O Utilitarismo e os Dilemas Morais

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Doutorado Barbara Lorenzoni Basso

Você é o maquinista de um trem desgovernado e sem freio. Você vê nos trilhos à sua frente 5 trabalhadores ferroviários e você sabe que não consegue deter o trem e que inevitavelmente irá atropelá-los. Segundos antes que isso aconteça, você percebe que há uma bifurcação nos trilhos e você pode optar por desviar o trem para essa bifurcação, onde há apenas 1 homem trabalhando. Assim, você atropela apenas 1 e não 5 trabalhadores. O que você faz? Esse dilema abre uma famosa aula de Michael Sandel em Harvard¹. A maioria dos alunos opta, evidentemente, por matar apenas 1 trabalhador ao invés de 5. 

                                                 Justiça com Michael Sandel em Harvard¹.

O dilema segue, e na segunda versão você não é mais o maquinista, você está em uma ponte que passa sobre os trilhos e está assistindo a cena. Dessa vez não há bifurcações, mas há um homem corpulento com você sobre a ponte. Nessa versão a sua opção é empurrar o homem que está com você na ponte, pois ele cairá em frente ao trem desgovernado e o fará parar, salvando os 5 trabalhadores – mas o homem morrerá. Nessa opção, as opiniões dos alunos passam a divergir sobre a melhor escolha. 


Os problemas propostos por Sandel ilustram muito bem o utilitarismo de Bentham (1979) e Mill (2007), bem como suas limitações e críticas. A justiça, na visão utilitária, visa a maximização da felicidade/prazer para o maior número de pessoas. Assim, os alunos, ao responder ao primeiro dilema, seguiram a lógica utilitária pura, de Bentham (1979): matando 1 pessoa para salvar 5, maximizariam a felicidade geral das pessoas, aumentando a utilidade. No segundo dilema, no entanto, alguns passam a achar que o utilitarismo não é a melhor resposta, ainda que a lógica permaneça a mesma: matar 1 para salvar 5.

O utilitarismo exerce uma grande influência na forma como organizamos nossa sociedade. Um claro exemplo é quando colocamos na balança custos e benefícios para tomar uma decisão. Somados todos os benefícios e subtraídos todos os custos, o melhor resultado traria a maior felicidade geral para a sociedade. Aplicamos esse pensamento em nosso dia-a-dia, na escolha do restaurante onde vamos almoçar, da roupa que vamos comprar, da escola onde nossos filhos irão estudar – qual o melhor custo-benefício? E a resposta a essa pergunta guia nossas escolhas.

Mas e quando o cálculo de custo-benefício pode ser “injusto” ou controverso? Sandel, na continuidade de sua aula, apresenta um exemplo emblemático: o governo da República Tcheca gostaria de aumentar os impostos sobre as empresas tabagistas. A Phillip Morris, em sua defesa, apresentou um cálculo de custo-benefício para o governo tcheco: se permanecer como está, as pessoas continuarão fumando e isso aumentará os gastos com a saúde pública a curto prazo (para tratar os casos de doenças respiratórias dos fumantes); se houver taxação, haverá maior arrecadação, com os novos impostos, mas também um maior gasto com saúde pública e previdência a longo prazo (já que, se parte da população deixar de fumar, viverão mais). Na conta apresentada pela empresa, o governo teria melhor custo-benefício se não aplicasse os impostos e a população continuasse fumando (e morrendo cedo). Como aplicar a lógica do custo-benefício nesse caso?

E como calcular custo-benefício quando o que está em questão não é “precificável”? Como colocar na conta utilitária, por exemplo, “vidas humanas”? Quanto vale uma vida? Como calcular o custo e o benefício das vidas?

Um outro dilema apresentado pelo professor Sandel mantém a lógica de salvar 5 sacrificando 1, mas dessa vez da seguinte forma: em um hospital há 5 pacientes precisando de transplantes de órgãos, um precisa de um rim, outro de um fígado, o terceiro precisa de um pâncreas, o quarto de um coração e o último de um pulmão. Todos eles morrerão caso o transplante não seja feito. Dessa vez você é o médico cirurgião que faz os transplantes e você não tem nenhum desses órgãos disponíveis. No entanto, no quarto ao lado, você tem um homem saudável que está sedado porque acabou de fazer um exame. Ele possui todos os órgãos que você necessita e você poderia, sem que ele acorde, retirar todos os órgãos que necessita, salvando seus 5 pacientes e matando apenas o homem que está sedado. Qual sua decisão dessa vez? Dificilmente a resposta a esse dilema se manteria puramente utilitária, salvando os 5 e matando o homem saudável.

A lógica utilitária, portanto, tem limitações, e isso pode ser visto nas reações que os dilemas causam: ao mesmo tempo que parece ser a opinião geral desviar o trem para matar 1 ao invés de 5, não parece
certo matar um homem que veio fazer um exame médico para salvar 5 que precisam de transplante de órgãos. Por que não parece certo? O utilitarismo de Bentham (1979) recebeu diversas críticas, que foram discutidas por Mill (2007). 

Uma das críticas trabalhadas por Mill foi a questão da “qualificação” dos prazeres: como dizer qual prazer traz mais ou menos felicidade? Ao que Mill responde que existem prazeres superiores e inferiores, sendo os superiores aqueles ligados ao intelecto. E Mill explica que a forma de definir qual seria o prazer preferível é através do voto universal das pessoas que já experimentaram ambos. Mas será que essa lógica se aplica sempre? Entre ir à praia e assistir a um concerto de música clássica, será que a escolha seria unânime pela segunda opção entre todas as pessoas que já experimentaram os dois prazeres? 

Mill também acrescenta a questão sobre respeitar os direitos individuais da outra pessoa. No caso do transplante de órgãos a decisão de salvar os 5 implicaria desrespeitar os direitos individuais daquele que foi apenas fazer um exame e por isso a escolha utilitária não necessariamente seria sacrificar o homem saudável, até porque sacrificá-lo poderia gerar infelicidade no longo prazo, já que as pessoas poderiam deixar de fazer exames de rotina e, no longo prazo, adoeceriam mais. Mas e se houverem casos onde o desrespeito a um direito individual puder de fato gerar maior felicidade geral a longo prazo - como na prisão de um terrorista – o que deveria ser feito? Quais seriam os direitos individuais que realmente merecem ser respeitados e quais são os que poderiam ser desrespeitados em prol da felicidade geral?

Podemos ver, portanto, que apesar de exercer grande influência na forma como lidamos com a moral e a justiça em nossa sociedade, nem tudo é passível de ser resolvido através de uma lógica utilitarista e outras teorias relacionadas à moral se fazem necessárias para resolver certos dilemas, entendendo que o indivíduo não se resume a uma questão utilitária. Outros filósofos desenvolveram suas teorias sobre justiça, como o libertarismo, ou a moral categórica de Kant. Não abordarei aqui tais teorias, mas entendo que elas apresentam outros pontos de vista sobre o que é justo e o que é moral e podem ser consideradas de forma complementar ao pensamento utilitário ao se definir a moral de uma sociedade.

Referências:
BENTHAM, J. Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação. In: Jeremy Bentham. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 3-18.
MILL, S. O que é o utilitarismo? In: MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.

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