Democracia Hegemônica versus Democracia Contra Hegemônica: as bases epistemológicas do modelo representativo

Democracia Hegemônica versus Democracia Contra Hegemônica: as bases epistemológicas do modelo representativo

 

Pequeno ensaio acadêmico produzido pela acadêmica de doutorado Bruna Hamerski


 “[...] a sociedade participativa é a qualidade política mais qualitativa que a história poderia engendrar” (DEMO, 1995, p. 25). Ao observar esta frase de Pedro Demo, nota-se que a participação da Sociedade Civil nas políticas públicas, para o autor, possui um caráter qualitativo, uma dimensão subjetiva, uma interpretação complexa. Tal questão é, no mínimo, curiosa, uma vez que, quando se observa as práticas de gestão participativa no Brasil, nota-se que o que está consolidado em lei são formas de participação extremamente quantitativas, alinhadas a um viés mais objetivo de interpretação da realidade.

As formas de exercer o sufrágio presentes na Constituição Federal de 1988 são o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (BRASIL, 1988). Tais ferramentas vão ao encontro de um modelo objetivo de participação, uma vez que o plebiscito consiste em uma consulta prévia à população (antes de entrar em votação na câmara), referente a determinado assunto, e o referendo consiste em consulta posterior à população (depois que o projeto já foi votado). Em ambas as situações, a população vota a respeito do assunto. Já a iniciativa popular consiste em projeto de lei elaborado pela população, mediante assinatura de um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles (BRASIL, 1998). Veja só quantos números, ou seja, por mais que existam práticas para além do voto para eleger o representante, elas também são qualificadas por um critério objetivo. A iniciativa popular, apesar de ainda não ser uma forma tão ambiciosa de participação, é a que mais avança. Mas o curioso é que, em 30 anos, apenas quatro projetos de iniciativa popular foram aprovados pelo congresso, sendo eles: Lei 8.930/1994: o caso Daniella Perez, Lei 9.840/1999: combate à compra de votos, Lei 11.124/2005: moradia popular e Lei Complementar 135/2010: a Lei da Ficha Limpa (G1, 2021). É claro que esta afirmação é ampla e há a necessidade de analisar cada projeto, uma vez que há muitos projetos que vão contra a própria participação popular, mas é curioso o fato de que apenas quatro projetos foram aprovados.

Outro fator curioso pode ser observado quando falamos do recall e do veto popular. O recall consiste na possibilidade de a sociedade revogar o mandato de determinado governante. Já o veto popular consiste na possibilidade de os cidadãos bloquearem uma iniciativa legislativa. Estas duas ferramentas são dispositivos poderosos de participação da Sociedade Civil. Entretanto, apesar de já terem sido objetos de projeto de lei, ainda não foram aprovadas (SENADO FEDERAL, 2015; CAMARA DOS DEPUTADOS, 2017).

Ademais, cabe destacar as experiências de gestão participativa que surgem com os conselhos de políticas públicas e orçamentos participativos. Experiências estas que acontecem na atualidade, apesar de não haver uma lei geral sobre conselhos, por exemplo. No entanto, muitas vezes, o Poder Público não leva em conta as decisões tomadas no âmbito dos conselhos, fazendo com que estas experiências, na prática, acabem funcionando apenas como formas consultivas, por parte do Poder Público (HAMERSKI, 2021, no prelo).

Por que isso acontece? Por que, historicamente, o modelo representativo tem sido hegemônico quando estamos falando de participação? Este trabalho quer argumentar a respeito de uma possível resposta para esta pergunta: a defesa deste modelo, e também a tentativa de derrubada de modelos que se mostrem mais abertos à participação da Sociedade Civil está relacionada a dois elementos: aos valores ideológicos dos governantes que chegam ao poder e à base epistemológica hegemônica dos estudos sobre participação popular. Em vista disso, este texto tem por objetivo apontar elementos que demonstram a relação entre a hegemonia da democracia liberal/burguesa na participação popular e as bases epistemológicas dos defensores deste molde de participação.

Para tanto, início trazendo uma possível analogia: a democracia liberal está relacionada aos modelos positivistas de compreensão da realidade e a democracia participativa e/ou deliberativa está relacionada aos modelos de caráter interpretativista de compreensão da realidade, as duas, além disso, estão relacionadas aos valores ideológicos de seus defensores. Tendo em vista estas preposições, a seguir serão apresentados os elementos dos respectivos modelos de participação e a relação com a abordagem epistemológica e com os valores ideológicos dos defensores de cada modelo de participação.

 APRESENTAÇÃO DA TEORIA E POSICIONAMENTO

 Ao analisar o que os defensores do modelo representativo têm a dizer sobre o conceito de participação, nota-se uma defesa do modelo representativo para evitar uma possível “perda de controle”, ocasionada pelo aumento das exigências populares (TOCQUEVILLE, 2005). Ademais, para estes autores, o governo do povo é o governo aprovado pelo povo, ou seja, não há uma oposição em dar poder ao povo, apenas não há a defesa de necessidade de aumentar esse poder para além do voto, pois teme-se que haja uma tirania da maioria (SCHUMPETER, 1961).

Pode-se observar que, até aqui, foram mencionados dois autores clássicos. No entanto, ao avançar para autores da democracia contemporânea, inclusive autores que analisaram a entrada das massas no processo decisório, como Dahl (2003), não se observa muitas mudanças de pensamento em relação ao avanço de um modelo representativo para uma democracia direta. Para Dahl (2003), a democracia depende de mecanismos institucionais, sendo ela um método político, e não um princípio, um valor que deva estar assentado nas bases sociais. Ademais, Dahl não desconsidera as instituições em seu modelo de pensamento sobre participação popular.

Ao observar os critérios levados em conta para validar a participação no modelo liberal (um indivíduo = um voto), nota-se que estes se assemelham a visões objetivas da realidade, uma vez que consideram critérios numéricos e percentuais para validar a participação da Sociedade Civil. Tal interpretação da realidade pode ser encontrada no paradigma positivista, segundo o qual a realidade é observada a partir de uma lógica mecanicista e carente de profundidade (BRACKEN, 2010). Entretanto, é necessário que esta abordagem seja observada com muito cuidado, uma vez que, ao tentar aplicar critérios objetivos a elementos subjetivos na análise, há um grande risco de distorção da realidade (TSOUKAS, 2005).

O paradigma positivista deriva de uma visão de mundo chamada de realismo, segundo a qual a realidade é compreendida de uma maneira objetiva, dando origem a técnicas mais estruturadas para análise e interpretação da realidade (SACCOL, 2009). Tal elemento vai ao encontro da lógica do modelo representativo, uma vez que os defensores deste modelo acreditam no voto como ferramenta mais adequada de participação da Sociedade Civil.

Argumenta-se que a abordagem positivista vai ao encontro do modelo representativo porque ela parte do pressuposto de que a realidade já está dada, não sendo necessária uma interação entre sujeito e objeto e, neste caso, fazendo a analogia com a participação, entre o Estado e a Sociedade Civil. Portanto, parte-se do pressuposto de que o voto seria suficiente para efetivar a participação e de que o resultado numérico dele seria o suficiente para garantir a congruência entre os anseios da Sociedade Civil e o conteúdo das decisões administrativas dos governantes que chegam ao poder. Do mesmo modo, uma abordagem positivista de interpretação da realidade que, via de regra utiliza critérios quantitativos e formulação de hipóteses, teria a mesma visão de interpretação da realidade: os números são suficientes para chegar aos resultados pretendidos.

Mas será que este modelo não distorceria a participação, assim como pode-se dizer que determinada ferramenta utilizada pelo pesquisador pode distorcer o objeto de pesquisa? (TSOUKAS, 2005) Seria esta distorção proposital? Esta é uma visão de muitos defensores da corrente que se coloca em oposição à democracia liberal: a democracia participativa e, mais recentemente, a democracia deliberativa. Argumenta-se, neste texto, que a democracia participativa estaria ligada à abordagem interpretativista, que deriva de uma dimensão que considera a interação entre o pesquisador e o objeto de pesquisa para entender a realidade. Nesta abordagem, os métodos de coleta de dados não costumam ser estruturados e sua posterior análise não é estatística. Aliás, não há uma forma consolidada de interpretar os dados analisados, o que requer maior rigor no momento de explicar como a pesquisa foi realizada (SACCOL, 2009).

Ademais, é necessário destacar que, no uso das abordagens interpretativistas, atribui-se uma importância maior ao rigor e cuidado para que a posição ideológica do pesquisador não interfira na interpretação do objeto, cabendo destacar que a posição ideológica do pesquisador, caso a pesquisa não seja levada com rigor, pode impactar os resultados da pesquisa (BRACKEN, 2010).

No entanto, esta abordagem possui diversos pontos positivos, possibilitando o aprofundamento em relação ao objeto de estudo, possibilitando a criação de novas teorias e renovação do que já foi escrito sobre o assunto (CUNHA; REGO, 2019). Em relação à temática da participação, como seria possível propor um modelo alternativo de participação direta se os estudos existentes, em sua maioria, baseiam-se em países de primeiro mundo, não permitindo uma transposição destes estudos adequada às peculiaridades dos países latino-americanos? Esta é uma das vantagens, e, talvez, a principal, dos estudos qualitativos sobre a temática da participação popular.

Ora, é dessa mesma forma que os teóricos defensores da participação direta e, desse modo, da democracia participativa e, mais recentemente, da democracia deliberativa, interpretam a realidade. Para os defensores de uma participação mais efetiva da Sociedade Civil, é necessário que haja interação, diálogo, deliberação, para que, posteriormente, ocorra a institucionalização da esfera pública, o momento no qual as decisões da Sociedade Civil são levadas em conta para compor o conteúdo das decisões administrativas (PATEMAN, 1992; 2012; HABERMAS, 1997).

Os autores que defendem uma democracia mais direta vão ao encontro de um modelo interpretativista de compreensão da realidade não apenas por enxergarem que a dinâmica da participação está inserida numa dimensão subjetiva, complexa, mas porque, para entender a complexidade da participação, é necessário que o modo de enxergar esta realidade também seja complexo (TSOUKAS, 2005).

Com as mudanças tecnológicas, surge a necessidade, cada vez maior, de aderir a um método mais complexo de interpretação da realidade (TSOUKAS, 2005). No caso brasileiro, e aqui destacando os conselhos de políticas públicas, nota-se que são espaços onde diversos atores da sociedade civil levam suas opiniões e valores para o jogo. Opiniões, crenças e valores que são formados previamente por esses atores, sejam eles empresas privadas, terceiro setor, entidades de classe ou usuários de políticas públicas. Entender todo esse processo, desde o contexto histórico-cultural de cada indivíduo até sua opinião levada para a esfera pública e como se dá esse processo de decisão não é uma tarefa fácil, sendo necessário, portanto, uma análise mais complexa deste contexto.

Por isso, argumenta-se neste trabalho que a abordagem interpretativista vai ao encontro da democracia participativa porque a primeira considera a interação entre sujeito e objeto para interpretação da realidade, ao passo que a democracia participativa e/ou deliberativa considera a interação e/ou deliberação entre Estado e Sociedade como caráter prévio para a tomada de decisão pelo Poder Público.

No caso da participação, mesmo que as ferramentas de democracia participativa não estejam institucionalizadas, em outras palavras, não há uma lei geral sobre conselhos, por exemplo, elas costumam ser efetivadas na prática, combinadas com o modelo representativo. Do mesmo modo, estabelecendo a relação com a ciência, uma alternativa apresentada pela literatura é a utilização de métodos mistos de pesquisa (BRACKEN, 2010).

A pesquisa objetiva, mais orientada a dados quantitativos, pode ser útil para a obtenção de dados mais amplos sobre o tema. No caso da participação, uma abordagem quantitativa pode ser um mapeamento de todos os conselhos de políticas públicas, em nível nacional, bem como do número de resoluções elaboradas por eles e aprovadas pelo Poder Público em determinado recorte temporal. Já uma abordagem qualitativa pode ser a realização de entrevistas com um membro de cada um destes conselhos, visando entender o porquê de determinadas resoluções não terem sido aprovadas, por exemplo. Dizer que mais de 50% das resoluções dos conselhos foram aprovadas e que, por isso, o poder público atende das demandas da Sociedade Civil não é uma afirmação que pode ser feita, uma vez que há diversos tipos de resoluções feitas pelos conselhos, como, por exemplo, as resoluções de seu próprio funcionamento, que não implicam em nenhuma mudança nas políticas sociais. Se 50% das resoluções foram acatadas pelo poder público, mas nenhuma delas dizia respeito às políticas públicas ou ao montante de recursos, não é possível afirmar que haja congruência entre os anseios da Sociedade Civil e o conteúdo das decisões administrativas.

Mas por que a participação foi escolhida para fazer essa reflexão entre visões de mundo e maneira de enxergar a realidade? Por que a participação e não outro elemento? Não apenas para mostrar que o modelo representativo está ligado a uma epistemologia mais positivista e o modelo participativo a uma epistemologia interpretativista, mas também para se questionar a respeito do motivo. Afinal, é um fato explicitamente exposto na realidade que o modelo representativo é predominantemente quantitativo e o modelo participativo está relacionado a uma dimensão mais subjetiva da participação, uma vez que o voto é a ferramenta presente na Constituição Federal de 1988 como forma de exercer o sufrágio universal (BRASIL, 1988), enquanto que, em relação à participação cidadã nas políticas públicas em caráter deliberativo, o que se observa na carta constitucional é apenas “O Estado exercerá a função de planejamento das políticas sociais, assegurada, na forma da lei, a participação da sociedade nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação dessas políticas (BRASIL, 1988, art. 193, parágrafo único). Ou seja, não há uma lei geral sobre conselhos ou a presença destes de forma explícita na Constituição Federal de 1988. Mas por que há uma disputa velada entre esses dois modelos? Por que os defensores da democracia liberal argumentam que a democracia participativa não é eficaz mesmo depois das experiências dos conselhos de políticas públicas e orçamentos participativos? (DAGNINO, 2004).

Porque a adoção de determinada abordagem epistemológica e defesa de determinada teoria não está relacionada apenas à forma de enxergar a realidade, mas também à realidade que o pesquisador deseja alcançar, ao que ele almeja em um mundo ideal. Aqui entra o debate sobre ideologia e a crítica à forma como ela pode ser utilizada para consolidar determinados tipos de poder e, no caso da participação, de Controle Social (DEMO, 1995). Nesse sentido, o debate sobre participação é um exemplo claro sobre as formas de justificativa do ultraliberalismo para se perpetuar como modelo hegemônico, ressignificar a participação, a menor, defendendo novas visões de Sociedade Civil, Cidadania e Participação (DAGNINO, 2004).

Carlos Estevam Martins (2003) em seu texto Liberalismo: o direito e o avesso, discorre de maneira clara sobre a hegemonia do liberalismo em todas as esferas. Para o autor, quem se contrapõe ao liberalismo enfrenta tarefas difíceis, destacando como principal a necessidade de separar-se do liberalismo, definindo-o como algo a ser repudiado, e, em segundo lugar, conceber a democracia como um ideal distinto (MARTINS, 2003, p. 619). Para tanto, utiliza-se do discurso: “o liberalismo é tudo, fora dele não há nada que preste” (MARTINS, 2003, p. 629). A esse discurso o autor dá o nome de boca de jacaré, que absorve tudo para o liberalismo e considera tudo que for a favor dele como bom e o que for contra como autoritário, numa era em que o liberalismo, como forma de hegemonia, absorveu as contribuições positivas da esquerda (MARTINS, 2003). Para o autor: “Nas lutas ideológicas, a indefinição oferece muitas vantagens. Uma delas é ofuscar a visão dos outros” (MARTINS, 2003, p. 620).

Argumentar a respeito de um modelo quantitativo e objetivo de participação cidadã não seria uma forma de ter a possibilidade de distorcer a subjetividade da participação? Defender esse modelo a qualquer custo, mesmo havendo novas teorias e pensadores contemporâneos trazendo teorias alternativas de participação não seria uma forma de colocar a ideologia acima da ciência? A participação nos conselhos de políticas públicas realmente é ineficaz, sendo que o que se observa são os conselhos elaborando resoluções que são completamente contrariadas pelo Poder Público?

Diversos estudos (KRONEMBERGER et al., 2012; MIWA; SERAPIONI; VENTURA, 2017; DELE; OLIVEIRA, 2021) apontam a baixa participação da Sociedade Civil nos conselhos municipais, mas os plenários dos conselhos são divulgados amplamente? O espaço é adequado e suficiente para uma grande quantidade de pessoas? Por que não há uma lei geral/federal sobre conselhos? Por que há uma ênfase na participação da sociedade na constituição federal, mas os conselhos não estão presentes na carta constitucional?

Afinal, conforme Demo (1995), a interpretação rigorosa da realidade flerta com a ideologia e o senso comum, não podendo ser confundida com nenhum dos dois, mas como não há limites rígidos entre os conceitos, é necessário que a análise seja feita com rigor. No caso da ideologia, fica a reflexão sobre uma possível distorção do que seria a verdadeira participação, usando como argumento de defesa um critério quantitativo, visando perpetuar determinada visão de mundo como hegemônica, o que tem acontecido com sucesso, no caso do ultraliberalismo.

No caso brasileiro, apesar da Constituição Federal de 1988 e sua ênfase na participação cidadã ter feito com que várias experiências de participação, em tese, direta, tivessem surgido no Brasil, não é possível dizer que elas foram consolidadas. Essa poderia ser uma alternativa interessante de combinação de abordagens mistas de participação, combinando o voto com as deliberações nos conselhos de políticas públicas e orçamentos participativos e, portanto, combinando o caráter positivista, mais objetivo, do voto, com a subjetividade do consenso que pode ser obtido nas práticas de gestão participativa.

No entanto, o que se observa, na maioria dos casos, não é essa combinação. Mas a tentativa de invalidação da participação nos conselhos por parte do Poder Executivo, ao não acatar as decisões tomadas nas resoluções elaboradas após as plenárias dos conselhos. Seria este um caso de interferência ideológica?

Assim, destaca-se o caráter positivista do modelo de democracia liberal, devido ao sistema de voto como método hegemônico de participação, e o caráter interpretativista dos defensores da democracia participativa e da democracia deliberativa, cujas decisões devem ser tomadas a partir do consenso e diálogo. Ou seja, a primeiro admite a realidade social como independente da interação entre Estado e Sociedade Civil, considerando suficiente uma forma de participação que depende unicamente de um critério objetivo. Já a segunda compreende a interação entre sujeito e objeto – Estado e Sociedade Civil – como fundamental para uma implementação de políticas públicas mais qualificada e eficaz.

Ademais, destaca-se que a adoção de determinado modelo de participação não advém apenas da forma de interpretação da realidade por parte de seus defensores, mas também devido à necessidade de perpetuação da hegemonia de determinados tipos modelos de Estado.

Por fim, destaca-se que o posicionamento da autora deste trabalho é a favor da combinação de abordagens, seja na pesquisa, seja nas decisões coletivas. As informações oriundas de dados quantitativos são importantes para trazer um panorama geral sobre determinado tema, ou, no caso da participação, para manifestar a opinião geral da Sociedade. Mas é justamente pelo fato de as práticas de gestão participativa não estarem institucionalizadas que a opinião da Sociedade Civil deve ser ouvida, ou, no caso da pesquisa, a opinião de determinado sujeito, que está diretamente vinculado à uma realidade social específica, cujas informações não podem ser obtidas a partir de uma variável. Isso é importante para que, no caso da pesquisa, o objeto não seja distorcido e, no caso da participação, a opinião da Sociedade Civil não seja levada em conta apenas quando vai ao encontro do Poder Público.

 CONSIDERAÇÕES

Este texto teve como objetivo principal trazer uma reflexão sobre a relação entre a democracia liberal/burguesa, no âmbito da qual se destaca o modelo representativo, e as bases epistemológicas dos defensores deste tipo de participação. Ademais, buscou refletir sobre a possibilidade de interferência dos valores ideológicos na defesa de determinadas formas de participação.

Como principais apontamentos e reflexões, o texto buscou chamar atenção para a relação entre a análise quantitativa, estruturada, advinda da lógica positivista e o modelo representativo (um indivíduo = um voto), que se coloca em oposição ao modelo participativo, que usa uma dimensão subjetiva para interpretar a participação, sendo, portanto, oriunda de um caráter mais subjetivo de interpretação da realidade, estando relacionado a visões interpretativistas. 

Ademais, também buscou trazer a reflexão de que, no caso da participação popular, determinados argumentos e defesas de determinados modelos de participação podem estar relacionados não apenas à abordagem epistemológica dos defensores deste modelo, mas também aos seus valores ideológicos, que podem ser utilizados com o objetivo de perpetuar determinada visão de mundo e solidificar estratégias de controle social. Defensores, estes, que podem, inclusive, usar de argumentos científicos para distorcer a verdadeira participação popular.

Destaca a importância da adoção de métodos mistos de participação, com o intuito de combinar diferentes critérios de interpretação da realidade e de manifestação de opinião da Sociedade Civil, visando possibilitar maior congruência entre os anseios dos cidadãos e as decisões dos governantes que estão no poder.

Cabe salientar que é sabido que a participação popular, sobretudo a qualificação da participação direta da Sociedade Civil nas políticas públicas, ainda enfrenta muitos desafios. Em parte, pela falta de uma cultura participativa, mas também em parte pelos valores ideológicos e visões de mundo que os defensores de diferentes formas de participação possuem. Entretanto, as práticas de gestão participativa precisam ser analisadas com cuidado, não se deixando levar pelos valores ideológicos de alguns críticos da participação popular e da formação de uma cultura participativa.

O posicionamento da autora deste trabalho é na defesa de métodos mistos, partindo do pressuposto de que a combinação de diferentes métodos para analisar o mesmo fenômeno pode ser uma abordagem interessante para garantir que o objeto seja analisado de maneira fiel à realidade. No caso da participação, o posicionamento é o mesmo: na defesa da combinação entre o voto e as práticas de gestão participativa, considerando que o voto permite entender uma visão geral que a Sociedade Civil tem sobre determinado governante ou valor ideológico que está no poder, enquanto que a democracia participativa permite resolver questões em nível local, aprofundando os problemas públicos específicos de cada região do Brasil e entendendo quais são os anseios mais importantes da Sociedade Civil sobre determinadas políticas públicas.

 Por fim, cabe fazer a ressalva a respeito dos valores ideológicos da autora deste trabalho, que podem influenciar a interpretação sobre a participação nas políticas públicas.

 

REFERÊNCIAS

 

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