O dia em que Kant uniu Bacon e Descartes

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de doutorado Gabriel Marmentini.

Bacon, Descartes e Kant estavam em um mesmo hotel e não sabiam. Os três vieram para Florianópolis a convite da professora Carolina Andion, uma entusiasta do estudo da ciência. Carol, como é carinhosamente chamada por seus pares e alunos, sempre sonhou em organizar um encontro científico onde o foco das discussões seria a epistemologia da ciência. Elaborou a agenda do encontro com muito cuidado, de modo a retratar toda a construção histórica da ciência. Como sonhar grande e sonhar pequeno dá o mesmo trabalho, Carol optou por sonhar grande, convidando os principais nomes da epistemologia para participarem do encontro. Como estudou na França, Carol já era amiga de Descartes, o qual aceitou o convite prontamente. Depois, Carol foi atrás de Bacon, com o argumento de que se ele não participasse do encontro, deixaria passar a oportunidade de contrapor Descartes frente a uma audiência cativa. Deu certo. E assim ela seguiu, conseguindo confirmações de diversos nomes de peso com sua força nordestina. Como o aceite de Kant, que foi convidado por Carol para fazer a abertura do evento, fazendo uma palestra inspiradora sobre a ética deontológica na perspectiva dos problemas atuais do Brasil. E é por isso que os três estavam no mesmo hotel.

Fonte: Wikipedia (2019)
Descartes estava se sentindo em casa no hotel Mercure. Além de saber pronunciar corretamente o nome do hotel em seu nativo francês, todo o café da manhã tinha lastro na culinária do seu país. Bacon não teve a mesma sorte. Do seu delicioso full english breakfast que estava acostumado, apenas os ovos se faziam presentes, mas não eram fritos, e sim mexidos. Fora o fato de que todos zombavam de seu sobrenome. Ao menos a música ambiente era do Led Zeppelin, banda que embalou noites memoráveis para Bacon em terras londrinas. Kant, que nunca tinha saído de Königsberg antes, estava maravilhado com a ilha da magia. Como um bom prussiano, optou por tomar algumas cervejas no café da manhã, mas se decepcionou com a baixa qualidade das cervejas comerciais brasileiras. A despeito de qualquer detalhe, o hotel vinha cumprindo um papel importante na recomposição das energias dos pensadores, que tinham viajado por muitas horas para comparecer o evento de Carol. Não obstante, algo aconteceria no café da manhã do dia seguinte e que ficaria marcado como um ponto de inflexão na ciência.

Bacon chegou no café muito cedo e acabou por sentar sozinho em uma mesa para quatro pessoas. Amante das músicas que tocavam no hotel, optou por tomar seu café de forma lenta, apreciando muitas músicas inglesas. Por ter ficado um longo período de tempo no recinto, presenciou a entrada e a saída de muitas pessoas, até o momento em que o local ficou extremamente cheio, sendo necessário dividir sua mesa com pessoas estranhas. E foi neste momento que Descartes e Bacon se encontraram, para além de suas obras escritas, pela primeira vez. 

Bacon agiu naturalmente, pois sabia que encontraria a figura cedo ou tarde. Afinal, foi para trazer seu contraponto que Carol o convidou. Mas acontece que Descartes não esperava por este encontro. Como estratégia, Carol optou por não contar a ele, com receio de que o mesmo se sentisse magoado pelo fato de uma grande amiga ter convidado um sujeito com pensamentos tão diferentes do que ele julgava como correto. Não tinha para onde correr. Descartes precisava sentar em algum lugar para apreciar seu croissant. Os dois se olharam por um tempo e ficaram em silêncio. Até que em algum momento as primeiras palavras começaram a ser ditas e, num piscar de olhos, o tom de voz foi aumentando. Todos ao redor olhavam com estranheza, pois sequer compreendiam o cerne da discussão: racionalismo ou empirismo? Objeto ou sujeito? De que diabos estão falando? Quem poderia ajudar? Claramente, a conversa entre eles não iria para um caminho propositivo. Nenhuma das partes esboçou sinais de agressão verbal ou física, pelo menos nisso eles concordavam. O problema é que nenhum dos dois estava de fato aberto a ouvir.

Kant estava de sunga e convicto de que encontraria melhores cervejas no bar flutuante da piscina do hotel. Passou brevemente pelo salão do café, pois queria coletar uns cubos de queijo para harmonizar com sua cerveja. Quanto mais se aproximava do buffet, mais escutava o diálogo entre Descartes e Bacon. Pela primeira vez, alguém no recinto entendia do assunto em questão. Kant sentiu seu coração bater mais forte a cada frase que ouvia, mas ele ainda não tinha visto os responsáveis por tal diálogo, que estavam no segundo andar. Naquele momento, Kant deixou sua toalha e seus cubos de queijo no primeiro armário que viu, bem como sua vontade de encontrar melhores cervejas. Agora, sua vontade era apenas uma: mudar o rumo da ciência. Ao subir as escadas, Kant já estava convicto de que encontraria, de um lado, Descartes, Spinoza ou Leibniz; de outro, Locke, Bacon ou Hume. Ele estava certo, e abriu um imenso sorriso ao se aproximar da mesa. Sentou e, sem nem se apresentar, falou: “cavalheiros, se me permitem, vocês não estão agindo de um modo propositivo. Vocês precisam se ouvir com calma, compreender a trajetória de cada um, sua visão de mundo e seus argumentos. Me deixem ajudá-los?” Ambos respiraram fundo e acenaram a cabeça positivamente. Não obstante, ambos pensaram ser pouco provável que uma pessoa de sunga no café da manhã tivesse algo a contribuir de fato.

Kant tinha um forte repertório de comunicação não violenta, pois gostava de acompanhar os conteúdos de uma organização chamada Politize!, a qual havia sido indicada a ele por Carol. Tal organização trabalha para fortalecer a democracia brasileira por meio da educação política, tendo por uma de suas ferramentas a CNV. Com isso, Kant indicou os princípios necessários para a continuidade da conversa, quais sejam: a) reconhecer emoções no outro; b) não julgar; e c) entender a perspectiva do próximo. Os princípios estão fortemente ancorados nas ideias de pluralidade de ideias, empatia e modelos mentais. Feito isso, Kant estruturou um processo de escuta ativa, onde não foi permitido interrupção; de indagações, onde é importante fazer perguntas que contribuam para o entendimento; de parafraseamento, onde a compreensão é confirmada por meio da repetição dos argumentos ditos; de reflexão, onde estamos abertos para ouvir sugestões de melhoria para as lacunas em nossos argumentos. 

A conversa fluiu de uma forma completamente diferente. O café da manhã virou almoço. O almoço virou petisco e cerveja na piscina. Kant não precisou expor uma vírgula de seu criticismo. Ele fez com que ambos chegassem na reflexão sobre sujeito e objeto, número e fenômeno, realismo e idealismo, sozinhos. Descartes, que acredita na dúvida como método, saiu duvidando de si mesmo e mais interessado em tecer pontes epistemológicas do que muros. Bacon ligou para Carol, dizendo que tinha recém experienciado algo marcante e que gostaria de sugerir uma adaptação na agenda do encontro. E a ciência nunca mais foi a mesma. Kant não estava interessado em um fim específico, como impor suas ideias ou ser reconhecido por uma nova teoria. Kant agiu por sua boa vontade, pelo dever, com seu imperativo categórico. O que ninguém percebeu é que Comte e Hegel estavam no hotel e presenciaram todo o ocorrido, mas isso são cenas dos próximos capítulos.

Referências:

WIKIPEDIA. [Imagem de Bacon, Kant e Descartes]. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org>. Acesso em: 22/09/2019.

Os limites da razão e a aproximação primeira do sujeito e do objeto

Pequeno ensaio produzido pela aluna de doutorado Amanda Maciel Carneiro.

Emanuel Kant é conhecido como o centro da filosofia contemporânea, e sua obra principal é a “crítica da razão pura”, sobre a qual debruçamo-nos neste estudo. Antes dele, as teorias predominantes de empirismo e racionalismo, com base em Bacon e Descartes, viam a razão como o caminho para alcançar a realidade, dada e objetiva, com efetiva separação entre sujeito e objeto. Kant aparece para discutir os limites da razão, desde aquilo que ela consegue ou não captar e o porquê de sua limitação, conquistando seu lugar no centro do grande X da filosofia (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990). Questiona Kant, também, a ruptura entre sujeito e objeto, os quais tenta aproximar, instaurando uma tradição com o criticismo – “uma investigação preliminar a qualquer outra sobre a possibilidade da razão” e uma “crítica radical da metafísica” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990, p. 376).

A base do pensamento de Kant se constrói em cima do que ele chama de juízos analíticos e sintéticos, a priori ou a posteriori. Enquanto os analíticos são tautológicos, contendo em si o seu conceito e nada acrescentando de novo, os sintéticos unem predicados que não participavam do mesmo conceito; enquanto os juízos a priori independem da experiência humana, os juízos a posteriori são empíricos e dela derivam (KANT, 2015). Com esses conceitos, Kant exclui do conhecimento científico os sintéticos a posteriori, por serem contingentes e particulares (advindos da experiência particular), e os analíticos, por serem tautológicos (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990). A ciência, em Kant, é feita de juízos sintéticos e grande parte dos seus estudos se debruça para a compreensão da possibilidade de juízos sintéticos a priori.

No que diz respeito à metafísica, esta, para Kant, ao discutir questões essenciais sobre Deus, alma, usando princípios gerais para alcançar entes sem conteúdo sensível, é inviável. Isso se dá frente à percepção de Kant de que a realidade, para ser conhecida, depende de um conteúdo sensível, sem o qual é “forma vazia” (KANT, 2015). Nesse sentido, somente alcança o conhecimento aquilo que pode ser registrado na experiência; sobre as outras coisas, não há nada que possa ser dito de forma taxativa pela razão, o que não significa que elas não existem (KANT, 2015).

Propõe Kant, ainda, que com a crítica da razão pura se altere o procedimento adotado pela ciência para o conhecer, tendo os objetos regulados pelo modo de representação, e não pelas coisas como elas são, e o reconhecimento do objeto segundo dois significados: no mundo fenomênico e no noumênico (KANT, 2015).

Parte fundamental do pensamento kantiano, assim, é a apropriação da realidade dos objetos frente à experiência do sujeito. Reconhece a existência do mundo das coisas como parecem: o mundo dos fenômenos, dependente do sujeito; e o mundo das coisas como são, noumênico, que não se relaciona com os olhares particulares. O conhecimento, em Kant, deriva da experiência, em conjunto com a sensibilidade e o entendimento (KANT, 2015).

Fonte: Disney (2017)
Ler Kant dá sentido a muitos dos conceitos que permeiam a vida moderna e que, talvez até agora, desconhecíamos a origem. Ao ler sua obra e evidenciar seu ponto de vista de que a causalidade está na mente, no sujeito, lembramo-nos de fatos cotidianos sobre as diversas interpretações dadas por sujeitos acerca dos mesmos assuntos e eventos, de como elaboram e como enxergam esses fenômenos. Ao ler sobre a tendência à imposição humana de ordem às coisas, remetemo-nos às afirmações de Freud da inclinação humana de lembrar e relatar sonhos a partir de uma perspectiva de causalidade e coerência (nunca dizemos que estávamos lá e aqui; estávamos lá, depois, aqui) (FREUD, 2001). Ao ler sobre a captação e apropriação do mundo natural pelos sentidos, vem-nos à mente Giannetti da Fonseca, com seus conhecidos e desconhecidos, e a impossibilidade de viver a experiência como o outro vive e de mover-se de si (FONSECA, 1997). Ao ler sobre experiência, sensibilidade e entendimento, volta-nos à obra (em sua versão Disney, mais romântica e suave do que o clássico original) de “A Bela e a Fera” – a beleza está nos olhos de quem vê (RUDNICK, 2017).

Mais do que isso, talvez, ler Kant é o início do esclarecimento do ponto de inflexão entre a anterior separação sujeito-objeto e os movimentos intersubjetivos e aproximatórios, e das discussões acerca dos alcances da ciência e do conhecimento, bem como da (in)capacidade humana de se distanciar de si próprio a ponto de enxergar o mundo “como ele é”. Aparece o pano de fundo no qual se desnudarão, aos poucos, as variadas lentes da ciência.


Referências:

DISNEY. [Imagem do filme a bela e a fera] In: VIANNA, Katiúscia. A bela e a fera supera marca de US$ 1 bilhão. Adorocinema, 13/04/2017. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-130173/>. Acesso em: 27/09/2019.
FONSECA, E. G. da. Auto-engano. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Edição comemorativa de 100 anos. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
KANT, I. Crítica da razão pura. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. 
PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. O criticismo kantiano In: PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990. 
RUDNICK, E. A bela e a fera.  Disney Consumer Products. São Paulo: Universo dos Livros, 2017.

A crise da certeza, a visão ampliada e a montanha-russa

Pequeno ensaio produzido pela aluna de doutorado Amanda Maciel Carneiro.

O final do século XX foi marcado, no campo científico, pelo que se conheceu como “a guerra das ciências”, um debate entre cientistas investigando a própria ciência como fenômeno social, levantado questões sobre a natureza, a validade do conhecimento, a relação entre conhecimento e realidade e o papel da ciência, dentre outras coisas (SOUZA SANTOS, 2004). A guerra das ciências é o momento que ilustra tanto o cenário de crítica quanto a resistência dos criticados, relacionando a estes os que não estão de todo abertos a repensarem a ciência e, de alguma forma, se sentem afrontados com tais questionamentos. Relacionados a estes, resistências surgem em vários aspectos, como a preservação de um campo com prestígio, a defesa de interesses, motivações políticas e violações de ética acadêmica, dentre outros, quando o que devia ser levantado eram benefícios, malefícios, impactos, limitações, alcances e papéis da ciência e dos cientistas (SOUZA SANTOS, 2004).

Quando vista sob ótica da crítica reflexiva, são interessantes os questionamentos de Boaventura de Souza Santos, em obra de trinta anos atrás, ao reconhecer que as perguntas simples deveriam voltar a serem feitas (assim como o fez Rousseau duzentos anos antes). Papel, utilidade, contribuição positiva e/ou negativa, relação entre ciência e virtude, entre rigor e riqueza, todas elas são questões antigas e novas, sempre atuais, e que ganham ainda mais força quando consideramos ambientes dinâmicos, complexos, instáveis, sempre em mutação, para os quais entende caber a relevância de vários modos de conhecimento (SOUZA SANTOS, 1988).

Todo esse cenário expõe um repensar da ciência tradicionalmente considerada moderna, repensar esse que busca ampliar a ciência e o conhecimento sobre a ciência numa perspectiva de contexto, de análise de condições, interações e impactos. Nesse sentido, Souza Santos defende um novo paradigma emergente, especulativo, sob o qual se assentam quatro afirmações relacionadas à globalidade e totalidade, conhecimento e auto-conhecimento, criação de novo senso comum, com especial atenção para a que enfatiza que “todo o conhecimento científico-natural é científico-social” (SOUZA SANTOS, 1988) – com a qual se faz conexão com a posição defendida por Latour (1994) acerca da existência dos “híbridos”, os quase-objetos, marginalizados e em constante proliferação – tudo aquilo que é tudo ao mesmo tempo. Aqui se vislumbra o reconhecimento da inexistência e impossibilidade do isolamento entre natureza e cultura.

Outro ponto levantado nas reflexões que marcam esse momento de crise, de desafio e de crítica, diz respeito ao fato de que a ciência moderna, de acordo com Souza Santos, se pauta no fundamento de que a descoberta da natureza isola as condições iniciais relevantes, e supõe que o resultado sempre será o mesmo independente do lugar e do tempo, dadas as mesmas condições; considera, assim, objetos, sujeitos e fenômenos como estáticos, previsíveis e controláveis (SOUZA SANTOS, 1988).

Fonte: Folha de São Paulo (2018)
Pode, nesse momento, ser feito um novo paralelo com a famosa obra de Latour, “jamais fomos modernos”, quando Souza Santos discorre sobre o que para Aristóteles seria a causa formal, que prioriza o como as coisas funcionam, ao invés da finalidade e da intenção (SOUZA SANTOS, 1988); neste sentido, é permitido intervir no real, sem a respectiva responsabilidade das transformações trazidas pelo “conhecer”. Na obra de Latour, essa característica é latente na ciência “que se diz moderna, e não o é” como um todo, que, além de diferenciar e separar cultura, natureza e discurso, criando o que ele chama de “híbridos”, consegue aparentemente atuar legitimamente de forma estanque, em compartimentos separados, criando várias das disfunções e mazelas que existem no mundo atual. Daí um de seus principais argumentos da impossibilidade da modernidade pela impossibilidade de separação e purificação dos sujeitos e dos objetos (LATOUR, 1994) – a impossibilidade de controle, de separação e classificações rígidas, de certezas absolutas, de uniformidade de espaço e de tempo e uma linha contínua e sem sobressaltos.

O que está em questão, aqui, sobrepondo-se à rótulos, categorizações e épocas, é a maneira como a própria ciência se faz e se apresenta; o que defende, como se manifesta, como se protege e se blinda, os espaços para repensá-la e as reflexões e críticas que vão surgindo, pouco a pouco, com o despertar para as reflexões ontológicas e epistemológicas.

A crise, aqui, não é a da ciência como ato de conhecer a natureza; isso se crê que faz parte dos anseios dos homens desde que assumem a característica de sapiens sapiens. A crise não é o fim de tudo; é parte do caminho – é um dos loops de uma montanha-russa sem fim. Nesse momento, ela se reveste de crítica ontológica, epistemológica, metodológica, paradigmática; se dá no seio da própria atividade científica, pelos cientistas problematizando a sua prática, aprofundando seu relacionamento com ela, buscando respostas às suas incertezas. Não só dos cosmos, mas dos porquês, das consequências, do compromisso com as externalidades, da aproximação com a realidade, das limitações da ciência – e de como, por essas limitações, ela é mais real do que o é quando se afirma, lá de longe, verdadeira. Do reconhecimento de que o acesso ao mundo se realiza por olhares, representações, misturas, complexidades, e de que a ciência é o teatro que fazemos de todas essas costuras. Sim, as coisas existem, mesmo quando não são observadas; mas o contato, que passa pelo olhar, faz o viés.

Nas palavras de Souza Santos, que não são um resumo, pois são um começo, a crise da qual falamos irrompe na emergência de um paradigma que lida, sobretudo, com a revisitação dos limites, com a fragilidade dos pilares da ciência como a conhecemos, e com a superação de distinções “natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa” (SOUZA SANTOS, 1988, p. 61). O reconhecimento dos híbridos, do complexo e entremeado (LATOUR, 1994).

É nesse teatro da vida, olhado com a seriedade que a ciência exige, e com a humildade da compreensão de que todos somos partes de tudo, de que os limites belamente se confundem, que acessamos, refletimos, experienciamos e representamos o melhor que podemos da realidade.  

Os ganhos dessa visão temática, defendida por Souza Santos (1988), coletiva, defendida por Latour (1994), e ampliada por ambos, são inimagináveis e transformadores. A desconstrução da certeza equivale ao não se segurar demasiadamente no carrinho da montanha-russa, e deixar-se fluir com o movimento, divertir-se no caminho, entrar em contato. Parafraseando Souza Santos (1988), aproveitar a experiência exercendo a incerteza e insegurança ao invés de opor resistência, avançando e acessando o conhecimento, dentro do possível, de forma mais profunda.

Referências:

FOLHA DE SÃO PAULO. [Imagem de montanha russa.] In: FOLHA DE SÃO PAULO. Falando russo: como se chama 'montanha-russa' no país da Copa? 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/amp/esporte/2018/07/falando-russo-como-se-chama-montanha-russa-no-pais-da-copa.shtml>. Acesso em: 27/09/2019.
LATOUR, B. Jamais formos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
SOUSA SANTOS, B. Introdução. In: SOUSA SANTOS, B. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004. p. 17-27. 
SOUSA SANTOS, B. Um discurso sobre as ciências. Coimbra: Edições Afrontamento, 1988.

Vestígios da ciência moderna

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de mestrado Daniel de Souza Silva Júnior.

Cipião contou que, certa vez, Platão ou um dos filósofos da antiguidade grega foi levado por uma tempestade a uma praia desconhecida. Caminhando naquela deserta costa com alguns marinheiros, Platão viu figuras geométricas desenhadas na areia, ao que logo gritou “que fossem de bom ânimo, pois ele via vestígios de homens” (MAIA JUNIOR, 2016, p. 136). As inscrições na areia eram o sinal da ciência daquele homem antigo. Ao descobrir a razão, o homem grego intuiu formas e ideias do mundo real, estruturando um universo imaginário. 

E quanto ao homem moderno? Que formas e ideias a racionalidade pós-renascentista o levou a intuir? Dito de outro modo, o que desenharia na areia o homem moderno, para que alguém exclame: “vê, isto é ciência, vestígios de homem!” O espanto cultivado pelos gregos na contemplação da realidade foi lentamente equipado com cálculos matemáticos, em tempos medievais, conduzidos por Bhaskara, Averroes e Johannes Widmann, mas que se tornaram rudimentares diante das formulações modernas de Gauss, Bernoulli, Poincaré e outros. 

Aquelas formas na areia eram o sinal de vida da mente racional (logos) no mundo antigo, na qual a filosofia grega se debruçou. Um mundo construído sob uma plataforma mítica poética nas narrativas de Homero e Hesíodo, mas que teve grande progresso quando Tales de Mileto irrompeu o mistério e disse: “tudo é água”. Não que o homem grego tivesse os meios para se afastar por completo da influência dos deuses, mesmo porque, até Platão frequentemente recorria às mitologias, lembra Oliveira (2011). Mas o antigo grego trilhou o caminho da razão para saber os porquês do cosmos que o cercava.

Como resumiu Arent (2005, p. 279), “com o advento da modernidade, a matemática não somente amplia o seu conteúdo, mas o leva ao infinito para tornar-se aplicável”. Nos tempos de René Descartes, todo o corpo científico se concentrava na lógica, na álgebra e na análise dos geômetras. Assim ele disse: 

quanto à lógica, os seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a outrem as coisas que já se sabe. (...) Depois, com respeito à análise dos antigos e à álgebra dos modernos, além de se estenderem a matérias muito abstratas, e de não parecerem de nenhum uso, a primeira permanece tão adstrita à consideração das figuras que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação. Na segunda, há certas regras e certas cifras que fizeram dela uma arte confusa e obscura, que embaraça o espírito, em lugar de uma ciência que o cultiva. (DESCARTES, 1979, p. 37-38) 

Diante de tais fragilidades dessas ciências, Descartes (1979) resolveu construir um método composto de quatro princípios. São eles: 1) jamais tomar algo como verdadeiro se não reconhecesse como tal; 2) dividir cada uma das dificuldades em várias partes para melhor resolvê-las; 3) ordenar os pensamentos, a começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer; e, por fim, 4) estabelecer enumerações tão completas, de modo a garantir que nada fora omitido. Na era cartesiana, o homem moderno se atreveu a desnudar-se por completo para a racionalidade lógica: “nunca o meu intento foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos, e construir num terreno que é todo meu” (DESCARTES, 1979, p. 36). Em outra parte, Descartes completa: “compreendi então que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste somente no pensar” (DESCARTES, 2017, p. 40). 

Fonte: La Nación (2018).
Koyré (2011) destaca que o “salto metodológico” da ciência moderna, identificado por Alistair Crombie, nada mais foi que um neoplatonismo. “A pergunta metafísica sobre o “porquê” das coisas (...) foi progressivamente substituída pela pergunta científica sobre o “como” das coisas, respondida simplesmente colocando fatos em correlação” (CROMBRIE, 1953, apud KOYRÉ, 2011, p. 66). Para Crombie, esta foi uma mudança de grau, mas para Koyré, foi uma mudança de natureza.

A sofisticação calculista da mentalidade moderna se estabelece sob uma amálgama de técnicas, que acabam reduzindo os fenômenos a uma condição de validade ou invalidade. Não por acaso, nas notas de rodapé 2 e 3 de Bacon (1979, p. 5-6), o tradutor destaca que o filósofo utilizava os vocáculos “ratio” ou “via” no lugar da transcrição latina “methodus”, possivelmente para afastar de vez o silogismo dedutivo medieval. Bacon (1979) estava sinalizando que seu instrumento supremo era a razão, e assim como para os serviços braçais as ferramentas são necessárias, na intelectualidade os métodos são indispensáveis. Se Crombie estava equivocado quanto à supremacia da abordagem quantitativa frente à qualitativa, ou mesmo enganado quanto à origem da ciência moderna, como bem destacou Koyré (2011), o historiador australiano acertou no que tange a metodologia moderna, pois, a matematização das abstrações é o maior produto da ciência moderna.

No fim, se o homem moderno estivesse naquela ilha deserta da qual Cipião falou, talvez ele inundasse a vasta costa praiana de algoritmos matemáticos com fórmulas, ábacos e tabelas dinâmicas. Estabeleceria vetores, mediria grandezas e representaria conceitos e postulados com operações matemáticas precisas. Tanto Descartes quanto Francis Bacon tentaram traspassar esta matematização, resumindo tudo a uma questão de método para conhecer a realidade. Todavia, nas areias da praia, o homem moderno segue desenhando fórmulas, mas sem encontrar a realidade. Como se diria, “é homem porque os animais não podem fazer cálculos tão complexos”. Porém, seria isso uma ciência? 

Referências: 

ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
BACON, Francis. Novum organum. In: BACON, Francis. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 1-21.
DESCARTES, René. Discurso do método. In: DESCARTES, René. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
___. Discurso do método. São Paulo: Lafonte, 2017.
KOYRÉ, Alexandre. As origens da ciência moderna: uma nova interpretação. In KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
LA NACIÓN. [Imagem de René Descartes]. Qué es y qué no es: el sueño de René Descartes que revolucionó las matemáticas. BBC News, 25/11/2018. Disponível em: <https://www.lanacion.com.ar/sociedad/que-es-y-que-no-es-el-sueno-de-rene-descartes-que-revoluciono-las-matematic-nid2196130>. Acesso em: 06/09/2019.
MAIA JUNIOR, Juvino Alves. De re publica, de Cícero. João Pessoa: Ideia, 2016.
OLIVEIRA, Richard Romeiro. As relações entre a razão e a cidade nas “leis” de Platão. Belo Horizonte: Loyola, 2011.

Fake news: uma reflexão a partir de Demo, Bacon e Dewey

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Bárbara Ferrari Gonzaga.

A eleição presidencial que vivemos no último ano fez emergir um tema que hoje, quase 1 ano após o seu fim, ainda continua em alta e sendo bastante utilizado: as fake news (notícias falsas). Durante a eleição, inúmeros foram os casos de uso das fake news – pela grande maioria dos candidatos ou por seus apoiadores –, para defender o candidato de sua preferência e/ou criticar os seus adversários. A prática virou quase uma marca da eleição de 2018 e ainda hoje se perpetua, atingindo, também, outras áreas, como saúde, meio ambiente, ciência, etc.

Demo (1985) define ciência através da exclusão, isto é, aquilo que não é ciência, colocando-a num contínuo entre senso comum e ideologia. Traz, ainda, os critérios de distinção entre eles: entre a ciência e o senso comum “seria o conhecimento acrítico, imediatista, que acredita na superficialidade das coisas” (DEMO, 1985, p. 14) e entre ciência e ideologia “será o caráter justificador” deste último, ou seja, o fato de buscarem, muitas vezes na ciência, uma justificativa para defenderem a sua visão. Além disso, ele coloca que a ideologia “inclui sempre a deturpação dos fatos em favor da posição a ser defendida, e chega mesmo à falsificação, quando atinge o nível da própria mentira” (DEMO, 1985, p. 14-15). Esta última afirmação nos remete muito à questão das fake news e de como, na maioria das vezes, elas são utilizadas em favor de uma ideologia, como pôde ser visto nas últimas eleições em ambos os lados.

Também vale apontar a relação entre fake news e senso comum: ao acreditar em uma notícia veiculada na mídia sem uma visão crítica, vemos o acontecimento apenas de maneira superficial, tomando isso como verdade absoluta, sem comprovar a fonte da informação e se existem provas que a confirmem.

Ao realizar a leitura do texto de Francis Bacon (1979, p. 65), Novo Organum, no trecho onde destaca que “os doutos, homens indolentes e crédulos, acolheram para estabelecer ou confirmar a sua filosofia certos rumores, quase mesmo sussurros ou brisas de experiência, a que, apesar de tudo, atribuíram valor de legítimo testemunho” e comparar a afirmação com a realidade atual do país, é inevitável não relacioná-la à grande disseminação das fake news, em que o indivíduo se utiliza de argumentos e notícias que comprovam a sua teoria/sua opinião, sem se preocupar com a veracidade dos fatos e de, até mesmo, quando possível, comprovar por si mesmo a realidade.

Veja (2018)
As notícias falsas na área da saúde e da ciência são um belo exemplo da realidade e atualidade da citação anterior. Algumas pessoas fizeram suas próprias “experiências”, talvez sem nenhum método científico sistemático, apenas com intuito de provar suas teorias, e outras as tomaram como verdade absoluta, fazendo com que anos de pesquisa e experimentação científica real e sistemática passassem a ser menos considerados do que essas notícias com base científica duvidosa. É um problema grave, que tem levado cada vez mais pessoas ao médico (com enfermidades piores do que tinham inicialmente) e que tem causado um grande aumento no número de doenças (antes consideradas erradicadas) devido à falta de vacinação.

Alguns exemplos das fake news mais difundidas, mapeadas pelo Ministério da Saúde (2018), são: água de coco cura o câncer, bananas contaminadas com vírus HIV, exame de mamografia causa câncer de tireoide, vacina contra sarampo causa autismo, dentre outras (CONASEMS, 2019). Podemos pensar: como alguém poderia acreditar em qualquer uma dessas notícias? Será que não percebem o quão absurdas elas são? Aqui se faz importante considerar dois pontos: o primeiro é que uma parcela da população não tem acesso à informação de qualidade e/ou não tem acesso à educação, estudo e incentivo ao pensamento crítico, o que aumenta a possibilidade de essas pessoas estarem expostas a acreditarem nessas fake news e a disseminá-las. O segundo é que, devido ao fato exposto anteriormente, as pessoas podem considerar a ciência como uma área distante da sua realidade, uma espécie de “bolha inalcançável” onde apenas os “cientistas oficiais” fazem ciência, afastando esta e a produção científica cada vez mais da população em geral.

Esses dois pontos se ligam à obra la opinión pública y sus problemas, de John Dewey (2004). Ao considerar que o conhecimento tem papel fundamental para a associação e a comunicação, o autor também diz que, no entanto, este tem circulado de maneira lenta e desigual na sociedade, apontando alguns dos motivos para tanto. Entre eles, aponta o fato de que “a ciência nasceu em meio ao estabelecimento dos especialistas que concentram o saber para si, através de instrumentos e linguagem própria” (DEWEY, 2004, apud DIAS, 2010, p. 110).

Assim, o conhecimento não seria obrigatoriamente produzido para a população em geral, que teria acesso a apenas alguns âmbitos desse saber, mas não todos, ficando parte dele, restrito aos especialistas. O autor defende, dessa maneira, a importância da socialização do conhecimento, especialmente aquele que pode influenciar a opinião e a ação pública, que não devem ser pautadas em “impressões vagas, em concepções do senso comum, em emoções fáceis” (DEWEY, 2004, apud DIAS, 2010, p. 110). Isto posto, o conhecimento deveria capacitar a sociedade para debater, questionar e ter um olhar crítico sobre os problemas sociais, e não ficar confinado e ser dominado pelos peritos da ciência, pois a democracia só se consolidará de verdade quanto os indivíduos tiverem domínio sobre a sua opinião, que depende da comunicação e da circulação do conhecimento (DIAS, 2010).

Referências:

BACON, Francis. Novum organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza; Nova Atlântida. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
CONSELHO NACIONAL DE SECRETARIAS MUNICIPAIS DE SAÚDE (CONASEMS). Fake news agravam surtos de doenças no país. 2019. Disponível em: <https://www.conasems.org.br/fake-news-agravam-surtos-de-doencas-no-pais/>. Acesso em: 17 ago. 2019.
DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
DIAS, Vanessa Tavares. Resenha de la opinión publica y sus problemas, de John Dewey. Revista Estudos Políticos, Niterói, n. 1, 2010/02, p. 105-111. Disponível em: <http://revistaestudospoliticos.com/wp-content/uploads/2010/12/1p105-111.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2019.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Fake news. 2018. Disponível em: <www.saude.gov.br/fakenews>. Acesso em: ago. 2019.
VEJA. [Imagem de marionete.] In: VEJA. Fakenews: o golpe das notícias falsas. Revista Veja, São Paulo, ano 52, n. 3, ed. 2565, jan. 2018, capa. Disponível em: https://veja.abril.com.br/edicoes-veja/2565/. Acesso em: 02/9/2019.