ciência universitária, mas não somente ela, também a linguagem, cultura, moral. Existe, ainda, o conhecimento aplicado, que emprega o conhecimento de base de uma forma apropriada a algo novo, que será detido como propriedade de quem idealizou esta aplicação, monetizando-o.

     Bloor (2009) corrobora com o entendimento de ciência de base ao tratar do conhecimento científico como gerado a partir de teorias, pelo qual, o avanço científico só pode ser alcançado mediante a partilha e o compartilhamento do conhecimento, quanto maior o nível de “tráfego” de conhecimento, maior é o avanço proporcionado. O objetivo deste paper é apresentar as vantagens da cooperação cientifica analisando os limites do avanço tecnológico dado pelos direitos de propriedade, com referência aos trabalhos de Merton, Bloor e Bourdieu.
      Os cientistas têm sido movidos pela paixão pelo conhecimento, curiosidade, altruísmo, benesses para a humanidade e outros motivos especiais (MERTON, 2013), ao contrário, para Bourdieu (2013) os interesses remetem ao prestígio, reconhecimento e celebridade, voltados para aquisição de autoridade científica, formando capital específico. Esta autoridade pode ser acumulada, transmitida, porém, a acumulação é desigual, cuja apropriação do produto do trabalho científico depende do conjunto de meios disponíveis de produção científica (BOURDIEU, 2013).
Alguns trabalhos têm concentrado esforços a fim de desvendar as potencialidades da cooperação científica, dentre os mais recentes, podemos citar (BENTO et al., 2014), (CAPOBIANGO et al., 2011) e (CARVALHO et al., 2014), cujos focos se concentram nas redes de cooperação entre pesquisadores no país, enquanto os trabalhos de (FARIA e DA COSTA, 2006) e (MOURA e PINHEIRO, 2009) se concentraram na cooperação científica internacional.
A comunidade científica está reunida em grupos de pesquisadores que possuem afinidades em relação ao objeto de seus estudos, com ou sem proximidade física, se encontram, debatem, pesquisam e escrevem, cujos resultados são apresentados a toda a comunidade cientifica por meio de publicações, para Merton (2013) a omissão de descobertas científicas é um fato condenável, pois justamente esta é uma das maneiras de promover a colaboração entre as gerações, tanto atuais, como passadas, a fim de ampliar as fronteiras do conhecimento e o reconhecimento ao trabalho desenvolvido. Bernal (1939) citado por Merton (2013) afirmava que a ciência moderna somente cresceu a partir do rejeição do segredo.
A colaboração entre cientistas e a publicação não se restringem somente a cooperação para a construção da ciência, mas também a verificabilidade do que está sendo proposto ao escrutínio de outros cientistas que desenvolvem pesquisas no campo, podendo afirmar a assertividade do autor em razão dos pontos de criticidade aceitáveis para determinados tipos de trabalhos (MERTON, 2013), em uma espécie de controle social.
Um elemento importante se coloca nesta égide, pois o cientista não se encontra frente-a-frente com seu interlocutor (MERTON, 2013), representando uma dificuldade a mais no repasse de informações para transformação do conhecimento, cuja única ferramenta é a linguagem comunicativa expressa no trabalho publicado. Para o pesquisador ter a certeza que estava no caminho correto precisará aguardar as críticas, feitas do mesmo modo e pelas mesmas ferramentas, de que se utilizou. Para Bourdieu (2013) isto é especialmente interessante a medida que o interlocutor sendo pertencente a comunidade científica é também “concorrente”, sendo além de juiz, parte interessada.
Esta concorrência entre os cientistas conduz ao produtivismo acadêmico exagerado, no qual existem precipitações de cientistas em colocar determinados trabalhos em apreço, em decorrência da possibilidade de serem ultrapassados por outro membro da mesma comunidade (BOURDIEU, 2013), recomendando cautela em relação aos resultados apresentados, pois podem estar apresentados parcialmente.
Contudo, as descobertas apresentadas pela ciência são produto resultante da colaboração entre pesquisadores para a comunidade (MERTON, 2013), por outro lado, a ciência é um território em disputa, “mais ou menos desigual”, pois os agentes não possuem o mesmo nível de capital específico, cuja capacidade de apropriação do produto do trabalho é diferente entre os pesquisadores, em detrimento dos “concorrentes” que colocam em ação o conjunto de meios disponíveis para a produção da ciência (BOURDIEU, 2013). Existem evidências de que os conteúdos das teorias científicas estão conectadas ao desenvolvimento econômico, técnico e industrial, assim como existem evidências de conhecimentos não-científicos influenciando o conhecimento científico (BLOOR, 2009)
Não foram apresentados indícios de individualismos na produção da ciência neste paper, pelo contrário, ficou evidente que a ciência é uma área colaborativa, por outro lado, esta colaboração ocorre em uma relação dicotômica cooperação – competição, difícil, portanto responder qual promove o melhor resultado, pois, embora a primeira seja mais saudável, a segunda estimula a produção pelo medo, de ser ultrapassado, da perda de prestígio. Necessário se faz, reestabelecer os princípios que regem a ciência, reexaminando os seus fundamentos para reestabelecer os seus objetivos (MERTON, 2013), como a ciência precisa estar em constante evolução, e deve ser realizada coletivamente, a promoção da cooperação ganha espaço para exercer este papel.
Os direitos de propriedade são importantes para a preservação dos direitos de autoria, preservando quem idealizou, por outro lado, pode coibir a atividade colaborativa entre pesquisadores, em razão da falta de confiança nos pares, aliado a competição, pode sentir-se impossibilidade de compartilhar ideias, independente da organização, seja universidade ou indústria, porque este pode ser utilizado por outrem, fornecendo-lhe maior prestígio. Um exemplo, diz respeito aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, que tem sido apropriados pela indústria para geração de produtos e consequente patentes corporativas destes conhecimentos, mobilizando a comunidade internacional para salvaguardar juridicamente os direitos destas populações do uso e preservação dos conhecimentos tradicionais (PRONER, 2009).

Referências

BENTO, F. M. S.; BENTO, F. M. S.; BENTO, F. M. S. Search 4.0: Scientific information search and discovery new dynamics and ways of colaboration amongst researchers. Perspectivas em Ciência da Informacao, v. 19, n. 2, p. 4-14,  2014.  
BLOOR, D. Conhecimento e imaginário social.  São Paulo: Editora Unesp, 2009.
BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Ed.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2013. 
CAPOBIANGO, R. P.  et al. Scientific cooperation network analysis through the coauthors studies of the published articles in Anpad events about the assessment of the public policies. Revista de Administracao Publica, v. 45, n. 6, p. 1869-1890,  2011. 
CARVALHO, M. S.; TRAVASSOS, C.; COELI, C. M. Collaborative scientific research networks. Cadernos de Saúde Publica, v. 30, n. 2, p. 226,  2014.  
FARIA, L.; DA COSTA, M. C. International scientific cooperation: Styles of action adopted by the Rockefeller and Ford Fundations. Dados, v. 49, n. 1, p. 159-191,  2006.  
MERTON, R. K. A ciência e a estrutura social democrática. In: MERTON, R. K. (Ed.). Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013.
MOURA, M. A.; PINHEIRO, M. M. K. Ciencia of the Informacao and cooperacao cientffica internacional: Dialogs Franca-Brasil. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 14, n. SUPPL., p. 1-4,  2009.  
PRONER, C. Direito de patentes e conhecimentos tradicionais dos povos indígenas. 2009.  Disponível em: < http://conceptos.sociales.unam.mx/conceptos_final/464trabajo.pdf?PHPSESSID=f07ebddbcc347c2f451074e166a9ee85 >.

“O Neopositivismo do Círculo de Viena, o Neo-racionalismo de Popper e o Estruturo-funcionalismo de Parsons” (Parte 3)

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Doutorado Patricia Rodrigues da Rosa.

Os textos desta aula tratam de diferentes temas que, no entanto, possuem ligações entre si. Abordam o Neopositivismo do Círculo de Viena (DORTIER, 2000), influenciado pela obra de Wittgenstein (1961) e toda sua objetividade com relação aos “fatos”, o Neo-racionalismo de Popper (1979), que também é influenciado pelo Círculo de Viena/Neopositivismo (bem como o critica), assim como exerce influência no Estruturo-funcionalismo de Parsons (1967). Pode-se dizer que o denominador comum entre os diferentes autores é a objetividade com a qual tratam os fatos/as coisas e fazem ciência.

Conforme Dortier (2000), o Círculo de Viena em sua “concepção científica do mundo” acredita que somente a ciência baseada na demonstração rigorosa e na observação dos fatos pode fazer avançar o conhecimento. Rejeita a metafísica e acredita que o conhecimento científico ocorre a partir de proposições lógicas e matemáticas (não ligadas à experiência) e de proposições empíricas, baseadas em fatos, que devem submeter-se a critérios de verificação para serem consideradas verdades.

Neste ponto é possível identificar a influência do pensamento da corrente positivista, constante nos textos de Comte (1979), Durkheim (2007) e Padovani e Castagnola (1990), estudados na disciplina de Epistemologia. Para Comte (1976), o método “positivo” ou científico, uma “evolução” com relação ao estágio metafísico, requer o estado de observação empírica, muito semelhante àquele concebido para as ciências naturais. Os fenômenos sociais podem e devem ser percebidos como os fenômenos naturais, obedecendo a certas leis gerais, embora não reduzindo-se ao materialismo. Há, portanto, a crença em certa invariabilidade dessas leis e na previsão racional dos fenômenos. Comte (1979) prevê a necessidade de observação e de imaginação na ciência, porém com a necessidade de confrontar a subjetividade com a objetividade, sendo esta última característica a desejada. O “espírito” positivo e do bom senso é real, útil, certo, preciso e positivo (como contrário ao negativo, levando a filosofia moderna não a destruir, mas a “organizar”).

Além das características do pensamento de Comte (1979), foi possível identificar nos textos várias menções ao estudo dos “fatos”, de forma objetiva. Isso remete também a Durkheim (2007), que desenvolveu o método para estudo dos fenômenos sociais/da vida social dentro da ótica positivista e suas leis gerais, trabalhando com o conceito de “fato social”. Nas suas palavras, o seu principal objetivo é “estender à conduta humana o racionalismo científico, mostrando que, considerada no passado, ela é redutível a relações de causa e efeito que uma operação não menos racional pode transformar a seguir em regras de ação para o futuro” (DURKHEIM, 2007, p. XIII-XIV). Segundo o autor, os fatos sociais devem ser tratados como “coisas”, observando que a coisa se opõe à ideia assim como o que se conhece a partir de fora se opõe ao que se conhece a partir de dentro. É coisa todo objeto do conhecimento que não é naturalmente penetrável à inteligência, tudo aquilo de que não podemos fazer uma noção adequada por um simples procedimento de análise mental, tudo o que o espírito não pode chegar a compreender a menos que saia de si mesmo, por meio de observações e experimentações, passando progressivamente dos caracteres mais exteriores e mais imediatamente acessíveis aos menos visíveis e aos mais profundos (...) Com efeito, pode-se dizer, neste sentido, que todo objeto de ciência é uma coisa, com exceção talvez dos objetos matemáticos... (DURKHEIM, 2007, p. XVII-XVIII)

O Círculo de Viena teve influência do positivismo e também da obra específica de Wittgenstein (1961), outro texto analisado aqui, considerado neopositivista. O livro “tractatus lógico-philosoficus”, foi publicado em 1921 e escrito no formato de uma série de premissas lógicas, em frases curtas que exprimem “a verdade dos fatos”, na ideia do autor, como uma espécie de receituário. Wittgenstein (1961) procura esclarecer as condições lógicas que o pensamento e a linguagem devem atender para representar o mundo – e o mundo é reduzido a um conjunto de fatos, cujo sentido está fora dele. Essas proposições que o autor destaca são consideradas descrições ou imagens da “realidade”. Assim, segundo o autor, “a filosofia deve tomar os pensamentos que, por assim dizer, são vagos e obscuros e torná-los claros e bem delimitados” (WITTGENSTEIN, 1961, p. 77). Dessa forma, as proposições que se apoiam em fatos têm sentido e são passíveis de verificação; as metafísicas ou éticas não podem aspirar uma realidade, pois nada dizem sobre o mundo real (DORTIER, 2000). A função da filosofia passa a ser a de verificar a validade das proposições de linguagem.

Em Wittgenstein (1961) é possível observar a lógica positivista levada ao extremo. O método da observação racional e objetiva dos fatos leva o autor a isolá-los, codificá-los, descrevê-los, como uma espécie de fórmulas. Crê que suas afirmações sobre esses fatos (verdadeiras ou falsas) representam o mundo, o real, o que é, afastando qualquer possibilidade de subjetividade. O conhecimento científico será obtido basicamente a partir do método empírico.

Popper (1979) recebe influência dos neopositivistas, mas diferencia-se deles e também os critica. O autor defende a necessidade de “provas objetivas” em termos de ciência, porém acredita que devemos refutar ou validar provisoriamente as hipóteses, nunca considerar as provas como definitivas. Aborda o caráter provisório da teoria científica, e que novas experiências/observações devem buscar falseá-las, no sentido de testar sua força/poder de explicação e confiança que se pode ter em tal resultado. 

Em certo trecho do livro o autor declara-se contrário aos neopositivistas quanto à perspectiva indutiva de método, defendendo o “dedutivismo”. Segundo o autor, “não existe uma coisa como um método lógico de ter novas ideias, nem uma reconstrução lógica desse processo (...) Toda descoberta contém ‘um elemento irracional’...” (POPPER, 1979, p. 7) e cita Einstein e sua experiência de dedução de leis universais da física a partir da intuição. 

O autor critica o tratamento dos neopositivistas às demarcações metafísicas. Declara que sua intenção não é a derrocada da metafísica, mas a de “formular uma caracterização apropriada da ciência empírica ou de definir os conceitos de ‘ciência empírica’ e ‘metafísica’ de tal maneira que sejamos capazes de dizer de um sistema dado de enunciados se é ou não o propósito da ciência empírica o estudo mais detalhado desse sistema” (POPPER, 1979, p. 12). Os procedimentos para o seu “teste dedutivo das teorias” consistem em: 1º) comparação lógica das conclusões entre si, testando a consistência interna do problema; 2º) investigação da forma lógica da teoria (se empírica ou científica, ou ainda uma tautologia); 3º) comparação com outras teorias, para poder determinar se consiste em avanço científico; 4) aplicações empíricas das conclusões que se podem deduzir.

O texto de Parsons (1967) começa a encaminhar-nos para os estudos futuros de epistemologia na ciência da administração, pode-se dizer, visto que insere o conceito de organização e delimita aspectos de sua estrutura, mobilização de recursos e do seu modo operante. O termo “organização”, aqui, segundo o autor, refere-se ao amplo tipo de coletividade que exerce importância nas modernas sociedades industriais e que pode ser traduzida em “burocracia”, tendo-se como exemplos as autarquias públicas, as empresas comerciais, as universidades e os hospitais. 

Parsons (1967) declara que o estudo das organizações constitui parte do estudo da estrutura social, nos termos adotados pelos sociólogos, sendo que a prioridade da atenção dessas organizações para a consecução de uma meta específica é considerada a característica que a distingue de outros tipos de sistemas sociais. Ao longo do artigo o autor descreve os elementos básicos de uma organização e do seu funcionamento, conforme bem conhecemos na área de administração, destacando aspectos como a distribuição e amplitude de poder e de alocação de recursos conforme os níveis ou funções organizacionais (sua estrutura). Dessa forma, nesse texto estamos tratando de ciência social com um objeto de estudo específico – a organização. 
O autor é conhecido pelos seus trabalhos em termos de funcionalismo estrutural, que não chega a ser abordado explicitamente no artigo lido, porém no texto é possível identificar as relações que o autor estabelece em termos de combinação de atividade humana e estrutura, ao abordar as organizações. Em comparação com os demais autores lidos, fica claro que a organização estudada na perspectiva de unidade social/objeto de estudo por Parsons (1967) nos leva a relacioná-lo principalmente com Durkheim (2007), que ocupou-se de estudar os fatos sociais de forma objetiva, como coisas observáveis, e sobre as quais é possível fazer inferências e projeções. Outro aspecto importante do pensamento de Durkheim (2007) que é possível identificar em Parsons (1967) é na relação entre fato social e instituições. 

O texto de Parsons (1967) traz uma abordagem bastante familiar àquilo que lemos, escrevemos, ensinamos e adotamos na administração. De certa forma, delimitamos a organização com alguns contornos que julgamos necessários para melhor descrevê-la, o que neste momento de leitura pareceu-me bastante “quadradinho”, mas fácil de compreender. Dessa forma, apesar de antigo o texto pareceu-me muito ilustrativo daquilo que tratamos por organização em administração, o que me faz pensar que ainda possuímos uma forte influência estruturo-funcionalista nesta ciência. Da mesma forma, cada vez que releio Durkheim (2007) e demais autores positivistas, percebo o quanto minha formação (e possivelmente, visão) em administração é influenciada por essa corrente de pensamento – parece-me mais fácil, rápido e objetivo adotar essa lente em alguns momentos. O que mais impressionou-me na leitura para esta aula, contudo, foi perceber o método de Popper (1979) tão próximo daquilo que temos estudado/revisado em Métodos Quantitativos: a “hipótese nula” dos nossos softwares estatísticos passaram a fazer mais sentido a partir de então.


Referências

COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. Porto Alegre: Globo; São Paulo: USP, 1976. 
DORTIER, J-F. Le cercle de Vienne et le nouvel sprit scientifique. In: Sciences Humaines, hors-série, septembre, 2000. (Tradução livre.) 
DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. O criticismo kantiano e o positivismo In: PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990.
PARSONS, T. Sugestões para um tratado sociológico da teoria das organizações In: ETZIONI, A. Organizações complexas. São Paulo: Atlas, 1967. 
POPPER, K. A lógica da investigação científica. In: POPPER, K. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: USP, 1961. 

Zé Gotinha corre perigo: até que ponto temos fé na ciência?

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Bruno Castro

     Data de muitas eras o debate entre a fé a ciência; é tópico para toda sorte de contendas, desde acaloradas conversas de botequim, até robustas teses de doutorado. Não convém, dado o escopo de um short paper, enveredar por esta senda. O que aqui se fará, marotamente, é permutar a preposição para se chegar a um tema razoavelmente passível de breve análise. Indo direto ao ponto: se tratará não da fé “e” a ciência, mas da fé “na” ciência.
     Há muitos palcos em que se percebe o embate de conceitos aqui proposto. Mas, para efeito de recorte, este trabalho se restringirá às campanhas de vacinação aplicadas frequentemente no Brasil e a reação a elas promovida pelo movimento antivacina. Essas campanhas costumam trazer como mascote o personagem Zé Gotinha, criado pelo Ministério da Saúde na década de 1980, e que está reproduzido na Figura 1 - O personagem Zé Gotinha.
     O apoio teórico a que se acorrerá é o de Robert Merton (2013), em particular quando trata do tema do desinteresse. E, de maneira mais ampla, bebe-se na fonte de Piotr Sztompka (2007), pesquisador polonês de cujo artigo se extrai uma súmula bem construída a respeito dos princípios mertonianos.
     Antes de tudo, cabe um questionamento: como se poderia conceber que alguém tenha capacidade ou interesse em “crer” na ciência? Colocando a discussão nesses termos, salta aos olhos uma aparente contradição entre o cientificismo e um aspecto mais, por assim dizer, religioso do conhecimento, mas basta avançar um degrau na compreensão do mecanismo da credibilidade científica e a confusão se desfaz por completo. Tão logo se compreenda que “crer” na ciência é “crer” nos pesquisadores e em suas ações, começa a fazer sentido esse empréstimo do termo originalmente circunscrito à esfera religiosa para uso no meio acadêmico.
O alvo da fé em questão fica, assim, bem delimitado; logo, pode-se partir para uma análise da substância da fé na ciência.
       Toda vez que se manifesta a crença no trabalho de um pesquisador, aquilo em que se está crendo é, de fato, na verdade. Em outras palavras, trata-se da fé na capacidade supostamente desinteressada dos cientistas em esclarecer a verdade e oferecê-la ao grande público como resultado de suas pesquisas, em consonância com os postulados de Robert Merton.
       Em relação a quem exerce a fé na ciência, vislumbra-se todo um arranjo social que parte de uma esfera dita mais “elevada”, com universidades, ONGs, empresas e governos consumidores do saber produzido na academia, indo desaguar num substrato mais popular, em que se encontram, por exemplo, os pais ou responsáveis que levam as crianças para tomarem vacinas.
      Neste ponto, alcança-se a inquirição sobre a qual se queria discutir desde o começo: até que ponto se tem fé na ciência? Um possível caminho para a resposta está nas campanhas de vacinação supracitadas, contrastando com o movimento antivacina descrito por Vasconcelos-Silva (2015). Este autor relata a existência de campanhas contra a vacinação obrigatória de crianças, capitaneadas por sites e outros meios de comunicação que, irresponsavelmente, propagam a crença em supostos riscos da vacinação, principalmente o de causar autismo.
    São mostradas evidências sólidas de que, anualmente, um percentual significativo de crianças morrem vitimadas por doenças facilmente evitáveis mediante a vacinação – sintoma de que o movimento antivacina avança não só em extensão midiática, mas também na letalidade que advém como sua consequência.
    Os defensores do boicote vacinal costumam apoiar-se em estudos preliminares sobre a suposta relação entre a aplicação de vacinas e o desenvolvimento do autismo. Embora esses estudos tenham sido amplamente refutados por pesquisas posteriores, tem crescido a circulação, pelas mídias sociais, daqueles primeiros trabalhos, tidos pelos indivíduos adeptos da não-vacinação como ícones sagrados.
Percebe-se, assim, que a fé inabalável no desinteresse dos cientistas persiste na população, embora se bifurque em duas vertentes opostas, que se descreverão a seguir.
      De um lado, há quem se mantenha “fiel” – e, aqui, note-se como é impraticável abolir a metáfora da fé ao falar de ciência – ao ordenamento da vacina como vem sendo instituído há décadas, em respeito aos estudos cada vez mais elucidativos da eficácia da imunização coletiva obrigatória.
     Por outro lado, tem-se um contingente cada vez maior de indivíduos que acolhem como verdade absoluta estudos científicos de autenticidade contestada, ligando a aplicação de vacinas ao desenvolvimento de autismo. Parece haver, nesse caso, uma mesma fé na ciência, mas mesclada a um medo patológico de ameaças disseminadas por mídias sociais, que faz com que se escolha um viés no qual acreditar. Saem perdendo, infelizmente, todas as crianças que deixam de ser imunizadas. E resta, portanto, a dúvida: será que a fé na ciência se transmutou em algo doentio, ou estaria desaparecendo da mente do cidadão comum até o ponto em que não subsistirá mais? Quem viver, verá!


Referências.

MERTON, R. K. A ciência e a estrutura social democrática. In: MERTON, R. K. Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013.
SZTOMPKA, Piotr. Trust in Science. Journal of Classic Sociology, v. 7, n. 2, p. 211-220, 2007.
VASCONCELOS-SILVA, P. R. A sociedade de risco midiatizada, o movimento antivacinação e o risco do autismo. Ciência & Saúde Coletiva, v. 20, n. 2, p. 607-616, 2015.