Inteligência da Complexidade para evitar a “cegueira” do Conhecimento

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Doutorado Patrícia Beckhäuser Sánchez

“Não se deve acreditar que a questão da complexidade só se coloque hoje em função dos novos progressos científicos. Deve-se buscar a complexidade lá onde ela parece em geral ausente, como por exemplo, na vida cotidiana” (MORIN, 2003, p. 57). Talvez Nelson Rodrigues, um dramaturgo brasileiro do século XX, já estivesse bem-intencionado quando escrevia “A vida como ela é...”, uma série de contos que retratavam uma história da vida real, complexa por si só. Morin (2003) destaca que na vida cotidiana todos têm uma multiplicidade de papéis sociais, seja em casa, no trabalho, com amigos ou desconhecidos e que todo mundo se conhece muito pouco. O fato de que o próprio ser se transforma com o passar do tempo indica que não é simplesmente a sociedade que é complexa, mas cada átomo do mundo humano.“Independentemente do que somos nos detalhes, nós, seres humanos, continuamos a ser componentes da natureza, um fragmento no grande afresco do cosmos, uma pequena peça entre tantas outras” (ROVELLI, 2018, p.115).

Para compreender o problema da complexidade, é preciso, primeiramente, saberque há um paradigma simplificador em que a simplicidade vê o uno ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode ser múltiplo ao mesmo tempo. Essa entropia que mede algo que diz respeito mais a nós do que ao cosmos lembra o personagem da mitologia grega Tirésias, presente no Édipo Rei, de Sófocles “Como é terrível saber, quando o saber de nada serve a quem o possui". Inspirada em A ordem do tempo de Rovelli (2018), o argumento neste paper é: “Se nossas interações com o mundo são ‘cegas’ para muitas variáveis, então nossa visão de mundo é desfocada”.

Para Rovelli (2018) quando fazemos ciência, queremos descrever o mundo da maneira mais objetiva possível. E a complexidade para Morin (2003) encontra-se onde não se pode evitar contradições.Estaria sendo evidenciada a dialética objetividade/subjetividade? Complexidade implica um senso de solidariedade e um senso de caráter multidimensional de toda realidade. Mas será que é assim que enxergamos o mundo à nossa volta? A guerra das ciências, desvelada por Boaventura Sousa Santos e Latour, indicava uma segregação das ciências naturais e ciências sociais.Se a segregação está presente no cotidiano conseguimos ter uma visão multidimensional de toda realidade? Se considerarmos o econômico, é necessário ir além do utilitarismo de Bentham, Say e Stuart Mill para entender as necessidades e os desejos humanos e, nesse contexto, a psicologia pode desempenhar um importante papel.Se considerarmos a história, não é mais possível fazer compreender o presente com base no passado, é necessário falar do futuro no presente. Paradoxalmente, talvez os jovens estejam mais interessados na inteligência artificial do que no mito da caverna de Platão.

Três são os princípios, segundo Morin (2003), que podem nos ajudar a entender a complexidade: (1) dialógico traduzido em ordem e desordem, termos complementares e antagônicos; (2) recursão organizacional, ou seja, os indivíduos produzem a sociedade que produz os indivíduos. Estaria Durkheim(2007) meio certo quando dizia que os estados da consciência coletiva são de natureza diferente dos estados de consciência individual? Para Morin (2003) somos ao mesmo tempo produtos e produtores; (3) hologramático em que se pode enriquecer o conhecimento das partes pelo todo e do todo pelas partes. O pensamento da complexidade tem necessidade da integração do observador e do conceptor em sua observação e em sua concepção. A possibilidade de ter meta pontos de vista.

Como as ilustrações, constantes no livro Zoomde Istvan Banya, tudo pode se tornar tão pequeno diante da imensidão do mundo e como nada é o que parece ser.

De acordo com Morin (2003) não se pode interpretar a realidade de modo unidimensional, embora o paradigma simplificador domine a nossa cultura hoje. Seria o resultado de paradigmas formulados anteriormente? Digamos que sim, mas há de se os considerar como produto de todo um desenvolvimento cultural, histórico, civilizatório. “O paradigma complexo resultará do conjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que vão se acordar, se unir” (MORIN, 2003, p. 77) em substituição à visão simplificada linear que têm provocado estragos. Irá a complexidade resolver todos os problemas? Não é este seu intuito. Apenas nos tornar mais prudentes sem nos fechar no “contemporaneísmo”.

Para Kuhn (1987), não há um padrão de racionalidade universal para demonstrar a superioridade de um paradigma em relação a outro. Há incomensurabilidade entre sucessivos paradigmas. Quando houve alteração de um modelo por outro em que se defendia o geocentrismo,que afirmava que o sol girava em torno da terra, pelo heliocentrismo de Copérnico e Galileu, que afirmavam que a terra girava em torno do sol, houve uma mudança descontínua de paradigma. A terra que não era considerada um planeta, passou a ser.Pode-se também evidenciar alteração no modelo quando, em seus experimentos, Boyle acrescentou a temperatura, além do volume e pressão que já eram conhecidos.

Estes são momentos extraordinários da ciência caracterizados pela busca de um novo paradigma, revolucionando a ciência. A consciência de anomalias provoca crise que promove a busca por outros paradigmas. E para Feyerabend (1977) nesses momentos de crise a imaginação é mais importante do que o conhecimento.Para descobrir coisas novas é necessário novas formas. Não é possível chegar a novos conhecimentos pelos mesmos caminhos.

Em pleno século XXI, com transformações nos mais diversos campos como econômico, político, legal, social, cultural e tecnológico, não é mais possível resolver problemas da vida moderna tratando-os de forma separada. Precisamos ligar as partes para entender as emergências e assim evitar a “cegueira” do conhecimento.Será que é a terra que gira ao redor do sol ou somos nós que giramos? Depende da perspectiva. Precisamos nos reconectar!

Referências 

DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FEYERABEND, P. Contra o Método. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977. 
KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987. 
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.                                        LE MOIGNE, J-L. Inteligência da Complexidade. Sísifo. Revista de Ciências da Educação. N 4 out/dez, 2007.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 2003.
ROVELLI, C. A ordem do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.
SOUSA SANTOS, B. Um Discurso sobre as Ciências. Coimbra: Edições Afrontamento, 1988. 

A Escravidão como atividade econômica na perspectiva das teorias da ética Kantiana e Utilitarista

Pequeno ensaio produzido pelo aluna de Mestrado Acadêmico Mariana Carneiro Fraga

A escravidão foi uma das principais atividades econômicas durante milhares de anos ao redor do mundo. Sua origem é pouco conhecida, alargando-se a partir dos conflitos entre os povos, resultando no acúmulo de prisioneiros de guerra. Vale destacar que algumas culturas com um forte senso patriarcal reservavam, à mulher, uma hierarquia social semelhante à do escravo, negando-lhe direitos básicos que constituiriam a noção de cidadão.

Por escravidão, em geral, entende-se a apropriação arbitrária, legalmente aceita, de alguns indivíduos sobre de outros. Esta prática definia os escravizados como mercadorias, e seus preços definidos conforme suas condições físicas, utilidades, sexo entre outros. A compra e venda de pessoas consideradas propriedades e, posteriormente, o tráfico escravo, foram amplamente praticados,influenciando diretamente o desenvolvimento econômico pelo menos até o século XIX. 


A escravidão sob a perspectiva ética, pode ser analisada de diversos ângulos, dos quais delimitar-me-ei a partir de duas teorias filosóficas,onde comportamento humano é posto em análise sobre o agir como dever ou como ato útil. Sendo assim, busco neste ensaio, analisar a escravidão da perspectiva da ética kantiana bem como da ética utilitarista, enquanto um discurso de desenvolvimento econômico do ponto de vista atual.

Se a escravidão foi, durante muito tempo, justificada como um mecanismo funcional sob o enfoque econômico, do ponto de vista ético existem controvérsias. A partir de uma interpretação kantiana, a ética possui o dever igualitário e universal, independente da justificativa, quer seja situacional ou do conteúdo concreto. Para Kant, o comportamento moral é autônomo, assim como as pessoas – livres, ativas e criadoras – e as leis morais devem vir de dentro da consciência, e não de forma externa. As ações humanas são aquelas realizadas pelo dever, desconsiderando a recompensa ou o receio das consequências posteriores. Neste sentido, independente das influências externas, violar a dignidade humana, seja de si, seja do outrem, é como violar a moralidade, visto que, para o filósofo a norma deve ser válida para todos os seres humanos sem admitir exceções. Assim, a atividade escravista, do ponto de vista da ética kantiana pode ser considerada indecorosa.

Em contraponto, a teoria utilitarista enquanto princípio ético, fundada por Bentham (1979), e posteriormente difundida por Mill (2007),engendra que a utilidade está ligada a toda a ação que tem por objetivo final produzir ou proporcionar prazer, benefício, vantagem, bem ou felicidade, ou ainda, impedir algum dano, dor ou infelicidade (BENTHAM, 1979). O prazer e as dores constituem os instrumentos com os quais o legislador deve trabalhar. Para Bentham, chama-se ato útil, àquele vantajoso para o “maior número de pessoas”, incluindo o próprio indivíduo. Além disto, esta teoria avalia os efeitos e consequências da ação sob as seguintes circunstâncias para definir a melhor decisão: intensidade, duração, a certeza ou incerteza e a proximidade do tempo ou longinquidade.

Portanto, para a teoria utilitarista, o objetivo central do agir não é especificamente a intenção ou a ocasionalidade, e sim a consequência do ato e o valor que esta ação irá gerar. Logo, a escravatura enquanto um projeto desenvolvimentista, tanto em termos de infraestrutura, como atividade econômica mercadológica, poderia ser justificada, à medida que um grande número de pessoas estará se beneficiando desta prática. 
Por sorte, seu sucessor, John Stuart Mill, trouxe grandes contribuições ao utilitarismo de Bentham, a partir dos seus livros A Liberdade(1859) e Utilitarismo(1861), e de suas ideias baseadas no liberalismo econômico e igualdade humana. O autor acreditava que todas as grandes fontes de sofrimento humano são parcial ou inteiramente dominadas pelo cuidado e esforço humano, e presumia que todas as mentes suficientemente inteligentes e generosas iriam sobrepor qualquer egoísmo em prol do coletivo. Para Mill as principais causas de uma vida insatisfatória é o egoísmo, a falta de desenvolvimento intelectual e pobreza sob todas as suas formas (MILL, 2007). 
Mill (2007)chegou a confrontar a visão utilitarista quando a mesma supõe que as pessoas devessem fixar seus espíritos sob tão ampla generalidade do mundo e da sociedade como um todo. Afinal, a grande maioria das ações visam não o benefício dos outros, mas dos próprios indivíduos, os quais compõem o bem do mundo. Com os seus conceitos e a uma maior flexibilidade, o filósofo aprimorou a teoria utilitarista e agregou reflexões do ponto de vista da coletividade, das liberdades individuais e do desenvolvimento moral(1979). 
Deste modo, apesar do autor não abordar especificamente a temática escravista em minhas leituras
até este ponto, trago enquanto proposta, o uso da analogia com outras formas de escravidão da época, quando analisou a causa da aceitação da escravização do sexo feminino pelo sexo masculino. O filósofo atentava para o fato de que, apesar de o mundo ter avançado muito até aquele momento para a libertação de povos escravizados, as mulheres continuavam sendo subjugadas e oprimidas pelo sexo oposto, a saber, as mulheres continuavam sendo vistas como seres inferiores e sem autonomia, não só no âmbito público, mas também no âmbito privado (OLIVEIRA,2013). 
 
Assim como a escravidão, Mill questiona a utilidade da submissão feminina, ressaltando a ausência de fatores que comprovem tal comportamento, como citado na argumentação abaixo (MILL, 2006). 

“Se a autoridade dos homens sobre as mulheres, quando estabelecida, pela primeira vez tivesse sido o resultado de uma comparação conscienciosa entre as várias modalidades de se constituir a organização da sociedade; se, após se haver tentado várias outras modalidades de organização social – o domínio das mulheres sobre os homens, a igualdade entre os dois, e as modalidades mistas que porventura fossem inventadas – se houvesse decidido, com base no testemunho da experiência, que a modalidade na qual as mulheres estão totalmente sob o domínio dos homens, sem nenhuma participação nos assuntos públicos, (...), fosse a organização que melhor levasse à felicidade e ao bem-estar de ambos, então sua adoção universal poderia ser vista, justificadamente, como uma possível prova de que, na época em que foi adotada, era a melhor(...)”
Para Mill (2007), a igualdade econômica e política universal é um pressuposto importante para o desenvolvimento econômico e por isto, advogava a favor da liberdade para todos os seres.  
Em síntese, a escravidão sob a ótica categórica de Kant (2015) pode ser analisada como uma prática contrária a ética deontológica, uma vez que esta teoria não admite exceções em favor de alguém, algum coletivo social, classe ou condição. A ética de imperativo categórico é universal e de caráter obrigatório, são princípios morais inerentes a existência, e sobrepõe-se a quaisquer leis que venham de fora do indivíduo. 
Para os utilitaristas, apesar de que o indivíduo deve ser livre para direcionar sua vida como preferir, em tudo aquilo que não cause danos à terceiros (2007),a prática escravagista contraria essa premissa, onde os “fins justificariam os meios”, desde que as devidas circunstâncias às justifique (BENTHAM, 1979).  
Ainda assim, Mill enxergava três fontes de despotismo à sua volta: o Estado, o costume e a opinião pública. Graças a elas, os indivíduos passavam a vida numa existência atrofiada, sem experimentar seu verdadeiro potencial. Contra essa diluição dos indivíduos, Mill elaborou sua defesa da liberdade.  Suas obras convidam ao exercício de uma ética da liberdade e buscam a compreensão de hábitos e opiniões diferentes dos nossos. Trata-se de pilar fundamental em tempos de intolerância e fanatismo como os de hoje.


Referências
BENTHAM , J. Uma introdução aos princípios da Moral e da Legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1979
MILL, J. S. Utilitarismo. São Paulo: Editora Escala, 2007
KANT, E. Crítica da Razão Pura. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2015
OLIVEIRA, M. A. S. Sujeição, costume e sentimento como manutenção da servidão feminina. Stuart Mill e a sujeição das mulheres. Revista Sapere Audi, v.4, n.7 , 2013
MILL, J. S. Sujeição das Mulheres. Revista Gênero. Niterói, v. 6, n. 2 - v. 7, n. 1, p. 181-202, 1. - 2. sem. 2006

A Sociologia das Práticas Científicas - novos olhares e possibilidades para os estudos territoriais

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Doutorado Anderson Luís do Espírito Santo.

Quem se dedica a estudar o território, suas dinâmicas, territorialidades e complexidades sabe da importância da temática e das dificuldades existentes. Muitas pesquisas buscam interpretar o fenômeno a partir do desenvolvimento econômico, da cultura, do conflito, poder ou da religião. Outros pesquisadores vão além e buscam novas estratégias para o desenvolvimento de sistemas produtivos; a sustentabilidade e os desastres ambientais; retratar as inovações sociais ou elucidam os conflitos urbanos -  um dos maiores problemas atuais. A temática é extensa e não termina aqui. Fato é que, independente do enfoque, muitos pesquisadores acabam utilizando o adjetivo “social” como um fenômeno qualquer (LATOUR, 2012), para então tecer a sua teorização. A teoria silencia outras dimensões não assumidas na teorização e durante a teorização, o ponto de vista do observador se faz presente e permeará os seus sentidos gerando uma “explicação final” (DEMO, 2012). No decurso da análise territorial é comum encontrar artigos científicos que considerem a abordagem macrossocial para traçar “conexões causais entre variáveis sociológicas clássicas, tipicamente os interesses de grupos relevantes, evidenciando o conteúdo do conhecimento sustentado por esses grupos” (PICKERING, 1992, p.1). Neste cenário temos uma tentativa de construir uma espécie de material ou domínio – a elaboração de “contextos” que visam, uma vez mais, explicar o social. Por acreditar que o social não pode ser construído e que é necessário modificar a compreensão do que muitos entendem, equivocadamente, sobre social, Latour (2012) nos apresenta a Teoria do Ator-Rede (TAR ou ANT em inglês), como uma alternativa epistemológica para a condução de pesquisa nas ciências sociais. Outrossim, cabe frisar que assistimos no início da década de 1980 a virada pragmatista, “fazendo com que a ciência seja então percebida como um conjunto de práticas envolvendo diferentes entes (humanos e não humanos) em interação, inclusive aqueles do mundo não científico” (ANDION; CAMINHA, 2017, p.15). Dessa forma este paper busca compreender o desenvolvimento da sociologia das práticas científicas, e como a TAR e o pragmatismo, podem contribuir para o desenvolvimento de pesquisas territoriais.



“Se todos os membros de uma comunidade respondessem a cada anomalia como se fosse uma fonte de crise ou abraçassem cada nova teoria apresentada por um colega, a ciência deixaria de existir” (KUHN, 2012, p.294). Assim assistimos ao longo das décadas o profícuo desenvolvimento da ciência. Para especificar mais acerca do tema aqui proposto (sociologia das práticas científicas) Andion e Caminha (2017) apresentam que a Filosofia sempre foi a pioneira e por tempos, a única, a se ocupar do desenvolvimento científico, principalmente a partir da Filosofia da Ciência e de Epistemologia. Mesmo depois do surgimento da Sociologia a Filosofia continuou pioneira nesse sentido. Para os autores o primeiro golpe à Filosofia ocorreu no início do século XX e ficou conhecido com a Sociologia do Conhecimento que buscavam identificar se o conhecimento (não só o científico, dominado pela física, sobretudo), tinha influência de fatores culturais e sociais.

De uma influência fenomenológica a sociologia do conhecimento destaca as diversas formas de conhecimento (religioso, social, científico). Os estudos de Robert Merton (2013), um dos principais representantes dessa sociologia, visa compreender a ciência enquanto fenômeno empírico. O autor será o primeiro a pesquisar a ciência a partir da sociologia e defenderá que a ciência é a aplicação do conhecimento certificado (ethos). Dessa forma, criou o ethos científico (comunismo, universalismo, desinteresse e ceticismo organizado) que representam um conjunto de ideias que, segundo Merton (2013), devem balizar os métodos da ciência. O autor visualiza a ciência como acima da sociedade e essa é uma das várias críticas que ele recebeu. No desenrolar do desenvolvimento científico tivemos na sequência a Sociologia da Ciência, com destaque para David Bloor e Pierre Bourdieu.

David Bloor vai contradizer Merton ao afirmar que a ciência não está para além da sociedade. Inspirado em Durkheim (Formas elementares da vida religiosa) o autor argumentará que o social pode explicar o conhecimento científico. Para Bloor até as ciências duras (física e matemática) dependem dos fatores sociais. Sua principal contribuição é o “Programa Forte na Sociologia do Conhecimento”, onde, através de quatro princípios (causalidade, imparcialidade, simetria, reflexividade) o autor busca apresentar o rigor do conhecimento científico a partir da distribuição da crença e nos vários fatores sociais que influenciam o conhecimento (BLOOR, 2009, p.18). Outra contribuição incomensurável da sociologia da ciência advém dos estudos de Pierre Bourdieu, que por sua vez, apresentará uma leitura praxeológica da ciência e do mundo, ao afirmar que as práticas sociais representam a incorporação do social, que conferem ao mundo social seu caráter de evidência e de natural referente ao duplo processo de relação dialética: interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade (BOURDIEU, 1983, p.46-47). Bourdieu também abre a possibilidade de uma macrossociologia dos campos sociais. “O campo se particulariza, pois, como um espaço onde se manifestam relações de poder, o que implica afirmar que ele se estrutura a partir da distribuição desigual de um quantum [capital social] social que determina a posição que um agente específico ocupa em seu seio” (BOURDIEU, 1983, p.20). O autor ainda interpreta as práticas sociais com sentido de compreender a regularidade “que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus” – os sistemas de disposições duráveis, que funcionam como estruturas estruturantes e que gera as estruturas práticas – objetivamente regulamentada (BOURDIEU, 1983, p.15). A partir do conceito de habitus temos que as disposições são coletivamente orquestradas que deformam e orientam a ação – o produto das relações sociais. Outrossim, o autor apresenta notáveis contribuições em conceitos chaves como capitais, campo e habitus, o que possibilita interpretarmos “a prática social como um resultado de seu agrupamento” (BOURDIEU, 1983, p.160)

“Uma teoria científica é considerada superior a suas predecessoras não apenas porque é um instrumento mais adequado para resolver quebra-cabeças, mas também porque é uma representação melhor do que a natureza (evolução) realmente é” (KUHN, 2012, p.318-319). Com essa afirmativa que tangencia uma evolução temos que a partir do final da década de 1970, um marco importante vem celebrar o avanço da ciência. Trata-se do primeiro estudo etnográfico - “Vida em Laboratório”
Bruno Latour
(1979) de Bruno Latour e Steve Woolgar. Outrossim, destaca-se as contribuições de Harold Garfinkel, Michael Lynch e Eric Livingston que nos Estados Unidos começaram a trazer sua perspectiva etnometodológica distinta para o que se passa no laboratório. Outros autores contribuíram com esse avanço científico, findo com a exposição da Teoria Ator-Rede (TAR) que surge a partir dos estudos de Bruno Latour [que desde Ciência em Ação – 1897 – crítica e se distância da sociologia do conhecimento], Michel Callon, e John Law (In: PICKERING, 1992, p.1).

“Embora não haja um método para encontrar tesouros, os caçadores de tesouros estão eternamente procurando mapas ou guias - e é isso que o livro de Bruno Latour é. O que constitui um tesouro é altamente pessoal, que é uma razão pela qual não pode haver método para isso” (CZARNIAWSKA, 2006 p.1553). A obra de Latour, filósofo, sociólogo e polêmico, nos implica em sempre continuarmos aprendendo e, para isso, “cumpre-se mudar, desestruturar-se” (DEMO, 2012). Como citado por Czarniawska, não deve haver método nem modelos. Latour apresenta que a realidade é tomada como dinâmica, complexa e não linear, logo, a necessidade de se acompanhar os sujeitos para compreender a natureza como é vista, percebida, vivida e interpretada pelo “ator”. A TAR tem grande influência da fenomenologia, etnometodologia, pesquisa qualitativa, física quântica e complexidade não linear (DEMO, 2012, p.43). Ademais, naturalmente, discorda veemente do que chamou de sociologia do social (influência bourdiensiana), deixa para trás a corrente positivista e o ethos das ciências. Em sua obra emprega a abordagem da “sociologia de associações”, por compreender o significado do termo social e buscar reagregar o social.

A TAR apresenta a dialética entre materiais e objetos, concedendo-lhe capacidade recíproca na interação com o homem. Logo, Latour, uma vez mais, afirmará a não dicotomia entre humanos e não-humanos (apresentada em Jamais Fomos Modernos – Latour, 1994) a promoção da “purificação” e o problema da separação (que não deve acontecer) entre a natureza e a cultura. Um ponto muito argumentado por Latour é o “social”, que é interpretado nesta obra como “seguir”, um companheiro, um associado (LATOUR, p.24) Para o autor a realidade é sempre uma sociedade - um conjunto de associações, uma rede de atores, logo, “os atores sabem o que fazem e o que temos que aprender deles é não apenas o que eles fazem, mas como e por que eles o fazem” (LATOUR, 2012, p.19). Ou seja, somos nós os cientistas sociais que não conhecemos, e não os atores “que estão faltando a explicação de por que eles são involuntariamente manipulados por forças exteriores a si mesmos e conhecidos o olhar e os métodos poderosos do cientista social”. Nesse jogo de manipulações que surgem as “explicações sociais” (o social esclarecendo o social), quando em um ato de presunção os pesquisadores tendem a querem prescrever e aplicar normas. “Siga os atores enquanto enveredam por meio das coisas que acrescentaram às habilidades sociais para tornar mais duráveis as interações em perpétua mudança” (LATOUR, 2012, p.104). Se por social interpretamos “seguir”, Latour explica que o termo “rede” é a realidade composta por humanos e não humanos que se associam. É formada a partir das associações. “Atores são efeitos em rede, assumindo atributos das entidades [...] a rede parece ser termo primeiro, pois os atores, só emergem em rede” (DEMO, 2012, p.45). Compreende-se assim que o ator é uma entidade que flui – vive, age, interage – em redes, daí a nomenclatura ator-rede.

Outros pontos da TAR: Captamos a importância de compreender que a natureza e a sociedade não são dois polos distintos (LATOUR,2012). Não há nada de específico na ordem social – nenhum contexto social, logo, “as organizações não precisam ser inseridas em contextos porque elas mesmos dão significados as suas ações” (LATOUR, 2012, p.26). Na TAR a relação macro-micro é formada no dia a dia decorrente das associações ator-rede, e o cientista social deve buscar compreender como o local e o global são estabelecidos, seguir os atores, identificar as controvérsias, o complexo e as associações. O problema (dificuldade) é reunir novamente os atores naquilo que ainda não é uma esfera social (LATOUR, 2012, p.31). Por fim, a TAR se mostra como um mapa ou guia e confirma que o tesouro existe e motiva o pesquisador para começar a jornada (CZARNIAWSKA, 2006).

O estudo da prática pode ter implicações de longo alcance para a disciplinaridade. Podemos notar que as imagens da prática sustentadas dentro das tradições da ciência como conhecimento tipicamente têm a qualidade de reduções distintamente disciplinares. (PICKERING, 1992). Há de se frisar que as práticas já foram objeto analíticos de diversos estudiosos durante o desenvolvimento da ciência, até mesmo Marx que relaciona a fenomenologia e o interacionismo simbólico, e o próprio Bourdieu como narrado anteriormente. Inspirado em SCHATZKI (2001), temos que as práticas são nexos organizados de atividade, um conjunto de ações que as pessoas executam diariamente. As práticas estão interligadas. A ordem social é estabelecida dentro da influência das práticas sociais. As práticas são produtoras de vida social e representam a relação do “um” com “outro” tendo, portanto, uma perspectiva relacional (PIERCE - abdução) e processual (DEWEY – Experiência). Assim, “Ao modificarem profundamente o modo de realizar investigações, as sociologias que reivindicam uma démarche pragmática colocaram em evidência novas dimensões da vida social e mudaram o estatuto de um grande número de objetos” (CHATEAURAYNAUD, 2015, p.1).

O desenvolvimento dessa sociologia remota o início dos anos 80 quando, a partir de um cenário epistemológico pós-bourdieusiano, com influência do interacionismo, da etnometodologia e das teorias da ação situada, diversos autores resgatam a filosofia pragmática americana (Charles Pierce, William James, John Dewey e George Mead) (BARTHE, et. al. 2016). Chateauraynaud (2015) apresenta que a capacidade crítica dos atores e a ideia de se captar a experiência das pessoas fomentou o desenvolvimento e o fortalecimento da sociologia pragmática francesa principalmente, a partir dos estudos da ação situada (Louis Queré), ator-rede (Michel Callon e Bruno Latour) e prova de justificação (Luc Boltanski e Laurent Thévenot).

Elucidado o desenvolvimento da sociologia das práticas, breves pontos da TAR e da sociologia pragmática, suscita-se uma breve reflexão sobre como tais estudos podem contribuir com o desenvolvimento de pesquisas territoriais. Chateauraynaud (2011) apresenta a sociologia das controvérsias e convida os cientistas sociais a discutir o desenvolvimento ambiental sob uma perspectiva das controvérsias e dos conflitos. “¡No más alertas y controversias inacabables, demos lugar a verdaderas políticas públicas y a la promulgación de normas eficientes!” (CHATEAURAYNAUD, 2011, p.23). A partir do referido texto compreende-se que cada vez mais controvérsias e conflitos evoluem sob o olhar de uma comunidade e faz-se necessário o “retorno a uma sociologia do conflito capaz de pensar o antagonismo, o qual não se reduz ao resultado infeliz de um litígio mal julgado [...] nesse trajeto, o estudo de múltiplas disputas e controvérsias tornou-se necessário” (CHATEAURAYNAUD, 2012, p.209). Já em A Captura como Experiência (2017), o autor apresenta o laborioso conceito de prise - a boa aderência, capturar as situações de prova e colocar a público. Evidenciar os agenciamentos dos operadores. Contudo, se a aderência é excessiva, a mão prende e o escalador fica aprisionado (ex. o caso Marielle), “todos os tipos de atores surgem nas arenas submetidas antes a "severas" condições de acessibilidades quando contrapoderes nascem em torno de novas práticas” (CHATEAURAYNAUD, 2011, p.4). Em outra vertente, Andion et. al. (2017) analise o território a partir da formação de ecossistemas de inovação social, sob a ótica do pragmatismo, que possibilita “uma nova compreensão desse processo, relacionando os debates sobre ação coletiva da sociedade civil, inovação social e ação pública” (ANDION et. al. 2017). Diversas possibilidades frente a diferentes cenários. Como podemos abordar a dinâmica do território a partir da sociologia pragmática? Os temas são provocativos e demandam profundidade em leitura.


Questionamentos:
1) Como os cientistas começaram a interpretar a ciência prática?
2) Quais os principais objetivos da ANT?
3) Quais as contribuições do estilo pragmático de se fazer pesquisa?


Referências
ANDION, C., RONCONI, L., MORAES, R. L., GONSALVES, A. K. R.; SERAFIM, L. B. D. S. Sociedade civil e inovação social na esfera pública: uma perspectiva pragmatista. Revista de Administração Pública. 51 (3), p.369-387, 2017.
BARTHE et al. Sociologia Pragmática. Guia do usuário. Sociologias, Porto Alegre, ano 18, nº 41, jan/abr 2016, p. 84-129.
BOURDIEU, P. Textos de Pierre Bourdieu. In : ORTIZ, R. A Sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática,1983.
BLOOR, D. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
CHATEAURAYNAUD, F. Los tópicos ambientales entre controversias y conflictos. Ecología Política y Sociología em Francia. Revista Colombiana de Sociología. v. 34, n. 1. p.13-40. Jan-Jun, 2011.
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CZARNIAWSKA, B. Reassembling the social: an introduction to actor-network theory. Organization Studies, v. 27, n. 10, p. 1553-1557, 2006.
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MERTON, R. K. A ciência e a estrutura social democrática. In: MERTON, R. K. Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013.
PICKERING, A. From Science as Knowledge to Science as Practice. In: PICKERING, A. (Ed) Science as Practice and Culture, 1992.
SCHATZKI, T. R. Practice mind-ed orders. In: SCHATZKI, T. R. et. al. The Practice Turn in Contemporary Theory. London and New York: Routledge, 2001, p.50-63.

A fenomenologia das eleições

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Doutorado Barbara Lorenzoni Basso

“Mother do you think they'll drop the bomb?
[…]
Mother should I build the wall?
Mother should I run for President?
Mother should I trust the government?”
(Pink Floyd)

As eleições presidenciais que estamos vivendo parecem estar dividindo o Brasil ao meio. As pessoas defendem seus candidatos expressando suas opiniões e divulgando muitas informações – nem sempre verdadeiras – tanto sobre o candidato de sua preferência como de seu adversário. Essa disputa já  desfez muitas amizades e gerou diversos conflitos. Isso porque ao ouvir as opiniões de algumas pessoas pensamos “como eles podem pensar assim? Não é possível que não enxerguem a realidade”. Mas muitas vezes as pessoas que emitem opiniões que nos parecem absurdas são muito próximas e queridas. Então me peguei pensando: mas o que é a realidade?, como posso tentar entender o ponto de vista deles, a sua realidade? – afinal, são pessoas que amo e admiro, algo deve haver de coerente em suas posições.

James (apud SCHUTZ, 2002) dizia que as pessoas podem pensar de modo diferente sobre o mesmo objeto – e que elas são capazes de escolher a qual desses modos de pensar querem aderir ou qual preferem ignorar. Podem existir, segundo o autor, diferentes ordens da realidade, diferentes subuniversos, diferentes mundos. Deve ser isso: estamos olhando para as eleições a partir de diferentes mundos. 

Decidi, então, buscar na fenomenologia de Husserl (2008) uma forma de olhar para o fenômeno em questão, buscando uma análise compreensiva. Para isso seria preciso colocar o mundo “entre parênteses”: eu deveria deixar de lado os preconceitos, teorias e definições que costumo utilizar para conferir sentido às coisas, pois só assim seria capaz de enxergar o fenômeno em sua totalidade, de maneira direta, sem a intervenção de meus conceitos prévios.

Aceitei o desafio e mergulhei nas leituras acerca dos candidatos, seus partidos, suas propostas de governo, seus antecedentes políticos, suas biografias, suas trajetórias políticas e acadêmicas, os processos contra cada um deles, suas opiniões com relação a diferentes propostas de leis, etc. Procurei ao máximo buscar a informação em fontes confiáveis e evitar as fake news, tão difundidas nesses últimos meses. Como resultado de meus estudos, entendo que Haddad e Bolsonaro representam mundos diferentes porque partem de modos diferentes de entender o funcionamento do mundo: partem de ontologias distintas. Também acreditam em caminhos diferentes para produzir conhecimento, para gerar progresso/desenvolvimento... É isso! – pensei – eles se baseiam em epistemologias distintas!

Haddad vem de bases da dialética materialista-histórica de Marx (2011), acredita na história como explicação para as teses e antíteses presentes em nossos dias e entende que as tensões precisam ser superadas para chegar às sínteses. Muito influenciado por Marx, entende as classes dominantes como a tese e o proletariado – as classes oprimidas, as minorias – como antíteses. E, como Marx, entende que é preciso dar voz e poder ao proletariado para que se produza a síntese. Essa visão, obviamente, recebe críticas: a crítica daqueles que questionam o que acontece quando o proletariado chega ao poder – cria-se uma nova tese de dominação, dessa vez protagonizada pelos oprimidos? O proletariado no poder passa a agir como antes agiam os dominantes e abusam do poder que agora têm? São também criticados pelos pragmáticos, que criticam o fato de a dialética não conseguir propor um ponto de vista analítico que permita uma visão diferente daquela dos atores analisados (Barthe, 2016). Isso pode levar a um foco demasiado nas críticas levantadas pelos oprimidos, sem levar-se em consideração que elas podem ser críticas parciais e pode ser necessário um olhar mais amplo sobre o problema. Também pode levar a entender que a solução necessária é sempre aquela reivindicada pelos oprimidos, sem fazer um esforço de análise mais amplo para entender quais são as competências críticas que eles possuem e quais dispositivos lhes faltam para permitir o desenvolvimento e ampliação de suas capacidades. E certamente um presidente da república deveria ser capaz de entender as necessidades das diferentes classes, as contradições existentes e os instrumentos necessários para oferecer dispositivos aos atores que os permita ampliar sua capacidade crítica e seu acesso aos apoios materiais e organizacionais que necessitam.

De outro lado, Bolsonaro parte de uma visão utilitarista, como a de Bentham (1979): busca maximizar a felicidade geral da nação, entendendo que o que os brasileiros buscam é maximizar sua felicidade, seu prazer, e minimizar sua dor. É uma visão epistemológica bastante comum e recorrente em nossa sociedade, que segue as mesmas bases do positivismo que nos empresta o lema de nossa bandeira. Parte de cálculos claros de custo-benefício, buscando sempre uma otimização de recursos com o objetivo de maximização da felicidade. Presume que o comportamento da sociedade é previsível e que todos buscam seus objetivos individuais – e, para atender aos objetivos individuais, é preciso fazê-lo de forma a satisfazer o máximo de pessoas possível, focando nas consequências, no que será gerado para a sociedade. É uma lógica, no entanto, que prefere “matar 1 para salvar 5” (como nos problemas propostos por Sandel, 2015), que aceita a infelicidade de alguns para poder garantir a felicidade de muitos. É, portanto, uma visão que privilegia a maioria e aceita que as minorias não tenham a mesma felicidade da maioria, já que a soma geral garantirá a maior felicidade possível para a sociedade. Outra crítica a essa visão é o fato de que ela resume o indivíduo à sua utilidade e não prevê a existência de direitos individuais fundamentais básicos que precisam ser respeitados acima de qualquer utilidade.

Com essa reflexão, entendi que os candidatos estão dividindo o país por olharem para o Brasil com lentes epistemológicas diferentes. E ambos terão apoiadores - que enxergam como eles - e críticos às suas visões. Ambos levantam questionamentos: Poderá um presidente governar apenas para a maioria? Poderá um presidente governar de forma a dar poder aos oprimidos? É possível um presidente que resume os cidadãos à sua utilidade e não defende seus direitos individuais? É desejável um governante que permite aos oprimidos chegar ao poder apenas para tornar dominante quem antes era dominado?

Não pretendo aqui defender um lado ou outro ou revelar minhas preferências em relação aos candidatos. Mas convido a uma reflexão sobre a forma como cada um de nós enxerga o mundo para que no próximo final de semana possamos votar naquele que mais estiver de acordo com nossas visões ontológicas e epistemológicas.

Roger Waters (Pink Floyd) - Mother - LIVE 2018.

Referências:
BARTHE, Yannick. Sociologia pragmática: guia do usuário. Sociologias. Porto Alegre, RS, 2016.
BENTHAM, J. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. In: Jeremy Bentham. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979.
HUSSERL, E, A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008.
MARX, K. Introdução. In: MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858; esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Editora José Olympio, 2015.
SCHUTZ, A. Don Quixote e o Problema da Realidade In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.