Demarcação da ciência: o que é considerado científico?

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Évelyn Nunes de Melo Franzen

Talvez a melhor maneira de conceituar a ciência seja definindo aquilo que ela não é. Ciência não é senso comum e não é ideologia, embora ela reflita as crenças do pesquisador. O senso-comum é entendido por Demo (1985) como o pensamento acrítico, baseado apenas na observação do homem comum e sem qualquer reflexão profunda sobre o assunto. Já a ideologia, é compreendida pelo autor tal qual uma cegueira seletiva, como se o mundo fosse visto e justificado apenas por uma perspectiva. 

Em que pese pareça simples fazer essa distinção, na prática a ciência é um continuum entre o senso comum e a ideologia. Adentramos no senso-comum quando discursamos sobre um assunto que não somos especializados e agimos ideologicamente quando transparecemos nossas crenças individuais. Sabermos disso é um grande passo. A ciência só seria objetiva se fosse possível o sujeito sair de si mesmo para analisar a situação de outro ângulo. 

Para clarear essa definição de ciência, Pedro Demo (1985) nos apresenta critérios internos de cientificidade, abrindo espaço para outros parâmetros que contribuam para a construção do conhecimento, tais como: a) Coerência: argumentação sem contradição, estruturada e amarrada, dedução lógica de conteúdo, conclusões congruentes; b) Consistência: argumentos sustentados pela comunidade científica, capazes de resistir ao contraditório; c) Originalidade: produção inovadora e não meramente repetitiva, representando real contribuição ao conhecimento; d) Objetivação: tentativa em reproduzir a realidade como ela é e não como ela deveria ser. Da mesma forma, o autor disserta sobre os critérios externos de cientificidade que apontam para a intersubjetividade, isto é, envolvimento do contexto do pesquisador, sua época e lugar na demarcação científica, levando em conta o grau de autoridade atribuído ao argumento. E para a difusão, ou seja, a comparação crítica, divulgação e conhecimento generalizado. 

                            Fonte: elaboração própria (2022).

A metodologia científica abre os horizontes do investigador para os limites e as potencialidades da pesquisa. “Decompor-se metodologicamente” é uma expressão utilizada por Demo (1985, p.13) para demonstrar a necessidade de se mergulhar no mundo da pesquisa com o coração aberto, disposto a “colocar em cheque nossas crenças acadêmicas”, “invalidar sobretudo as evidências” e “relativizar os autores preferidos” (DEMO, 1985, p. 13). Eis aqui o desafio do pesquisador, que, embora como indivíduo tenha as suas paixões, deve inclinar-se sempre a verdade e aos resultados daquilo que busca.

Assim, é de valorosa importância a “contrução do objeto”, ou seja, teorizar sobre os fatos, acontecimentos, pessoas e objetos per se. A título de exemplo, não precisamos de um antropólogo para que exista uma família, mas sem a percepção aguçada da antropologia, com suas observações e estudos, não teríamos uma visão ampla sobre esse conceito. Isso vale para qualquer outro caso. É preciso uma análise minuciosa dos fenômenos para compreendê-los. E cada uma dessas análises podem ser comparadas… de forma com que o conhecimento e a ciência vão alcançando passos cada vez mais largos. 

De todo modo, é preciso estarmos atentos, pois cada área faz um recorte da sua realidade, por exemplo, uma constituição familiar pode ser analisada sob um enfoque econômico, biológico, sociológico, dentre outros. Portanto, ter consciência das limitações é determinante nessa busca por fazer ciência. Destarte, sabendo que não conseguimos alcançar uma objetividade absoluta, buscar a objetivação é um grande passo nessa jornada acadêmica. Afinal, o objeto construído não pode ser um objeto inventado para satisfazer nossas crenças. 

Dessa maneira, é através da epistemologia, um processo de constituição intimamente ligado à reflexão crítica, que ordenamos a maneira de fazer ciência. Japiassu (1991) define etimologicamente a epistemologia como o discurso (logos) sobre a ciência (episteme), trazendo uma reflexão sobre a organização e a caracterização da própria ciência, de forma a perscrutar os seus valores e a quem servem os seus objetivos. O autor destaca duas modalidades de epistemologia: a interna, que intenta estabelecer os fundamentos da disciplina; e a derivada, que procura saber como a forma de conhecimento é possível. 

                                Fonte: elaboração própria (2022).

Outrossim, de forma ampla, Japiassu (1991, p. 17) classifica a epistemologia em: 

a) Epistemologia global (geral): quando se trata do saber globalmente considerado, com a virtualidade e os problemas do conjunto de sua organização, quer sejam “especulativos”, quer “científicos”; 

b) Epistemologia particular: quando se trata de levar em consideração um campo particular do saber, quer seja “especulativo”, quer “científico”; 

c) Epistemologia específica: quando se trata de levar em conta uma disciplina intelectualmente constituída em unidade bem definida do saber e de estudá-la de modo próximo, detalhado e técnico, mostrando sua organização, seu funcionamento e as possíveis relações que ela mantém com as demais disciplinas. 

Para Demo (1985), tal como a realidade histórica, a ciência é um processo constante e, consequentemente, também se torna um fenômeno social. Ainda, buscar legitimar uma teoria como absoluta, por mais que seja o desejo de muitos pesquisadores, é prejudicial ao processo científico, pois é impossível que uma teoria considere todas as variáveis de um determinado fenômeno. 

A importância da epistemologia no cenário acadêmico é destacada por Tesser (1994, p. 92), quando afirma que: 

Epistemologia: é a ciência da ciência. Filosofia da ciência. É o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências. É a teoria do conhecimento. A tarefa principal da epistemologia consiste na reconstrução racional do conhecimento científico, conhecer, analisar, todo o processo gnosiológico da ciência do ponto de vista lógico, linguístico, sociológico, interdisciplinar, político, filosófico e histórico. O conhecimento científico é provisório, jamais acabado ou definitivo. É sempre tributário de um pano de fundo ideológico, religioso, econômico, político e histórico. Podemos considerar a epistemologia como o estudo metódico e reflexivo do saber, de sua organização, de sua formação, de seu desenvolvimento, de seu funcionamento e de seus produtos intelectuais. A epistemologia é o estudo do conhecimento. 

Nessa toada, a ciência emerge dos anseios que intrigam o pesquisador e caminham com ele durante toda a vida, afinal, “a realidade nunca estará suficientemente estudada” (DEMO, 1985, p. 13). Assim, é através da pesquisa que confrontamos os conhecimentos internos e externos para encontrarmos algumas respostas. Esse caminho investigatório orienta-se pela bússola metodológica representada por inúmeras correntes metodológicas que, por vezes, destoam entre si. 

Desse modo, onde há ciência, há um caminho constante de buscas. O saber não é estático e, portanto, não se limita. 

REFERÊNCIAS 

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985. 

JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. O que é a epistemologia? In: Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 15-39. 

TESSER, G. J. Principais linhas epistemológicas contemporâneas. Educar em Revista [online]. 1994, n. 10 [Acessado 17 Agosto 2022] , p. 91-98. Disponível em: Epub 06 Mar 2015. ISSN 1984-0411. https://doi.org/10.1590/0104-4060.131.