Visão dos diferentes: uma troca entre amigos

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Ana Gabrielle Neves de Oliveira.

Quando pensamos em epistemologia, pode acontecer de nossa cabeça tomar vários caminhos. Alguns pensam em filosofia, outros dão mais importância ao método. Muitos como eu, antes de entrar nessa disciplina, tentavam desvendar os mistérios de um conceito que parece fácil e difícil ao mesmo tempo: a ciência de como fazer ciência.

O ponto que quero trazer é um relato pessoal e fazendo um paralelo com um acontecimento real do campo de epistemologia. Por isso não poderia deixar de dizer que ao adentrar nessa disciplina com mais profundidade e ler (alguns) clássicos e sabendo que tenho muito no que mergulhar ainda, entendi uma coisa: é muito estudo.

Muito estudo da ciência, da sua teoria e prática. Confrontar visões não é algo simples, mas necessário. Necessário para nos desconstruirmos, reconstruímos, achar o que estava perdido.No final esta é uma prática essencial para quem quer se melhorar como cientista e pessoa.

Por estar envolvida em muitas leituras e no universo da epistemologia, achei um tanto curioso quando me deparei com a história de dois grandes pensadores da área: Imre Lakatos (1922-1974) e Paul Feyerabend (1924-1994). Acontece que os dois eram grandes amigos e se opunham fortemente do que é e como é composta a cientificidade.

Diferente do neopositivismo, da lógica da linguagem, da falseabilidade e das etapas de construção de argumentos teóricos e avanços da ciência, Imre e Paul não acreditavam que era bem assim que as coisas aconteciam. Certamente a maioria das pessoas da Academia já ouviram falar de Lakatos ou até o referenciaram nos métodos de seus trabalhos. Talvez, as contribuições deste autor tenham um grande incentivo de Feyerabend.

Lakatos nos trouxe a metodologia dos programas de pesquisa, o que é na minha opinião mais próximo do que conhecemos hoje nas Universidades. Cada programa teria um núcleo firme de teorias unânimes ou irrefutáveis pelos cientistas da área e uma heurística positiva rege modificações nas teorias auxiliares da primeira. Portanto, em uma visão global o avanço e a revolução da ciência se dá pela superação dos programas de pesquisa, uns aos outros. 

Fonte: https://blogs.lse.ac.uk/lsehistory/2023/01/27/imre-lakatos-and-lse/

Por outro lado, Feyerabend é conhecido pelo anarquismo epistemológico, ou seja, ele acreditava que a liberdade na produção do conhecimento é o mais importante para o progresso na ciência. E a ciência e seu progresso são entendidas de várias maneiras, não há somente uma certa.

Fonte: https://alexbretas11.medium.com/carta-a-paul-feyerabend-18f8da84eb76

Nesse sentido, Feyerabend nos diz que quanto mais teorias existirem, mais progrediremos. Ele contrapõe a lógica de uma construção linear do conhecimento e afirma que o contexto da justificação, as intersubjetividades da descoberta e do cientista os influenciam e assim deve ser. As “anomalias” nas teorias “irrefutáveis” existem e a confirmação da hipótese nunca se dá cem por cento. Por este motivo, não é certo desconsiderar as subjetividades dos indivíduos e se levar em conta formalidades excessivas. Para ele, a ciência deve ser democrática e discutida com a comunidade. 

Voltando a parte curiosa, Lakatos e Feyerabend foram dois grandes amigos que trocavam cartas e discutiam suas visões extremamente diferentes. No início de seu livro Contra o Método, Feyerabend diz:

Este ensaio é a primeira parte de um livro a propósito do anarquismo que seria escrito por Lakatos e por mim. Cabia-me atacar a posição racionalista; Lakatos, por seu turno, reformularia essa posição, para defendê-la e, de passagem, reduzir meus argumentos a nada. Juntas, as duas partes deviam retratar nossos longos debates em torno desse tema — debates que tiveram início em 1964, prosseguiram em cartas, aulas, chamadas telefônicas, artigos, até quase o último dia de vida de Imre, e se transformaram em parte de minha rotina diária. A origem do ensaio explica o seu estilo: trata-se de uma carta, longa e muito íntima, escrita para Imre e cada frase perversa que contém foi escrita antecipando frase ainda mais ferina de meu companheiro. Também é claro que o livro, como se apresenta, está lamentavelmente truncado. Falta-lhe a parte mais importante, a réplica da pessoa para quem foi elaborado. Publico-o, entretanto, como testemunho da forte e estimulante influência que Imre Lakatos exerceu sobre todos nós. (FEYERABAND, p. 8, 1977).  

Portanto, o que virou um livro era uma troca de cartas com o amigo. Quando Lakatos morreu, Feyerabend resolveu publicar suas cartas sem respostas como um livro para homenageá-lo. Conforta o íntimo saber que entre ideias tão diferentes, havia tanta amizade e carinho um com o outro em suas tratativas.

Isso nos lembra que há muita vida para além da teoria. E que da teoria também emergem amizades. Essa é uma lição atual contra as armadilhas que o ego nos impõe. A vida nem sempre é fácil, pessoas são mais racionais, outras mais da liberdade, entretanto sempre podemos tornar tudo mais leve. 

Ultrapassando todo o contexto pessoal que eu não queria, mas fiz, pretendo levar esse aprendizado para a Academia que eu entro. Ela é diferente do que estes autores conheceram, o acesso é mais fácil, as coisas são mais rápidas, conseguimos reconstruir a parte que faltava no livro de Feyerabend.

Mas uma coisa não mudou. Somos todos pessoas, que precisam do convívio, de se achar entre seus entremeios e de seguir o caminho do bom convívio. E quando se tem (ou se faz) um grande amigo, ah, isso faz toda a diferença.

Referências:

FEYERABEND, Paul K. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.  

 

A teoria da complexidade e a interdisciplinaridade na educação

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Lucas Sell Romão.

Atualmente, a educação enfrenta diferentes desafios decorrentes da rápida evolução do conhecimento e das demandas sociais. Como os processos educacionais são sistemas complexos, algumas mudanças podem levar a resultados imprevisíveis. Nesse contexto, a teoria da complexidade e a interdisciplinaridade podem ser promissoras para aprimorar o processo ensino-aprendizagem. Dessa forma, este paper busca explorar as vantagens dessas abordagens quando integradas na educação, para promover uma aprendizagem mais significativa e preparar os alunos para o mundo.

Para entender melhor o paradigma da complexidade, é necessário conhecer o conceito de paradigma. Khun (1987), observa a dificuldade na conceituação de paradigma, onde, para o autor o termo é usado em dois sentidos diferentes. De um lado, indica crenças, valores e técnicas partilhadas por membros de uma comunidade, e do outro lado, denota um elemento como modelos ou exemplos. Khun (2005, p. 43) compreende ainda o ser humano através do paradigma que está na realidade a sua volta, ou seja, dar-se o sentido do que é “certo” e “errado”.

O paradigma da complexidade faz oposição ao paradigma dominante tradicional atual, o qual parte da premissa dos fenômenos que podem ser analisados e compreendidos a partir das reduções do todo em partes. Le Moigne (2007), apresenta que ainda sofremos nas nossas instituições efeitos residuais do cientismo positivista, onde o paradigma tradicional dominante, que frequentemente chamamos cartesiano-positivista, pode, por contraste, ser apresentado sob o nome de paradigma da complicação ou paradigma do reducionismo. Para Vasconcellos (2005), o paradigma tradicional é considerado conservador e reducionista, centralizado em três âmbitos: simplicidade, estabilidade e objetividade.

Morin (2003), acredita que esse modelo cartesiano estuda a realidade a partir dos princípios da disjunção, da redução e da abstração, o que se caracteriza como o “paradigma do simplificador”. O autor destaca ainda, que os problemas mais graves da humanidade são frutos de um progresso cego do conhecimento. Esta cegueira está relacionada a fragmentação do conhecimento, oriunda do método cartesiano, que não consegue interpretar a complexidade do real e a ligação entre as partes, dificultando a produção do conhecimento.

Baeta e Melo (2020), comentam que o sistema de educação conhecido como tradicional, trata o processo de formação do conhecimento como um resumo dos elementos mais simples, separando o que se encontra articulado, gerando contradições e desordem ao pensamento. Já Silva e Santos (2023), destacam que, no contexto educacional, o conhecimento em pedaços repassado pelos professores aos alunos, influencia a visão que estes possuem da realidade. Ou seja, quando os alunos deixam de compreender a existência de vínculos entre as disciplinas também procuram compreender a realidade de forma fragmentada e desarticulada.

Fonte: https://ec317desamambaia.blogspot.com/2013/06/curriculo-oculto-discutindo-o-curriculo.html

Dessa forma, a visão fragmentada do conhecimento começa a ser questionada por ser insuficiente frente às situações de instabilidade, imprevisibilidade, incerteza, contradições, paradoxos, conflitos e desafios, levando ao reconhecimento. Segundo Morin (2003), é necessária uma visão mais complexa para incentivar a contextualização, a integração e a globalização dos saberes. É essencial que cada parte trabalhe para o todo e, que esse organismo desenvolva em conjunto os objetivos traçados, ou seja, as interações e relações irão ser compreendidas de forma intrínsecas dentro do contexto amplo desse sistema.

Para Morin (2003), o paradigma da complexidade pode resultar em um conjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que vão se acordar, se reunir. Assim, o princípio da complexidade se fundamenta na predominância da conjunção complexa. Enquanto a antiga ciência unidimensional previa um único método para todas as ciências, a nova ciência estrutura-se por meio da comunicação do conhecimento físico, biológico e cultural.

A interdicisplinaridade ao buscar a interligação dos saberes se aproxima do paradigma da complexidade, e pode ser uma estratégia importante para quebrar a barreira linear cartesiana de ensino atual. Fazenda (1995), observa que a interdisciplinaridade surge como uma relação recíproca, de mutualidade, ou seja, um regime de copropriedade, de interação para possibilitar o diálogo entre os interessados. A postura interdisciplinar é compreendida como o estudo do desenvolvimento de um processo dinâmico, integrador e, sobretudo, dialógico, intensificando as trocas entre os especialistas e a integração dos conhecimentos.

Batista e Salvi (2006), acreditam que a interdisciplinaridade surgiu para compreender a realidade através dos diferentes conteúdos de cada disciplina. Dessa maneira, é possível que diferentes áreas do conhecimento interajam para alcançar um entendimento mais global e não dividido. Para Klein (1990), a interdisciplinaridade pode resolver questões que não são abordadas de maneira satisfatória, quando o professor faz uso de apenas um método de ensino.

Para Gerhard e Rocha Filho (2012), a interdisciplinaridade pensada como um processo contínuo e inacabado de construção do conhecimento permite que os professores trabalhem assuntos reais, incentivando a discussão, a análise, o questionamento e a verificação da veracidade dos fatos por parte dos alunos. Como uma estratégia pedagógica, a interdisciplinaridade promove o diálogo entre os conteúdos estudados, que fazem parte da vivência dos alunos dentro e fora da sala de aula. Serva, Dias e Alperstedt (2010), comentam que nenhuma disciplina poderá outorgar a si própria um lugar de onde deduzir um saber absoluto e final.

Sendo assim, é essencial que educadores e formuladores de políticas considerem a adoção de abordagens inovadoras. Fazendo isso, podem ajudar a construir um sistema educacional que esteja mais alinhado com as demandas da sociedade e que prepare o aluno para um futuro de constantes mudanças e desafios. Utilizar a teoria da complexidade com a interdisciplinaridade na educação pode ser uma importante ferramenta para enfrentar os desafios da sociedade, visto que essas abordagens se complementam, permitindo que os alunos desenvolvam habilidades de pensamento crítico e resolução de problemas em um mundo cada vez mais complexo e conectado. Piaget (1970), destaca que é necessário formar mentes que possam ser críticas, que possam analisar, ao invés de aceitar tudo que lhes é oferecido.

Ao adotar essa abordagem, é possível proporcionar aos alunos uma educação mais significativa, capacitando-os a lidar com desafios reais e a compreender as complexidades do mundo atual. Além disso, essa abordagem prepara os alunos para serem cidadãos mais informados e engajados, capazes de abordar questões complexas de maneira integrada. Dessa forma, a teoria da complexidade e a interdisciplinaridade na educação são fundamentais para a formação de indivíduos adaptáveis e conscientes, contribuindo para a construção de um futuro mais preparado para lidar com as complexidades da vida contemporânea.

REFERÊNCIAS

 

BAETA, S. R.; MELO, V. O apoio matricial e suas relações com a teoria da complexidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n..6, p. 2289-2295, 2020

 

BATISTA, I. L.; SALVI, R. F. Perspectiva pós-moderna e interdisciplinaridade educativa: pensamento complexo e reconciliação integrativa. Ensaio, Belo Horizonte, v. 8, n. 2, p.147-159, 2006.

 

FAZENDA, I. C. A. Práticas interdisciplinares na escola. São Paulo: Cortez, 1995.

 

GERHARD, A. C.; ROCHA FILHO, J. B. A fragmentação dos saberes na educação científica escolar na percepção de professores de uma escola de Ensino Médio. Investigações em ensino de ciências, Porto Alegre, v. 17, n. 1, p. 125-145, 2012.

 

KHUN, T. Posfácio. In: KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.

 

KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2005.

 

KLEIN, J. T. Interdisciplinarity: history, theory, and practice. Detroit, Michigan: Wayne State University Press, 1990.

 

LE MOIGNE, J-L. Inteligência da Complexidade. Sísifo. Revista de Ciências da Educação. N 4 out/dez, 2007, p. 117-128.

 

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.

 

PIAGET, J.; GARCÍA, R. Psicologia e pedagogia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1970.

 

SERVA, M.; DIAS, T.; ALPERSTEDT, G. D. Paradigma da complexidade e teoria das organizações: uma reflexão epistemológica. In: Revista de Administração de Empresas. Rio de Janeiro. v. 50, n. 3, 2010. p. 276-287.

 

SILVA, F.; SANTOS, M. ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL E CURRÍCULO INTERDISCIPLINAR: análise de uma escola pública na Amazônia. Revista Espaço do Currículo, v. 16, n. 1, p. 117, 2023. Disponível em: https://scanr.enseignementsup recherche.gouv.fr/publication/doi10.22478%25252fufpb.2177-8841.2018v9n2.43537 Acesso em: 8 fev. 2023.

 

VASCONCELLOS, M. J. E. De. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. Campinas, SP: Papirus, 2005.


Pragmatismo e a participação do cidadão no SUS

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Paulo Sérgio Cardoso da Silva.

A participação social no Sistema Único de Saúde está amparada, sobretudo, pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei nº 8.142 de 1990. Esta última deixa clara a existência de instâncias colegiadas, as conferências e os conselhos de saúde – tendo estes, caráter de representação e deliberação das demandas de saúde da população (BRASIL, 1990). O pragmatismo, por sua vez, enfatiza a importância da experiência, utilidade e adaptação como critérios centrais na busca do conhecimento e na tomada de decisões práticas – neste caso, decisões que estariam relacionadas à saúde da população. O objetivo deste paper é relacionar estas duas temáticas, apresentando o viés pragmático dos mecanismos participativos da saúde (CORREA, 2014; TIMMERMANS; TAVORY, 2012).

Fonte: http://arch.ensp.fiocruz.br/index.php/8-conferencia-nacional-de-saude-sessao-plenaria-brasilia-df

Conforme Dewey (1938) coloca, os conceitos abstratos só tem significado na medida em que podem ser utilizados de forma prática. Assim temos na democracia e participação social uma relevância, ora por apresentarem, quando eficazes, uma utilidade prática à sociedade, por meio dos seus mecanismos. Ainda neste sentido, vale destacar que, se a participação social não se dá de forma efetiva como foi pensada, cabe entendermos o que está por detrás das motivações destes atores em não participar, tal qual Correa (2014) coloca – e não de entender os fenômenos “crus”, que consideraria os elementos sociais como um problema por si só.

A partir do pragmatismo, entendemos que a participação social, precisa ser vivida e colocada em prática na vida e por meio da vida – e isso deve ser feito, por exemplo, através dos conselhos e conferências de saúde. Assim, o que se espera ao final deste processo é que os valores democráticos sejam transformados em ações sociais concretas. Na prática, por exemplo, poderíamos ter direcionamentos do que um gestor em saúde precisaria considerar nas suas ações executivas em uma Secretaria de Saúde – a partir dos interesses da sociedade representados pelas instâncias mencionadas.

A busca pelo conhecimento prático, é algo que um Conselho de Saúde traz em sua essência, por exemplo. Quando os representantes deste usufruem do seu espaço de fala para apresentar demandas do local em que vivem, temos a materialização das experiências em ações, a partir do conhecimento de cada ator. Este conhecimento, por sua vez, é validado e defrontado com demais representantes, em uma forma de construção que lembra uma lógica abdutiva, conforme expressado por Timmermans e Tavory (2012).

Fonte: https://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/uma-breve-historia-da-saude-publica-no-brasil-das-campanhas-sanitarias-ao-sistema-unico-de-saude/

Do ponto de vista processual, as reuniões nos conselhos de saúde ocorrem com periodicidade média mensal, e visam validar decisões da gestão, levar demandas locais, ouvir opiniões dos representantes, pensar em propostas de melhorias, entre outros objetivos.

Do ponto de vista prático, nem sempre os encaminhamentos dos conselhos são os mais pragmáticos, ficando muitas vezes em discussões pouco produtivas, com pouco impacto efetivo na vida real da sociedade. Caberia entender, de maneira aprofundada, o que faz com que, em alguns casos, estes mecanismos não estejam funcionando. Seria o modus operandi dos conselhos? A condução dos líderes desta instância? Seria o processo comunicativo de e para com estes atores? Seriam elementos políticos e jogos de interesse? Seria um pouco de tudo isso?

Em minha tese buscarei compreender um pouco dos elementos ligados ao processo de comunicação dos conselhos nos meios digitais – apenas uma fração de tantas variáveis, mas que pode nos fazer entender o por que de alguns conselhos estarem mais perto, ou mais longe do pragmatismo – que de certa forma é esperado pela sociedade que deseja ações concretas (e assertivas) sobre áreas que interferem diretamente na sua qualidade de vida.

Verdade é que, embora preciosa seja a construção à muitas mãos na lógica bottom up que estas instâncias se propõem, sua finalidade está no que efetivamente repercutirá sobre a vida do cidadão, da sociedade. Assim, espera-se que o pragmatismo não se distancie por completo dos conselhos e conferências (este primeiro mais aprofundado neste paper), a fim de termos nestas construções coletivas um mais efetivo Sistema Único de Saúde – extraindo o que de melhor o pragmatismo pode trazer a este meandro.

Referências:

BRASIL. Lei n° 8.142 de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Brasília: DF, 1990. 

CORREA, D. Do Problema do social ao social como problema: elementos para uma leitura da sociologia pragmática francesa. Revista de Ciências Sociais, n. 40, Abril de 2014, p.35- 62.

DEWEY, J. “Investigação Social” In: DEWEY, J. Lógica. Teoria de la investigación. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1938. 

TIMMERMANS, S.; TAVORY, I. Theory Construction in Qualitative Research: From Grounded Theory to Abductive Analysis. Sociological Theory. v.30, n.3, p.167-186, 2012. 

A Complexidade da Governança na Inteligência Artificial (IA) a partir das Abordagens de Morin (2003) e Kuhn (1987).

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Nicolas Rufino dos Santos.

Este paper tem como objetivo apresentar o panorama da complexidade da governança no campo da Inteligência Artificial (IA) a partir dos argumentos propostos por Morin, em sua obra “Introdução ao Pensamento Complexo” (2003) e de Kuhn, em “A estrutura das revoluções científicas” (1987). Serão explicadas, resumidamente, as teses centrais de cada um dos autores e, em seguida, o fenômeno da governança no campo da IA e suas intersecções com as teorias desses autores.

O fenômeno da fragmentação do conhecimento, cujas raízes remontam ao cartesianismo, culminou em observações parciais acerca do próprio conhecimento. Nesse sentido, teorias do saber que seriam capazes de resolverem problemas consideráveis da humanidade não podem se limitar a tratá-las separadamente, tampouco a partir do mero acúmulo de saberes, mas através da transformação de seus princípios e da observação multidimensional da realidade (MORIN, 2003).

Morin (2003) argumenta que a sociedade moderna é composta por uma série de problemas resultantes de pensamentos simples, parciais e fragmentados, de modo que disciplinas acadêmicas demonstram-se incapazes de criarem conexões e correlações entre os elementos. Nesse contexto, o referido autor alerta para a emergência da ciência em priorizar uma abordagem que interligue conceitos e elementos dos sistemas, uma vez que a realidade não constitui-se de modo simples, mas de forma multidimensional e complexa.

Em uma perspectiva similar à de Morin (2003), Khun (1987) enfatiza que o desenvolvimento científico se dá através da superação de paradigmas, que são compreendidas como uma “constelação de crenças, valores, técnicas partilhadas pelos membros de uma comunidade científica” (KHUN, 1987, p. 218). Ao entrarem em crise, estes paradigmas são transformados por outros em uma série histórica marcada por determinados ciclos. O progresso científico, portanto, não é produto de um progresso linear, mas resultante de diferentes fases que envolvem irregularidades e conflitos.

A complexidade do tema da governança no campo da Inteligência Artificial (IA) é nítida e materializa-se por determinados argumentos. Os impactos causados pelo aumento da utilização da IA não se limitam às áreas de inovação tecnológica ou de engenharia, mas atingem os campos político, administrativo e sociológico. Nesse sentido, a governança em IA consiste em uma questão importante para o futuro da Administração Pública (DENHARDT, 2001; UZUN, et al, 2022). Este fenômeno surge como um debate multidisciplinar e abrange políticas públicas, engenharia da computação, filosofia, direito, sociologia e relações internacionais (BOSTROM, et al, 2019; UZUN, et al., 2022). Na verdade, não apenas os problemas da IA são multidisciplinares, como também seus benefícios, que são enormes e atingem áreas como medicina e saúde, transportes, educação, ciência, sustentabilidade e desenvolvimento econômico (DAFOE, 2018).

Fonte: https://www.admethics.com/the-need-for-governance-in-the-field-of-artificial-intelligence-ai/

Há um consenso difundido de que os sistemas de IA precisam ser bem governados para que consigam trabalhar em alinhamento com os valores humanos e sociais a fim de usufruir dos benefícios e controlar seus os riscos. No entanto, a literatura sobre governança da IA ainda é desorganizada. Além disso, este fenômeno no campo da IA está inserido em um panorama mais amplo que envolve governança das empresas, de dados e de Tecnologia da Informação (TI), tornando o estudo ainda mais complexo (MÄNTYMÄKI, et al. 2022). 

Independentemente dos conceitos estudados, é certo que o tema da governança em IA tem condicionado os pesquisadores a discussões complexas, de modo que seja impossível desenvolver uma única conceituação universalmente aceita. E independentemente da multiplicidade conceitual, ressalta-se a centralidade do tema nas agendas governamentais, pois ela dialoga diretamente com a qualidade de vida das futuras gerações (UZUN, et al., 2022), de tal modo que tanto governos quanto sociedade civil e setores privados são responsáveis por debaterem sobre a utilização de mecanismos de IA para garantir transparência e accountability para esses sitemas para mitigar os riscos e possíveis desvantagens do uso desses sistemas e, simultaneamente, usufruir do potencial dessa tecnologia (GASSER & ALMEIDA, 2017).

Cabe ressaltar que não somente a governança, como também a ética é objeto de uma complexidade notável de abordagens, bem como constitui-se como um campo de estudos multidisciplinar, complexo e alvo de diferentes interpretações. Por exemplo, Bartneck (2021) define que a ética refere-se aos princípios, julgamentos gerais e normas e, atualmente, é objeto de diferentes escolas de pensamento. Já Resnik (2015) sustenta que a ética é o conjunto de normas que diferenciam comportamentos aceitáveis dos inaceitáveis. Significa dizer que, para que uma teoria ética seja aderente com os problemas atuais, ela precisa constituir-se de forma dinâmica e multidisciplinar. Só assim ela será capaz de abordar determinados problemas específicos no campo da Administração com eficiência.

Ao buscar interligar o fenômeno da governança em IA com a teoria de Morin (2003), podemos reconhecer determinados elementos: (i) a complexidade do fenômeno da governança em IA; (ii) as relações deste tema com outros campos científicos; (iii) as variadas interligações com stakeholders, que apresentam interesses diversos; e (iv) a demanda por um estudo científico integrado que envolva diferentes disciplinas e perspectivas.

Finalmente, uma conexão entre a teoria da revolução científica de Kuhn (1987) com a complexidade da governança na IA consiste nos paradigmas da governança que, com o passar das décadas, são substituídos por novas formas de enxergar este fenômeno. Novos conceitos de governança substituem os antigos e abarcam uma maior quantidade de elementos, complexificando o conceito a partir da interligação com outros elementos. Essa complexificação da governança é o que a qualifica a trazer respostas para as problemáticas que envolvam a IA.

Referências:

BARTNECK, Christopher et al. An introduction to ethics in robotics and AI. Springer Nature, 2021.

BOSTROM, Nick; DAFOE, Allan; FLYNN, Carrick. Public policy and superintelligent AI: a vector field approach. Governance of AI Program, Future of Humanity Institute, University of Oxford. Oxford, UK, 2018.

DAFOE, Allan. AI governance: a research agenda. Governance of AI Program, Future of Humanity Institute, University of Oxford: Oxford, UK, v. 1442, p. 1443, 2018. 

DENHARDT, Robert B. The big questions of public administration education. Public Administration Review, v. 61, n. 5, p. 526-534, 2001.

GASSER, Urs; ALMEIDA, Virgilio AF. A layered model for AI governance. IEEE Internet Computing, v. 21, n. 6, p. 58-62, 2017. 

KHUN, T. Posfácio. In: KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 217-257.

MÄNTYMÄKI, Matti et al. Defining organizational AI governance. AI and Ethics, p. 1-7, 2022.

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 2003 (Trechos escolhidos – p. 57 a 76 e p. 85-93).

RESNIK, David B. et al. What is ethics in research & why is it important. December, 2015.

UZUN, Mehmet Metin; YILDIZ, Mete; ÖNDER, Murat. Big Questions of AI in Public Administration and Policy. Siyasal: Journal of Political Sciences, v. 31, n. 2, p. 423-442. 2022. 



Evidências empíricas na análise da tecnologia da informação: Uma perspectiva neopositivista do marketing

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Hany Ellen Guedes.

A tecnologia da informação (TI) tornou-se uma aceleradora de transformações significativas em organizações dos mais diversos setores e tamanhos. Desde automação de processos operacionais até a análise de dados em tempo real, a tecnologia da informação transpõe toda a estrutura do organograma, desempenhando certo protagonismo nas operações e estratégias de marketing. Parsons (1967), enfatiza que as organizações desempenham funções distintas na sociedade, sendo essencial que cumpram quatro propósitos fundamentais: adaptar-se ao ambiente, alcançar metas, integrar membros e preservar os padrões culturais. Além disso, ele ressalta a tendência das organizações contemporâneas em se tornarem mais complexas e especializadas, a fim de lidar com as crescentes e específicas exigências da sociedade.

A epistemologia do neopositivismo representa uma corrente filosófica que ganhou destaque no começo do século XX, exercendo uma influência duradoura na análise de como o conhecimento precisa ser fundamentado em evidências empíricas. A abordagem defende a ideia de que o conhecimento científico deve se basear em fatos observáveis e em evidências concretas. Em outras palavras, o neopositivismo estabelece um planejamento de verificabilidade para a ciência, intensificando o conceito de demarcação científica ao distinguir claramente o que pode ser considerado como pertencente ou não ao domínio da ciência.

Para compreender como fenômeno e observar adequadamente o impacto da sua influência, adotarei as obras dos autores Dortier (2000), Wittgenstein (1961), Popper (1979) e Parsons (1967) de modo empiricamente fundamentado e particularmente pertinente ao contexto das organizações contemporâneas isolando em partes. Em Wittgenstein (1961), percebe-se uma lógica positivista sendo levada ao seu ponto máximo. O autor utiliza o método de observação racional e objetiva dos fatos, levando-o a isolá-los, codificá-los e descrevê-los quase como fórmulas. Ele acredita que suas afirmações sobre esses fatos são verdadeiras ou falsas, específicas uma representação direta do mundo real, do que é concreto, excluindo qualquer margem de subjetividade.

Fonte: https://olhardigital.com.br/2021/08/06/seguranca/pentagono-quer-que-inteligencia-artificial-preveja-o-futuro/

A observação racional do fenômeno é o primeiro passo no processo. Ao analisar empiricamente o uso e a implementação da tecnologia nas organizações, torna-se possível identificar padrões, tendências, efeitos e impactos tangíveis. Ela envolve uma análise detalhada e sistemática das interações entre a tecnologia e as atividades de marketing de uma organização. Através da observação direta e da coleta de dados quantitativos e qualitativos, podemos identificar padrões, tendências e correlações. Por exemplo, podemos observar como a implementação de um novo sistema de gestão de consumo afeta na eficácia das campanhas de e-mail marketing ou como a introdução de inteligência artificial influencia o comportamento do consumidor. Essas observações fornecem a base empírica indispensável para uma análise crítica e embasada. De acordo com Dortier (2000), o Círculo de Viena, em sua abordagem da "concepção científica do mundo", postula que apenas a ciência fundamentada em demonstração rigorosa e observação dos fatos é capaz de contribuir para o progresso do conhecimento.

Na próxima etapa do processo consiste na verificação das observações, que trata de submeter os dados relacionados e as conclusões obtidas a uma apuração rigorosa. Aqui, podemos envolver a aplicação de métodos de pesquisa quantitativa, como análises de estatísticas e modelagem de dados para verificarmos as observações feitas. A verificação possibilita assegurar que as conclusões sejam mais confiáveis e sólidas sobre o fenômeno. Segundo Dortier (2000), o grupo rejeita a metafísica e defende que o conhecimento científico deriva tanto de proposições lógicas e matemáticas (desvinculadas da experiência), quanto de proposições empíricas, as quais se baseiam em fatos e devem passar por critérios de verificação para serem consideradas como verdades.

Outro processo fundamental do neopositivismo é o teste de hipóteses, sendo necessário para aprofundar a compreensão do fenômeno em questão. Os testes de hipóteses empíricas permitem uma compreensão mais profunda de causa-efeito entre a tecnologia e o desempenho das estratégias de marketing, para testar as hipóteses podemos submeter a experimentos controlados ou análises de estatística. Wittgenstein (1961), procura esclarecer as condições lógicas que o pensamento e a linguagem devem atender para representar o mundo – e o mundo é reduzido a um conjunto de fatos, cujo sentido está fora dele. Essas proposições que o autor destaca são exceções ou imagens da “realidade”. Assim, segundo o autor, “a filosofia deve tomar os pensamentos que, por assim dizer, são vagos e obscuros e torná-los claros e bem delimitados” (WITTGENSTEIN, 1961, p. 77). 

A corrente do neopositivismo também enfatiza o falsicanalismo, o que conota que as teorias e hipóteses devem ser formuladas de maneira a serem passíveis de refutação por evidências empíricas. Sendo necessário, estarmos dispostos a ajustar nossas interpretações e teorias ao surgimento de novas evidências relacionadas ao fenômeno, como por exemplo uma tecnologia que inicialmente parecia promissora e que após a implementação não gerou o resultado esperado em termos de engajamento com o consumidor, que nesse caso dentro de uma organização que depende de consumo leva a área de marketing reavaliar e modificar a estratégia. Popper (1979) é influenciado pelos neopositivistas, porém ele se distingue deles ao mesmo tempo em que os critica. O autor enfatiza a importância das "provas objetivas" no contexto científico, mas sustenta a ideia de que devemos procurar refutar ou validar as hipóteses de forma provisória, jamais considerando as evidências como conclusivas.

Nesse contexto, mesmo que as obras aqui referenciadas em algum dos casos tenham mais de 50 anos da sua publicação, se mantém relevante aos fenômenos contemporâneos organizacionais e pode ser utilizada metodologicamente com solidez, através da observação crítica, da verificação, dos testes de hipóteses e do falsicanalismo para embasar estratégias de marketing em dados empíricos. Parsons (1967), argumenta que as organizações buscam um equilíbrio entre suas funções e a necessidade de adaptação ao ambiente em constante mudança. Ele vê o desenvolvimento das organizações como um processo de aprendizagem e ajuste contínuo.

Referências: 

DORTIER, J-F. Le cercle de Vienne et le nouvel sprit scientifique. In: Sciences Humaines, hors-série, septembre, 2000 (tradução livre) (2p). 

WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da USP, 1961. (trechos escolhidos). 

POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. In: Karl Popper. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 

PARSONS, T. Sugestões para um tratado sociológico da teoria das organizações In: ETZIONI, A. (org) Organizações Complexas. São Paulo, Atlas, 1967. 

Breves reflexões epistemológicas

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Larice Steffen Peters.

Ao realizar a leitura de A lógica da investigação científica de Popper (1979) inúmeras reflexões sobre a evolução da ciência e, consequentemente, da epistemologia vieram à toa – diga-se de passagem que isso ocorre em todas as leituras recomendadas da disciplina de epistemologia, mas quanto mais vamos conhecendo diferentes epistemes maior é o fio e o pano para a construção de reflexões.

Em todas as leituras, é preciso compreender que estamos falando de demarcação científica. Logo, compreender o que é a ciência e como ela se origina é buscar compreender como o ser humano age e interpreta o funcionamento do mundo em um determinado contexto (Demo, 1985), o que em outras palavras pode ser dito da seguinte forma: a ciência é produzida no tempo, em diferentes contextos e portanto sua demarcação muda (Demo, 1985).

Feita essa breve introdução, que tem sido o ponto de partida para todas asreflexões que faço sobre a ciência, gostaria de destacar sobre o quanto ao buscar a demarcação científica alguns grandes pensadores visam promover a instauratio magna – usando as palavras de Bacon (1979) -, uma grande restauração para dizer o que aceitam ou não como ciência.

Fonte: https://cienciasecognicao.org/redeneuro/tag/pesquisa-qualitativa/


Se considerarmos o que Popper defende como ciência, na qual o que é válido como ciência se ancora no método hipotético-dedutivo e na falseabilidade (1979), pergunto de que forma esse pensamento é capaz de contribuir para a compreensão de fenômenos que nascem de forma indutiva ao passo que o próprio autor caracteriza que o “princípio da indução é supérfluo e que leva necessariamente a inconsistências lógicas” (p. 5). 

Além de reflexões sobre a possibilidade de construir ciência com base no método indutivo, podemos nos perguntar qual seria o espaço para as dialéticas de Hegel e Marx: de que forma olharíamos para a tese, antítese e síntese para compreender os fenômenos sociais? Como a ontologia do devir é possível dentro dessa visão que defende uma nova racionalidade? (Foulquié, 1978; Marx, 2011).

Qual local ocupa a fenomenologia? Como podemos aplicar o epoché e ter tomadas de consciência intencionais se o que ela preconiza é uma crítica ao método indutivo e ao método dedutivo (Husserl, 2008).

Essas reflexões, me levam também a analisar as diferentes epistemes com a história dos métodos qualitativos: uma história marcada por distanciamento do sujeito para garantir maior neutralidade científica, marcada por tentativas de incorporação de visões das ciências ditas “duras”, positivismo, racionalidade, para – finalmente – compreender que sua abordagem para a compreensão de fenômenos sociais possui características únicas e que tem o poder de influenciar e ser influenciada pelos próprios fenômenos que estuda (Dezin; Lincoln 2006). 

Seguindo as reflexões relacionadas aos métodos qualitativos, frente às visões de Popper (1979), como poderemos usar métodos indutivos – como a análise temática, por exemplo (Braun; Clarke, 2006) – para compreender os fenômenos sociais e a partir daquilo que eles, particularmente, nos transmitem criar e estabelecer nossas categorias e dimensões de análises? Qual o espaço para a grounded-theory dentro dessa perspeciva (Bandeira-de-Mello; Cunha, 2006)?

Por fim, as reflexões aqui apresentadas estão longe de esgotarem as inquietações que estudar a evolução da ciência acarretam quando correlacionadas com os estudos de fenômenos sociais. Cabe, por parte do pesquisador, saber que a demarcação científica é temporal e que a construção do conhecimento é algo que está em devir e nos leva a construção de conhecimentos provisórios que jamais estão definitivamente acabados (Japiassu, 1991).

Referências:

BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. (trechos escolhidos).

BANDEIRA-DE-MELLO, R.; CUNHA, C. J. C. de A. Grounded Theory. In: Christiane Kleinubing Godoi; Rodrigo Bandeira-de-Mello; Anielson Barbosa da Silva. (Org.). Pesquisa Qualitativa em Organizações: Paradigmas, Estratégias e Métodos. Pesquisa Qualitativa em Organizações: Paradigmas, Estratégias e Métodos. 1ed.São Paulo: Editora Saraiva, 2006, v. 1, p. 241-266.

BRAUN, V. CLARKE, V. Using thematic analysis in psychology.Qualitative Research in Psychology, 3 (2). p. 77-101. 2006.Disponível em: http://www.informaworld.com/smpp/content~db=all~content=a795127197~frm=titlelin k.

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.

DEZIN, N. K. ; LINCOLN, Y. S. A disciplina e a prática da pesquisa qualitativaIn: DEZIN, Norman K. ; LINCOLN, Yvonna S. (Orgs). In: O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006, p.15-41. 

FOULQUIÉ, P. A dialética. Lisboa: Europa-América, 1978, p 42-66.

HUSSERL, E, A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados.

JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. O que é a epistemologia? In: Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 15-39. 

MARX, K. Introdução. In: MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857- 1858; esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. 

POPPER, K. A lógica da investigação científica. In: Karl Popper. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 

A fenomenologia e o esporte

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Lucas Sell Romão.


Este paper busca observar a relação entre a fenomenologia, que se concentra na análise da experiência subjetiva de como os indivíduos percebem e interpretam o mundo ao seu redor, e o esporte, uma área que envolve o exercício físico, consciência corporal, treinamento e competição. A fenomenologia pode oferecer insights valiosos sobre como a prática esportiva afeta a experiência pessoal e subjetiva dos atletas, bem como sua consciência corporal e as implicações para o desempenho esportivo.

Fenomenologia significa discurso sobre aquilo que se mostra como é. Daí a ênfase no sujeito e a preocupação em identificar os objetos da consciência. Schütz (1979), Husserl (2008), compreendem que o fenômeno é tudo aquilo que possui vivência, o aparecer e o que aparece. Husserl (2008), acredita que a máxima da fenomenologia é voltar as próprias coisas. Os fenômenos captados da consciência exteriorizam as experiências, a verdade, o como as coisas são feitas. Na fenomenologia não há pressuposições, parte-se do zero e a ênfase é centrada no sujeito.

Silva (2014), discute o esporte a partir da dimensão do vivido, buscando compreender os significados conferidos à prática esportiva e à experiência do atleta. Carvalho (2009), observa que para o senso comum, os esportes significam qualquer forma de exercício físico ou diversão, mas, para os estudiosos é muito mais do que isso, sendo um fenômeno humano que constitui um conjunto social e cultural e deve ser analisado como um sistema de normas, valores e representações que se difunde na sociedade de diversas formas. Dessa maneira, a experiência do atleta desempenha um papel fundamental no esporte, sendo importante saber como o atleta vivencia e sente seu próprio corpo durante a atividade esportiva.

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Kunz (2007), acredita que a experiência é a sensibilidade que os atletas precisam ter quanto ao ritmo, precisão, elasticidade, fluência, harmonia, enfim, em relação a um estilo próprio, que define a qualidade dos movimentos realizados. Alguns atletas descrevem uma sensação de fusão entre corpo e mente, o que implica que o corpo não é apenas um objeto que executa ações, mas uma parte integrante da experiência do atleta. Assim, a fenomenologia pode ajudar a desvendar como os atletas vivenciam o movimento, o esforço e a propriocepção durante a prática esportiva.

Para Merleau-Ponty (2011), um movimento é aprendido quando o corpo compreende, quer dizer, quando ele o incorporou ao seu mundo. Quando o corpo aprende o movimento, não é preciso mais pensar nos detalhes para realizá-lo. O gesto técnico deixa de ser desconhecido, nos misturamos a ele e fundamo-nos corporalmente. Atletas desenvolvem uma percepção aguçada de seu ambiente, bem como de seus próprios corpos e das interações com outros atletas.

Silva (2014), exemplifica que, quando um atleta recebe a bola no ataque, precisa olhar rapidamente para saber onde está posicionado, a qual distância está do gol, onde se encontra o adversário mais próximo e decidir se é possível o passe, o drible, ou mesmo o gol. Entretanto, quando adquirimos experiência, o saber adquirido pelo corpo dirige à situação requerida de maneira rápida e precisa. Não é mais necessário olhar fixamente para a bola, o posicionamento dos adversários, nem a cor dos uniformes daqueles que nos rodeiam. Depois de alguns anos, basta sentir o jogo, ver com um só olhar tudo e todos ao mesmo tempo. Com isso, a atenção e a tomada de decisão desempenham um papel crítico no desempenho esportivo, e a fenomenologia ajuda a analisar como os atletas processam informações sensoriais e respondem a elas de maneira consciente.

Polanyi e Prosch (1975), observam também que os atletas possuem outra forma de conhecimento de seu corpo que raramente é levada em conta, sendo ele, um conhecimento incorporado às capacidades afetivas, motoras, cognitivas e verbais. Esse conjunto de habilidades é desenvolvido pelo atleta ao longo dos anos de prática, tornando-o capaz de diferenciar quando está bem ou não, ainda que ele não consiga explicar o que seja esse bem. A fenomenologia permite ainda, explorar a experiência emocional do atleta. Como o atleta vivencia o medo, a ansiedade, a alegria, a satisfação e outros estados emocionais.

A compreensão da experiência subjetiva do atleta pode auxiliar no treinamento onde os treinadores podem usar abordagens fenomenológicas para ajudar os atletas a melhorar seu desempenho, promovendo a consciência e o controle emocional. Para Silva (2014), a prática esportiva é composta por uma considerável tensão e excitação, dor e prazer, anseio e emoção, sendo sem dúvida uma prática que permite ao homem sentir e ver o mundo de forma diferente. Assim, aplicar a fenomenologia no treinamento esportivo é interesse, visto que compreender a experiência subjetiva dos atletas pode ser valioso para treinadores e psicólogos esportivos, permitindo o desenvolvimento de estratégias mais eficazes para aprimorar o desempenho e o bem-estar dos atletas.

Como observado, a relação entre a fenomenologia e o esporte é complexa onde a fenomenologia pode oferecer uma perspectiva valiosa para compreender a experiência subjetiva dos atletas, destacando a importância da consciência corporal, percepção, tempo, espaço e ação no desempenho esportivo. À medida que essa abordagem continua a se entrelaçar com o esporte, novas oportunidades de pesquisa e aplicação prática surgem, beneficiando tanto atletas quanto acadêmicos interessados. Assim, a pesquisa fenomenológica no esporte pode ajudar a melhorar o treinamento, o desempenho e o bem-estar, podendo ter implicações práticas no desenvolvimento de estratégias de treinamento e no apoio psicológico a atletas de todas as idades e níveis de habilidade.


REFERÊNCIAS

 

CARVALHO, C. A. Psicologia e esporte: um olhar fenomenológico para um encontro marcado pela modernidade. Rev. abordagem gestalt., Goiânia, v. 15, n. 2, p. 149-156, dez.  2009.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672009000200011&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 16 out.  2023

 

HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados.

 

KUNZ, E. Esporte: uma abordagem com a fenomenologia. Movimento, [S. l.], v. 6, n. 12, p. I-XIII, 2007. DOI: 10.22456/1982-8918.2503. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/view/2503. Acesso em: 16 out. 2023

 

MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de. Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

 

POLANYI, M.; PROSCH, H. (1975) Meaning. Chicago: University of Chicago Press.

 

SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Sobre fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

 

SILVA, L. M. F. Esporte como experiência estética e educativa Esporte educativa: uma abordagem fenomenológica. 2014. 191 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.


Breves considerações sobre a importância e paradoxos do Marxismo

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Dhiogo Cidral de Lima.

“Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas formas; o que importa é modificá-lo.” – Karl Marx

Dentre os fenômenos e estudos modernos que envolvem a percepção do homem para com o mundo, recorrentemente temos o questionamento acerca de como o reflexo do comportamento humano de fato atua como agente modificador da realidade. Não só porque o homem se constrói dentro de valores e propriedades pessoais, mas destas auto insinuações, acaba por se relacionar com o que vai além daquilo que entende por si; e daí, ao se relacionar e edificar o complexo tecido social, acaba por de fato inferir no mundo a marca de sua existência, não só como animal, mas também, como agente de mudança.

A germinação dessa postura do homem traz diversos pensares sobre o posicionamento do homem e sua influência, sendo fundamento da filosofia social que floresceu no século XIX e que teve seu auge no século XX. Citamos aqui um expoente, Karl Marx (1818-1883) filósofo, sociólogo e jornalista alemão. Ele é considerado um dos mais influentes pensadores da sociologia, tendo atuado profundamente no desenvolvimento dessa disciplina cuja produção intelectual ainda hoje é debatida, criticada e até mesmo, aplicada, ainda que modificada. Sua relevância se mostra coerente quando se demonstra que suas teorizações serviram de base para muitos movimentos políticos e sociais ao longo da história. Com ele, juntamente com Friedrich Engels, nasceu no século XIX nasce o “marxismo”, que é uma teoria social, econômica e política baseada na ideia de que a história é determinada por forças econômicas, e que a luta de classes é o motor da mudança social.

Para longe de afastar ou minimizar a importância do pensamento marxista, busca-se refletir através dos paradoxos apresentados, sobre a construção de uma dialética entre prática e os resultados apresentados de tudo aquilo que pode ser derivado das teorizações da filosofia em questão. Até mesmo porque Karl Marx tomou suas conclusões como frutos não apenas de seus estudos teóricos, mas da observação atenta da realidade tal como se apresentava em sua época.

Tal percepção é importante pois demonstra como a relação do homem e as relações de classe são fundamentais para a construção material do pensamento teórico. Este ponto inclusive desperta para a relevância da crítica marxista, pois ao abordarem a concepção de mundo segundo a qual os filósofos haviam se movido até então, os autores constatam que os pressupostos segundo os quais esses filósofos se baseavam era no âmbito do pensamento puro, descolado de qualquer relação com a condição material de vida dos indivíduos. Marx e Engels superam a herança idealista da tradição hegeliana e começam a construção de uma concepção filosófica do mundo a partir de premissas materialistas da história. A própria teoria deixa de ser o movimento da razão pura, para ser o concreto pensado, a reprodução do movimento real pela via do pensamento. 

Imagem criada pelo autor (2023)

Adiante, se por um lado, o processo de transformação econômica reflexo da Revolução Industrial proporcionou uma multiplicação até então desconhecida de forças produtivas e uma acumulação de capital acelerada, com a produção de mercadorias em escala industrial, por outro, a miséria social passava a se alastrar por todo o continente europeu gerando a revolta social da classe que de fato produziria os bens e serviços, a que foi chamada proletariado. É inclusive tais conflitos que nutrem o pensamento fundamental da filosofia marxista, na ideia de que a história é determinada por forças econômicas, onde a sociedade é dividida em classes sociais, e que a luta entre essas classes é o motor da mudança social, com o dito proletariado em um flanco e noutro, a ‘burguesia’ como classe dominante, que controla os meios de produção. É deste pensamento base que se introduz a reflexão marxista, que passa a taxar como tal sistema de injusto, exploratório e desigual. 

É dessa análise crítica do capitalismo, que mostrou as contradições e desigualdades inerentes ao sistema econômico vigente, que desponta o desenvolvimento do movimento socialista e comunista, que como bem demonstra a história moderna, foram movimentos de ampla discussão e fomentadores de revoluções reais do pensamento que culminaram na exibição política. É esse mesmo contexto que traz a surpresa para a ideia de que, depois de séculos de pensamento e após uma firme posição prática, movimentos populares se demonstraram exitosos não somente para a deposição de certas vontades, mas também, para criação de um sistema oriundo das próprias classes menos privilegiadas.

No entanto, o marxismo é objeto de críticas e paradoxos, com algumas argumentações que afirmam que as ideias são inconsistentes e contraditórias. Ainda que não se descarte, como já dito, como uma teoria válida para construção de um pensar prático, divago que ele carrega consigo imposições que paradoxalmente retiram o poder do pensamento humano que o construiu. Isso destoa num viés excessivamente determinista em sua visão da história, sugerindo que as mudanças sociais e econômicas são inevitáveis e previsíveis. Isso pode desconsiderar a complexidade da história e da ação humana. Outro ponto é o determinismo econômico, da argumentação de que a mesma história é determinada por forças econômicas, o que leva a críticas de que sua teoria não deixa espaço para a ação individual. Isto também, aliado a outros pontos da teoria marxista, como a crítica à democracia, denotam pela via do autoritarismo, alimento recorrente de regimes ditatoriais.

É do pensamento acima que se apresentam paradoxos, como o da natureza do Estado. Marx argumenta que o Estado é um instrumento de dominação da classe dominante, e que, portanto, deve ser abolido na sociedade comunista. O comunismo, o estágio final do marxismo, é uma sociedade sem classes, sem Estado e sem propriedade privada. No entanto, ele também reconhece que o Estado é necessário para garantir a transição do capitalismo ao comunismo. Como resultado, o marxismo parece prever uma sociedade sem Estado, mas que, ao mesmo tempo, exige um Estado forte para implementá-lo. 

Outro paradoxo é o da natureza da democracia, como já foi mencionado. Marx argumenta que a democracia é uma forma de dominação da classe dominante, e que, portanto, deve ser substituída por uma forma de democracia direta, na qual os trabalhadores controlem os meios de produção. No entanto, ele também reconhece que a democracia é um importante passo na direção do comunismo. Como resultado, o marxismo parece prever uma sociedade sem classes, mas que, ao mesmo tempo, exige uma forma de democracia que, em última análise, será abolida.

Um terceiro paradoxo é o da natureza da propriedade privada. Marx argumenta que a propriedade privada é a base da exploração do trabalhador, e que, portanto, deve ser abolida na sociedade comunista. No entanto, ele também reconhece que a propriedade privada é um importante incentivo para o desenvolvimento econômico. Como resultado, o marxismo parece prever uma sociedade sem classes, mas que, ao mesmo tempo, exige uma forma de propriedade privada que, em última análise, será também abolida. 

Passando ao final deste pequeno ensaio, reforçamos a complexidade não só da teorização marxista, mas também sua aplicabilidade e reflexos notórios na construção da sociedade e das relações de poder, principalmente no mundo ocidental. Nota-se que o marxismo é uma tradição de pensamento diversificada, e diferentes correntes derivadas deste pensamento podem responder de maneira diferente a essas críticas. Utopia ou não, o debate em torno do marxismo continua a ser uma parte importante do pensamento político e social contemporâneo.

Referências: 

COSTA, N. B. DA. Contribuições do marxismo para uma teoria crítica da linguagem. DELTA: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, v. 16, n. 1, p. 27–54, 2000.

MANDELLI, B. Contribuições marxistas para teoria da história: a relação entre estrutura e história. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 9, n. 2, p. 61- 67, ago. 2017.

MARX, K. Introdução. In: MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858; esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. 

O criticismo de Kant e a certeza do Absoluto

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Dhiogo Cidral de Lima.

É do raciocínio do homem comum, e convenção da era contemporânea em que vivemos, que o que não se pode ser experimentado na prática, não pode ser concretizado como ciência. É analogamente como a máxima de São Tomé, Apóstolo de Cristo: só creio naquilo que vejo, naquilo que posso tocar e por meus sentidos afirmar ser concreto. No mundo atual, diariamente bombardeado por constantes mudanças e falsas especulações, o discurso de incredulidade nunca pareceu ser tão crível.

Divagações à parte, e fazendo um paralelo temporal, talvez o mundo da revolução iluminista tenha um “quê” disto que hoje vivenciamos, onde os discursos “obscuros” nublavam o homem na construção de uma teoria forte e bem elaborada para melhor compreensão do mundo e do conhecimento acerca do vemos, sentimos e mentalmente organizamos. Imagino que Immanuel Kant se esforçou para desconstruir isto, ou melhor, para provar que as teorizações que se imiscuíam na concepção de uma melhor compreensão do conhecimento racionalizado ou experimentado. Sua obra crítica empreende uma investigação abrangente sobre a natureza e os limites do conhecimento humano, abordando questões fundamentais da epistemologia e da metafísica.

Posso supor que Immanuel Kant não era um homem ordinário. Sem nunca ter saído de sua cidade natal, com sua mente e mentalidade viajou e concebeu uma teoria que iniciou a mutação do pensamento moderno. Vivente próximo de duas correntes do conhecimento científico e seus embates, embebido pelo “racionalismo de Descartes” (e outros) e pelo “empirismo de Hume” (e outros), construiu uma crítica (no sentido de uma análise sistemática, e não como para apontar imperfeições) compondo um entreposto na fronteira do conhecimento, sedimentando novas e provenientes extrapolações científicas. Outras teorias pululavam à época (idealismo, ceticismo, etc.) mas foi dentro do debate entre estas, racionalismo e empirismo, que o pensamento kantiano floresceu.

Imagem criada pelo autor (2023)

Enquanto pelo racionalismo o conhecimento só é alcançado por meio de um processo racional e inteligível, o empirismo entendia que o conhecimento é obtido primeiramente pelos sentidos e pela experiência. Ambas as correntes tinham fortes defensores, sendo o debate entre as teorias visto em contraposição. Então modela seu pensamento de forma a reconhecer ambas as teorias do conhecimento por meio de um novo método, no chamado criticismo. “Mas que tesouro é esse, pode-se perguntar, que contamos deixar à posteridade com essa metafísica purificada pela Crítica [...]”? (KANT, 2015, p.33).

A teoria de Kant entra então com a tentativa de reconciliar as duas anteriores, pois, segundo ele, o conhecimento resulta da junção das duas faculdades, sensibilidade e entendimento, para então constituir o sujeito do conhecimento. Sua síntese é particularmente notável, assim como sua postura crítica em relação à razão humana. 

Destas inferências, passa então a postular sobre a distinção entre o conhecimento a priori, que é independente da experiência, e a posteriori, que depende da experiência, argumentando que certos conhecimentos são independentes da experiência e são fundamentais para qualquer forma de conhecimento. Ele também distingue entre o fenômeno, que é o que aparece aos sentidos, e o “noumeno”, que é o que existe em si mesmo, mas que não podemos conhecer.

Kant afirma que a razão pura pode conhecer apenas os fenômenos, mas não os noumenos. Ele também mostra que existem certas ideias que a razão pura tenta alcançar, mas que são inacessíveis, como Deus, a alma e o mundo. Essas ideias são chamadas de antinomias, pois geram contradições lógicas. Kant propõe então uma solução para essas antinomias, que é a crítica, ou seja, a análise dos princípios e dos limites da razão pura. 

O filosofo também traz, para compor seu entendimento, a distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos. Juízos analíticos são aqueles em que a verdade é determinada por definição e relação interna de conceitos, enquanto juízos sintéticos são aqueles em que a verdade requer a verificação na experiência ou acrescenta conhecimento novo além da análise conceitual. Destas premissas, elabora um terceiro juízo, referencial de sua obra, introduzindo a noção de "juízos sintéticos a priori", que são juízos que adicionam conhecimento novo e não derivado da análise de conceitos, mas que também não dependem da experiência sensorial. Isso desafia a dicotomia tradicional entre juízos analíticos e sintéticos, pois sugere que é possível ter conhecimento a priori que não é meramente analítico. 

De tudo que estuda e percebe, Kant formula três questões que norteiam sua metodologia em três questões fundamentais para a sua filosofia: o que posso saber, o que devo fazer e o que é permitido esperar. A primeira questão se refere ao campo do conhecimento e da razão. Kant se interessou em investigar quais são as fontes, as formas e os limites do conhecimento humano. Ele analisou como a sensibilidade e o entendimento contribuem para a construção do conhecimento, e quais são as condições e os obstáculos para o conhecimento a priori e a posteriori. A segunda questão se refere ao campo da moral e da ação. Kant se preocupou em estabelecer quais são as regras, os motivos e os fins da ação moral. Ele elaborou uma ética baseada no dever, na razão e na universalidade, e propôs o imperativo categórico como o princípio supremo da moralidade. A terceira questão se refere ao campo da fé e da esperança. Kant se ocupou em examinar quais são as bases, as implicações e as justificativas das crenças religiosas e metafísicas. Ele discutiu temas como a existência de Deus, a imortalidade da alma e a liberdade da vontade, e defendeu que essas crenças são necessárias para a moralidade, mas não podem ser provadas pela razão pura.

Daqui discorro mais uma vez sobre o brilhantismo do autor; mesmo vivendo numa época de despertar iluminista, e ainda sendo Cristão, não se opôs a existência de Deus, emitindo sobre Ele uma visão complexa e única, refletindo suas ideias sobre a metafísica, a moralidade e a limitação do conhecimento humano. Ele argumenta que a existência de Deus não pode ser provada através da razão pura, ou seja, por meio de argumentos puramente teóricos e lógicos, mas sobretudo não negou tal existência. Ele sustenta que Deus não é um objeto de experiência sensível e, portanto, não pode ser conhecido empiricamente. Kant identifica Deus como um conceito necessário para a moralidade, uma "ideia regulativa" que orienta a nossa conduta moral, mas que não pode ser provada empiricamente. Deus, para Kant, é uma ideia necessária para assegurar a harmonia entre a moralidade e a busca da felicidade.

Surpreendente é saber que, muitos anos depois, e extraindo-se daqui apenas as questões e razões de cunho personalíssimo sobre o divino, tais teorizações puderam se demonstrar prováveis com a ciência moderna. Claro que tais teorias não ficaram imaculadas, pois a ciência moderna contraria alguns dos seus pressupostos fundamentais. Mas o entendimento kantiano demonstrava já, naqueles idos anos, que existe um mundo que existe fora do nosso entendimento, mas não do nosso conhecimento. A implicação se destaca no debate acerca do foi proposto acima. Objetos absolutos, aqui refletindo no conceito de Deus, não são dados no espaço e no tempo. Temos também que a física moderna mostrou que o universo foi criado e junto com ele o espaço e o tempo. Ora, se foi criado, respeitando-se o princípio da causalidade, algo deu causa a este mesmo universo, o gerando... demonstrando serem estas causas os efeitos de algo mais além. Logo, fica definido que o princípio criador, seja ele como e qual for, está para além do espaço e do tempo. Pela teoria, isto precisa ser respeitado, e nominado, ainda que não tenha como ser experimentado. Pergunto a mim mesmo o que suponho que Kant tenha se perguntado: será que aí que mora o Absoluto?

Referências:

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 4.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. p.17-68

Revista Mente, Cérebro e Filosofia Kant-Hegel v. 3, jan 2005, p. 1-17. 

DUKA, Marilia. Criticismo. Todo Estudo. Disponível em: https://www.todoestudo.com.br/filosofia/criticismo. Acesso em: 28 de agosto de 2023. 

#04 Filosofia Moderna – Kant e um novo olhar sobre o real. Filosocast. Pablo Duarte. 2022. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/3OdvMwuQ5z8e0kqPa8ISLg?si=7a1df4a8cf2c4ddb. Acesso em: 28 de agosto de 2023. 


Deus e Kant

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Lucas Sell Romão.

Immanuel Kant, nasceu em 1724 na Prússia Oriental em uma família de artesãos. Kant dedicou sua vida ao estudo de temas como ciência, filosofia, matemática e teologia. Durante sua vida, escreveu inúmeras obras, incluindo "Crítica da Razão Pura" (1781), "Crítica da Razão Prática" (1788) e a "Crítica do Juízo" (1790). Em sua obra “Crítica da Razão Pura”, o autor procura pontos importantes para a ciência, dentre eles os limites do conhecimento que podemos ter do mundo, investigações metafísicas, Deus, liberdade e imortalidade. Durante a leitura é possível fazer vários questionamentos e discussões, como por exemplo, o objeto de debate desse paper envolvendo ciência, conhecimento, razão e Deus.

Kant (2015), argumenta que o conhecimento humano se constitui de duas fontes principais: o conhecimento a priori e o conhecimento a posteriori. O conhecimento a priori é aquele que possuímos antes de qualquer experiência, sendo as noções puras do entendimento, aquelas que o indivíduo tem desde que nasce. Já o conhecimento a posteriori é adquirido por meio da experiência.

O conhecimento é resultado da interação entre o sujeito e o objeto de estudo, e para acontecer, a razão tem que conduzir a natureza com os seus princípios de um lado e o experimento no outro lado, para aprender com ela como um juiz faz com as testemunhas quando respondem as perguntas. Para Kant (2015, p.28), “a razão somente entende aquilo que ela mesmo produz segundo o seu projeto”, nesse sentido, somente alcança o conhecimento aquilo que pode ser registrado na experiência.

A crítica da razão pura reconhece o preceito básico do empirismo, onde todo conhecimento deriva da experiência e depende dela. Dessa forma, para conhecer um objeto, é necessário poder provar a sua possibilidade com a experiência (Revista Mente, Cérebro e Filosofia, 2005). Mas como é possível definir a experiência de Deus ou provar sua existência, já que isso seria metafisico e transcendental?

Para Kant, Deus não passa de uma necessidade da razão, onde Deus não é fenômeno e não é objeto de ciência, mas sim de crença. A crença é aquilo que é verdade para alguém e depende da autoridade transmitida ou revelada. Assim, Deus pode não ser conhecido, mas norteia as ações e condutas humanas. Hoffe (2005, p. 278-279), observa que para Kant, Deus não é “nem de longe um objeto do saber, do conhecimento objetivo, mas da esperança, certamente não de uma esperança exaltada, mas de uma esperança fundada filosoficamente”.

A criação de Adão

As ideias de Kant geram uma grande disputa entre ciência e religião (Deus), e quanto mais avançamos em direção a um mundo mais tecnológico e científico, as questões levantadas por Kant sobre a existência de Deus e os limites do conhecimento continuam a ser debatidas. De fato, conhecer ou conceituar Deus não é tarefa fácil, nem mesmo livros religiosos conseguem definir exatamente o que seria e como seria Deus, sendo algo bem subjetivo e pessoal.

Na Bíblia, por exemplo, é possível observar como Deus é algo metafisico e transcendental em vários momentos. Em Romanos 1:20, observa-se que Deus está presente desde “a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas, de forma que tais homens são indesculpáveis”. Allan Kardec considerado por muitos o inventor do espiritismo, em seu livro A Gênese (2013), inicia convidando a ciência a constituir a gênese segundo as leis da natureza e apresentando que Deus prova a sua grandeza e poder pela imutabilidade das suas leis e não pela derrogação delas. Em seguida, apresenta que:

Lançando o olhar em torno de si, sobre as obras da Natureza, notando a providência, a sabedoria, a harmonia que gerem essas obras, o observador reconhece não haver nenhuma que não ultrapasse os limites da mais poderosa inteligência humana. Ora, desde que o homem não pode produzir tais obras, é que elas são produto de uma inteligência superior à Humanidade, a menos que alguém sustente que há efeitos sem causa (Kardec, 2013, 50).

Dessa forma, para muitos, Deus pode não passar de um mito decorrente, muitas vezes do medo da morte e do desconhecido. No entanto, pode ser algo que nem a razão nem a experiência conhecem contrariando Kant quando tenta mostrar que só é possível conhecer as coisas que se apresentam aos nossos sentidos e à nossa experiência. Diante o exposto por Kant e do que apresenta Allan Kardec, fica a pergunta: poderia Deus ser algo que não conhecemos pois ainda não temos conhecimento suficiente para isso?  


REFERÊNCIAS:

 

BIBLIA, Romanos 1:20. Português. In: Bíblia sagrada. Versão online.

HÖFFE, O. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm e Valério Rohden. São Paulo: M. Fontes, 2005.

KANT, I. Crítica da razão pura. 4.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. p.17-68.

KARDEC, A. A gênese / por Allan Kardec; [tradução de Guillon Ribeiro da 5a ed. francesa]. – 53. ed. 1. imp. – Brasília: FEB, 2013. 409 p.

Revista Mente, Cérebro e Filosofia Kant- Hegel v. 3, jan 2005, p. 1-17.