A construção do conhecimento sob a perspectiva da teoria do ator-rede

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico de mestrado Gabriel Estruzani Queiroz de Melo.

A teoria do ator-rede desenvolveu-se primeiro nos estudos da ciência e tecnologia, principalmente por Bruno Latour, Michel Callon e John Law, pretendendo ser uma alternativa às abordagens que enfocavam apenas o papel dos humanos ou apenas o dos objetos na compreensão do desenvolvimento e das mudanças tecnológicas. Ela defende que existem entidades que são formadas e adquirem seus atributos por meio do conjunto de relações que estabelecem com outras. A entidade, por sua vez, é resultado de uma estrutura hierárquica pré-estabelecida, do acesso a informações privilegiadas, do domínio sobre o que depende dela. Assim, uma entidade surge e se mantem à medida que as relações que a compõem permanecem inalteradas (ALCADIPANI; TURERA, 2009; LAW, 2004).

Uma de suas principias contribuições é um enfoque menos antropocêntrico dado à sociologia, ao considerar os elementos não-humanos como dotados de agência, influentes no cotidiano e não subservientes aos humanos. Se os humanos estabelecem uma rede social não é porque interagem apenas entre si, mas porque interagem com elementos não-humanos também. Máquinas, estruturas e instituições também formam o social (ALCADIPANI; TURETA, 2009; CAMPOS; PALMA, 2017; QUEIRÓZ, 2011). Isto posto o objetivo deste paper é discutir o processo de construção do conhecimento a partir da perspectiva da teoria do ator-rede. 

Latour (1994) defende que a pretensa modernidade, ao introduzir novos conhecimentos, funcionou com um mecanismo de exclusão: para apresentar novas ideias era necessário apagar aquelas que estavam associadas ao pensamento antes vigente. O conhecimento precisava, dessa forma, ser constantemente “purificado”, ficando sempre mais próximo da “verdade”, que seria una, ainda que provisória. Porém, o processo de construção e acumulação do conhecimento não se dá na forma preconizada pelos positivistas, uma linha reta temporal que sempre avança, a partir do último ponto de referência. Ele depende da biografia dos pesquisadores, bem como de suas intenções e anseios particulares ao fazer ciência, das interações que estes fazem com sua rede de relações e do contexto em que estão inseridos, além dos materiais que estão disponíveis para análise e coleta de informações pertinentes. (QUEIRÓZ, 2011).

Fonte: Guimaraes (2017).
A construção e sedimentação do conhecimento depende das redes relacionais que cada indivíduo mantém, dos coletivos a que pertence e dos materiais a sua disposição. Como aponta Sertillanges (1965), o cientista não pode ser isolado, seu trabalho não faz sentido se não for compartilhado e escrutinado por seus pares. Não há ciência sem grupos de estudo, instituições de ensino, mas também não há ciência sem os materiais necessários para sua execução, sejam esses laboratórios, salas de aula, utensílios para pesquisa de campo ou qualquer outro não-humano que se faça necessário ao pesquisador. O pesquisador sustenta seu estudo nas teorias e boas práticas científicas, mas também em sua bagagem vivencial e na possibilidade de deixar sua “marca”.

Outra necessidade fundamental no processo de construção do conhecimento, é que aquele que detém a posição hierárquica superior abra mão de seus privilégios e arrisque sua posição, seja transmitindo da melhor forma possível o conhecimento e conviver com a possibilidade de que aquele que aprende o supere em termos de acúmulo de saber, ou renunciando os pressupostos de sua teoria (ou teoria que defende) quando está já não se prova mais válida.

Na perspectiva da TAR, a disseminação do conhecimento só faz sentido se aquele que o recebe, mas que também o constrói, tiver a oportunidade de conectá-lo a sua realidade, não havendo uma metodologia única para sua absorção. Cada indivíduo, tributário de sua história e das redes que a compõem, deve encontrar sua própria maneira de fazer isso, a qual pode ser modificada, ao passo que redes e história não são estáveis, diferenciando cada vez mais sua própria metodologia. Esta necessidade de conexão faz com que não baste que um conhecimento seja cientificamente comprovado; ele não pode ser redundante para a realidade daquele que aprende e deve ecoar, de alguma forma, no seu cotidiano (ARENDT, 2004). 

Nesta perspectiva, Wenger (1988) defende que toda aprendizagem deve acontecer em comunidades, onde os objetivos são definidos e a participação dos indivíduos é reconhecida, dando-lhes sentido de pertencimento a uma determinada rede. Dentro destas comunidades de aprendizagem são desenvolvidos três elementos fundamentais: um significado, onde a atividade educacional fornece sentido – individual e coletivo – para a nossa existência no mundo; uma prática, que exprime a vivência partilhada de experiências e perspectivas e a qual permite “aprender fazendo”; e uma identidade, que surge pela forma como a aprendizagem transforma a biografia dos indivíduos inseridos nessa comunidade. 

Essas comunidades, além de existirem em substância, necessitam de uma materialidade, precisam se dar em espaços físicos, como a universidade ou grupos de estudo. Ou necessitam de elementos físicos para serem estabelecidas, como no caso de uma comunidade de aprendizado on-line que depende de computadores, redes de conexão, etc.  A proposição de Wenger (1988) ajusta-se à ideia sugerida pela Teoria do Ator-Rede de que um indivíduo desvinculado, sem senso de pertencimento ou com uma reduzida rede relacional, encontra-se em uma situação de empobrecimento. Neste contexto ele é alguém impedido de compartilhar o conhecimento que possui e de aperfeiçoá-lo através da troca. 

A Teoria do Ator-Rede, conforme exposta acima, é uma lente de análise útil para compreender de que o forma o conhecimento é construído e compartilhado, mas também de quais são as condições necessárias para que isso aconteça. A maior contribuição, talvez, resida na ideia da inseparabilidade dos pontos da rede e na relação de interdependência existente entre os elementos (sejam eles humanos ou não-humanos) que as compõe.

Referências:

ALCADIPANI, R.; TURETA, C. Teoria ator-rede e análise organizacional: contribuições e possibilidades de pesquisa no Brasil. Organizações & Sociedade, v. 16, n. 51, 2009, p. 647-664.
ARENDT, R. Psychology and the actor-network theory. Paper presented in the 4S & EASST Meeting, École des Mines de Paris, 2004.
CAMPOS, S. A. P. de; PALMA, L. C. Contribuições da teoria ator-rede para o estudo da sustentabilidade. Revista Metropolitana de Sustentabilidade, v. 7, n. 1, 2017, p. 47-67.
GUIMARÃES, V. [Imagem de figuras humanas em rede.] In: GUIMARÃES, Vanessa. O que podemos aprender com o conhecimento em rede? 24/10/2017. Disponível em: https://jornalistavanessaguimaraes.wordpress.com/2017/10/24/ conhecimento-em-rede/. Acesso em: 14/11/2019.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994
LAW, J. After method: mess in social science research. London: Routledge, 2004.
QUEIROZ, M. de F. A. et al. Discutindo a aprendizagem sob a perspectiva da teoria ator-rede. Educar em Revista, n. 39, 2011, p. 177-190.
SERTILLANGES, A-D. La vida intelectual: su espíritu, sus condiciones, su métodos. Barcelona: Editora Estela, 1965.
WENGER, E. Communities of practice: learning, meaning and identity. New York: Cambridge University Press, 1998, p. 12-15.

Quais os limites de nossa liberdade científica?

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de doutorado Vinicius Schambeck.

Podemos entender como liberdade, a possibilidade de realizar tudo aquilo que se deseja sem nada que impeça ou oprima nossas vontades ou ações. A busca pela liberdade é geralmente associada a algo positivo, fator gerador de autonomia e condição fundamental para realizar aquilo que se almeja nas diferentes esferas da vida, não sendo diferente no tocante do fazer científico.

Na visão de Sartre (1978), a liberdade é o tema central da condição humana, sendo ela a raiz do existencialismo, corrente filosófica que teve início no século XIX. Para o autor, “(…) a existência precede a essência” (SARTRE, 1978, p. 5), e com isso define que o homem primeiro existe no mundo e apenas depois se realiza e se define pelo que faz com sua vida. Sendo assim, primeiro existimos, e só depois constituímos a essência por intermédio de nossas ações no mundo. O existencialismo, desta forma, coloca no homem a total responsabilidade por aquilo que ele é, onde a nossa existência fica fadada às nossas escolhas e o ser do homem é existir sem nenhuma determinação prévia.

Através desse caminho é possível compreender a angústia que nos toma frente ao ato de decidir. É da liberdade que a angústia deriva. Na medida em que somos livres, isso implica a total responsabilidade por todos os efeitos de uma determinada escolha. Por esta razão é que o viver é sempre acompanhado de angústia, pois quando escolhemos um caminho, damos preferência a uma dentre diversas possibilidades disponíveis. Entretanto, qual liberdade, de fato, os homens possuem? 
Fonte: Jones (2018).
Trazendo essa reflexão de liberdade para o fazer científico, é plausível questionar até que ponto nossas escolhas são livres e autônomas diante de tantos aspectos condicionantes que nos cercam, desde a trajetória de vida do pesquisador até as variáveis que incidem no campo. De maneira geral é comum atribuir à prática científica um status de pureza, que estaria ligada ao seu próprio modus operandi supostamente neutro, ou seja, à forma como cientistas realizariam o seu trabalho de compreensão, seja da natureza, seja da sociedade. 

Entretanto, para Bourdieu (2013) o campo científico não se manifesta como um espaço neutro ou ambiente de produção de uma ciência pura sem qualquer interferência. Este universo no qual estão inseridos os pesquisadores e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a ciência é um mundo social como outros, com leis sociais próprias. 

Assim como nos campos político e econômico, o campo científico também apresenta relações de força, disputas de poder, relações sociais que implicam na apropriação dos meios de produção e dominação. Diante dessas tensões, Bourdieu (2013) afirma que a obtenção de capital científico confere ao cientista o reconhecimento necessário para influenciar e estabelecer dinâmicas de dominação. Essa visão reforça o entendimento do campo científico como espaço de disputa, onde o pesquisador está sempre contaminado pelo seu próprio percurso, a sua própria carreira, de modo que as suas práticas são sempre voltadas para a aquisição de autoridade e prestígio.

Ainda de acordo com Bourdieu (2013), não há escolha científica que não seja pautada em uma estratégia de investimento político a fim de resultar em lucros simbólicos e na obtenção de autoridade e reconhecimento. Logo, a atividade científica está cercada de parâmetros que, de certa forma, norteiam e influenciam as escolhas dos pesquisadores no seu fazer científico, a fim de se afirmar e buscar progressão enquanto parte integrante desse campo.

Essas diferentes visões sobre liberdade e autonomia estabelecem um paradoxo, onde dilemas de naturezas opostas culminam numa reflexão: se possível for, preferimos escolher suportar a eterna angústia e desamparo de ser fadado à liberdade das escolhas e suas consequências, ou aceitar conviver com a realidade de que cada um de nós é produto do seu meio, prisioneiro de rotinas de ação, dos códigos implícitos e das submissões que governam o mundo das ideias?

Referências: 

BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R. (Org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2013.
JONES, J. [Ilustração referente a Jean-Paul Sartre.] In: JONES, Josh. Jean-Paul Sartre’s concepts of freedom & “existential choice” explained in an animated video narrated by Stephen Fry. Open Culture, Philosophy, Durham/NC, 06/02/2018. Disponível em: http://www.openculture.com/2018/02/jean-paul-sartres-concepts-of-freedom-existential-choice-explained-in-an-animated-video-narrated-by-stephen-fry.html. Acesso em: 16/11/2019.
SARTRE, J. P. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

Filosofia da ciência, revolução científica e a Feira do Conhecimento Multidisciplinar do Centro Educacional Potencial de Campos Novos, SC

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico de mestrado Flávio Nodari Monteiro.

“Ninguém tá escutando o que eu quero dizer!
Ninguém tá me dizendo o que eu quero escutar!
Ninguém tá explicando o que eu quero entender!
Ninguém tá entendendo o que eu quero explicar!”
“Tem alguém aí?” (Gabriel, O Pensador)

No sábado, dia 19 de outubro, o Centro Educacional Potencial, de Campos Novos (SC), realizou sua “Feira do Conhecimento Multidisciplinar”, envolvendo desde os alunos do ensino infantil aos alunos dos primeiros anos do ensino fundamental, em episódio que pode, de alguma forma, ser considerado uma manifestação tímida, porém real, da influência do pensamento complexo e de novos olhares para a educação e para a ciência. A expressão “multidisciplinar” no nome do evento sugere, desde o início, uma intimidade com a transdisciplinaridade preconizada como necessária e essencial por Morin (1991).

Nos diversos ambientes temáticos criados (“vida animal”, “reino das letras e da matemática”, etc.), que por sua vez eram divididos em seções internas, as educadoras fizeram questão de estabelecer conexão entre os vários elementos expostos, e destes com a realidade dos educandos. Muitas seções surgiram da demanda dos próprios alunos: os dinossauros, as abelhas, os objetos que se relacionam com certas letras, em que situações os números são normalmente usados etc. Desta forma, as múltiplas divisões e ambientes, por mais separadas que pudessem parecer, sempre se apresentavam como partes de um todo maior: a noção de “extinção”, por exemplo, estabeleceu conexão entre a seção da arara-azul, dos dinossauros, das abelhas, das tartarugas, dos animais ameaçados do pantanal e da caatinga.
Sebastian e Cecília, "monitores" da sessão dos dinossauros. Fonte: acervo do autor (19/10/2019).
Ao invés de separar, unir para discernir. A parte compreendida na sua relação com o todo que, por sua vez, transcende a noção de mera soma das partes. Os princípios sistêmico e hologramático de Morin (1991) pareciam se materializar. Sarah Yasmin, a jovem e encantadora cientista de não mais que dez anos, encarregada de explicar a seção dos pets, apresentava em um grande painel as fotos dos alunos da escola com seus bichinhos de estimação. A estima aos animais como elemento de ligação, de intersubjetividade entre os alunos de diferentes idades, origens e graus de conhecimento, fazia seus olhinhos brilharem. Tudo exposto no vocabulário dos próprios educandos, visivelmente enriquecido a partir do contato com os saberes específicos. Emocionava ver Arthur, também na faixa dos dez anos, explicando os biomas do Pantanal e da caatinga, com terminologia técnica precisa.

A incerteza, de maneira saudável, também faz parte do conhecimento que os educandos constroem. “O velociraptor pode, talvez, ter originado as galinhas e outras aves”, diz o pequeno Sebastian, de cinco anos, um dos “monitores” da seção dos dinossauros. “O trabalho com a  incerteza incita ao pensamento complexo”, lembra Morin (1991, p. 79). “‘Dinossauro’ quer dizer ‘lagartos terríveis’”, conta por sua vez a educanda Cecília, a outra “monitora” da seção, numa perspectiva de “conceito de manual”, rigorosa e cartesiana, feliz — como todos os demais monitores das outras seções — por, talvez, ter “feito o certo”, a boa ação, o que deveria ser dito. Perguntada se concordava que dinossauros eram mesmo lagartos terríveis, meigamente respondeu: “Não! Alguns são fofos e não comem outros animais”.

Assim, como alerta Le Moigne (2007), o conceito exposto (de alguma forma “eticamente necessário”), é “o resultado necessário de alguma forma de raciocínio silogístico perfeito (e independente do sujeito pensador)” (p. 117). De acordo com o mesmo autor, “sofremos ainda nas nossas instituições escolares efeitos residuais desse cientismo que o Catecismo Positivista de A. Comte (1852), e As Leis do Pensamento, de G. Boole [...] iriam de alguma forma sacralizar no ensino[...]” (LE MOIGNE, 2007, p. 117).

As visões dos monitores da seção dos dinossauros afiguram-se, de certa forma, dialógicas, permitindo a interação de pontos de vista aparentemente divergentes. Todavia, ambos concordam: “sapo não”, compartilhando aqui convicções (e teorias?) de sua “especialidade”, num metafórico “micro paradigma”, já que, para Kuhn, guardadas obviamente as proporções, um dos sentidos de paradigma é o de “constelação de crenças, valores, técnicas” (KUHN, 1987, p. 218) ou, mais precisamente, “um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma” (KUHN, 1987, p. 219).

Os "cientistas" João Eduardo e Gustavo e as abelhas. Fonte: acervo do autor (19/10/2019).
Finalizam a exposição com a explicação do extermínio dos dinossauros: “aí veio um meteoro e BUM! Eles morreram todos!”. Como pequenos discípulos de Morin (1991), já se envolvem com as noções de ordem e desordem: a vida dos dinossauros, mansamente organizada em seu ecossistema, é “bagunçada” com o meteoro (a álea) que traz o caos, o extermínio e a nova organização. Ordem e desordem interagindo, até chegarem aos nossos tempos ordenados/desordenados, em que outros animais sofrem do mesmo perigo de extinção, só que a partir de eventos bem menos aleatórios do que um meteoro.

Para atingir seus objetivos, as organizadoras do evento, intencionalmente ou não, valeram-se do mandamento máximo de Feyerabend (1977): tudo vale! Valeu misturar réplicas de dinossauros com dino-bots (dinossauros robôs de brinquedo), contextualizá-los com animais atualmente existentes, e para as explicações/compreensões, utilizar lendas, historinhas infantis, manuais didáticos, desenhos televisivos, tudo! 

De acordo com as educadoras, grande parte do conhecimento construído pelos educandos é resultado de suas próprias intuições, das relações, descobertas e associações que realizam. Na seção das abelhas, por exemplo, os pequenos monitores Gustavo e João Eduardo, demonstravam zelo e seriedade para explicar a vida social destes insetos. Quando perguntados se o zangão não era um elemento prejudicial na colmeia, pois aparentemente não desempenhava um papel de relevância, os “cientistas mirins” pensaram, pensaram, pensaram e, em atitude semelhante à adoção de um método heurístico, sabiamente ponderaram: “não é porque a gente não sabe exatamente o que que ele faz que não tem importância! Na vida muita coisa é assim”, lecionaram. “Ele pode fazer talvez a segurança, ou ser  importante para outra coisa”.
Mural da escola. Fonte: acervo do autor (19/10/2019).
O contato com a escola, e principalmente com as crianças, é capaz de realimentar a esperança de que os atuais tempos sombrios, para a ciência e para a educação, irão passar, e que no porvir se encontra a matriz revolucionária esperada. Particularmente nesta escola – ou ao menos neste evento – parece haver comunhão de ideias com os autores das referências bibliográficas adotadas abaixo, uma vez que recepciona seus visitantes, professores e alunos com um grande painel em sua entrada que avisa: “A arte de ensinar é a arte de acordar a curiosidade natural com o propósito que cada ser descubra suas potencialidades”. Há algo mais revolucionário do que despertar a curiosidade, a sede de conhecimento de alguém?

Referências:

FEYERABEND, Paul K. Contra o método. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977.
KUHN, Tomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.
LE MOIGNE, J-L. Inteligência da complexidade. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, n. 4, out/dez 2007.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.
_____. Ciência com consciência. Lisboa: Europa-América, 1991.

O pensamento complexo, uma reconstrução contemporânea do pensamento clássico

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico de mestrado José Cláudio Cidral Junior.

Edgar Morin (2003), na sua obra “introdução ao pensamento complexo”, destaca que os problemas mais graves da humanidade são frutos de um progresso cego do conhecimento. Esta cegueira está relacionada a fragmentação do conhecimento, oriunda do método cartesiano, que não consegue interpretar a complexidade do real e a ligação entre as partes diferentes, dificultando a produção do conhecimento. Vico fala sobre essas delimitações das ciências, fechadas em suas “caixas” desde Descartes, como um tipo de ditadura intelectual que sufocou nos jovens aquilo que pertence a sensibilidade, a memória e imaginação, e os afastou do humanismo retórico (LE MOIGNE, 2007). 

Esta mutilação do conhecimento, causada pela inteligência cega que destrói os conjuntos e as totalidades, fez surgir o pensamento complexo como desafio contemporâneo. A complexidade se manifesta nas características de associação das partes diferentes, como a representação de um tecido que integra o mundo fenomênico, e a dificuldade do pensamento complexo está em enfrentar este emaranhado de interações solidárias entre os fenômenos (MORIN, 2003). Kuhn (1987) compartilha a visão holística da ciência quando descreve os paradigmas como soluções concretas de um quebra-cabeças da ciência normal, ou seja, segundo ele, a ciência normal, enquanto cumulativa, representa a ligação entre as peças (paradigmas científicos) do quebra-cabeças de forma coerente e complexa. 

Ainda representando esse princípio provocante entre as ciências, Teresa Ambrosio nos faz um convite a adquirirmos uma racionalidade aberta, dando espaço à dialógica e construindo um novo paradigma frente aos construídos nos métodos cartesianos (LE MOIGNE, 2007). Vico contrapõe a visão reducionista de Descartes na sua magistral ilustração do poder do engenho, sobre a faculdade mental que permite reunir de forma apropriada as coisas separadas, sintética e oposta à análise cartesiana, reforçando a ideia de unir para contextualizar (LE MOIGNE, 2007). 

A semelhança entre os pensamentos de Morin e Kuhn sobre a contextualização da ciência de forma holística é interrompida quando os autores conceituam os paradigmas de formas diferentes. Para Morin (2003), paradigma é uma forma de relação lógica entre certo número de conceitos ou ca¬tegorias mestras, uma maneira de controlar ao mesmo tempo o lógico e o semântico. Já Kuhn (1987) contextualiza paradigma como percepções compartilhadas pelos membros de uma comunidade científica.

Para Morin (2003), a relação de sujeito e objeto integram-se entre si, concepção aberta que tira o absolutismo dos conceitos destes e permite uma abertura para o progresso do conhecimento. Essa epistemologia aberta é lugar para a incerteza e a dialógica; ela traz verdades biodegradáveis e não absolutas, assemelhando-se a Popper (1979), quando este tem a visão de que não existem enunciados últimos ou verdades absolutas na ciência que não possam ser testados e nem refutados, e seu método dedutivo supõe que mesmo que as conclusões sejam “verificadas” não se pode determinar que as teorias são “verdadeiras” ou “prováveis”.

Pode-se dizer que ciência é uma produção histórica que passa por períodos cumulativos sem crise no desenvolvimento do conhecimento, até que os paradigmas usados como bases entrem em crise e sejam substituídos por novos, caracterizando um salto na ciência, não cumulativo, uma revolução, para uma nova ciência, como aconteceu quando Copérnico desenvolveu o heliocentrismo, teoria que se opôs e substituiu o geocentrismo defendido pelos clássicos (KUHN, 1987). Morin (2003) afirma que tudo que se passou na história em épocas de crise são acontecimentos não triviais, que qualquer crise é um acréscimo de incertezas e que precisamos abandonar as soluções antigas que remediavam as crises e elaborar novas soluções; a história da ciência também se caracteriza pela migração de conceitos. O pensamento complexo de Morin (2003) faz sacudir a preguiça mental de que nada inesperado irá acontecer; não recusa a ordem e o determinismo, mas os considera insuficientes e sabe que o conhecimento, a ação e as descobertas não podem ser programadas.

Podemos assim dizer que Morin, Le Moigne e Kuhn representam um ponto na história da ciência que proporciona uma evolução do pensamento clássico cartesiano, não o contrapondo totalmente, mas implicando um caráter dialógico entre as partes científicas singulares, no sentido de contextualizar e unir as peças do quebra-cabeças representadas pelos paradigmas das ciências, emergindo o desafio do pensamento complexo na ciência.

Referências:

KHUN, T. Posfácio. In: KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.
LE MOIGNE, J-L. Inteligência da complexidade. Sísifo. Revista de Ciências da Educação. n. 4, out/dez. 2007.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.
POPPER, K. A lógica da investigação científica. In: POPPER, K. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

A lógica da ciência Popperiana

Pequeno ensaio produzido pela aluna de doutorado Gabriela Buffon.

O protagonista desse paper é o filósofo e professor Karl R. Popper, o qual debateu com os autores do Círculo de Viena (Waissman, Zielzel, Kraft, Hahn, Frank, Menger, Feigl e Von Mises) sobre as críticas do neopositivismo, os problemas de demarcação e da indução científica e suas relações (POPPER, 1972). Também foi um dos interlocutores adversários da Escola de Frankfurt, e não produziu uma teoria crítica da realidade, mas uma crítica ao método (DEMO, 1995).   

Nesse contexto, compete ressaltar o objetivo do Círculo de Viena. Tratava-se de um grupo de pensadores cultos que discutiam contra o espírito especulativo e metafísico, mas  afirmava que o avanço da ciência só era possível através da “demonstração rigorosa e no recurso aos fatos observáveis” (DORTIER, 2000, p. 1). Ainda para o autor, o Círculo de Viena promulgava que o conhecimento só poderia existir sobre duas ordens, a primeira com proposições lógicas e matemáticas, não se tratando de experiências, e a segunda com proposições empíricas, baseadas em fatos, assim, deveriam ser verificadas quanto à sua veracidade. Os demais tipos de conhecimento, como a metafísica, são “vazios, sem sentido ou reduzidos a falsos problemas” (DORTIER, 2000, p. 1). Essa visão extrema do positivismo, com um discurso totalmente lógico, coerente e unificado, acabou por “terra”, e assim, ganhou força o discurso popperiano (DORTIER, 2000).

Popper se opõe às ciências empíricas e aos métodos indutivos, que foram influenciados pela escola inglesa (Bacon, Locke, Mill e Hume), que pretendiam submeter a ciência ao controle e testes experimentais. Essa perspectiva alimentou a ciência objetiva e evidente, onde só se explicava o observável, assim a cientificidade objetivava a verificação, repetição e consequentemente a generalização (POPPER, 1979, DEMO, 1995).
    
Fonte: Vannucchi (2018).
E é essa base empírica que Popper considera como um problema metodológico. Assim, o filósofo volta ao problema de Hume, sobre as inconsistências do princípio da indução. Para tanto, Popper formula dois argumentos: a) a indução recai sobre uma regressão ao infinito, em que casos concretos não permitem a generalização (DEMO, 1995) e também é colocado em xeque o princípio de causação universal de Kant (POPPER, 1979); e b) a indução recai no apriorismo (POPPER, 1979, DEMO, 1995).    

Dessa forma, Popper (1979) desenvolve e defende a teoria do método dedutivo de teste, em que as experiências são utilizadas como método de teste das teorias, e não o considera como um critério de demarcação científica (DEMO, 1995). São também colocados quatro procedimentos para o teste de uma teoria, entre eles, o primeiro avalia se existe uma comparação lógica entre duas conclusões, em que se testa a consistência interna. O segundo procedimento investiga a teoria, se essa é empírica ou científica. O terceiro procedimento é a comparação entre as teorias, com o objetivo de verificar se é um avanço científico, caso essa se mantenha após os testes. E por fim, o quarto, é o teste da teoria através de aplicações empíricas das conclusões, que verifica se as novas teorias satisfazem os requisitos da prática (POPPER, 1979). É nessa fase que Popper substitui o critério de verificabilidade pelo da falseabilidade, que não irá recair na regressão ao infinito (DEMO, 1995).   
      
Nessa concepção, em comparação com a verificabilidade, para a falseabilidade não basta a reunião de provas afirmativas sobre uma determinada teoria, como Popper cita de exemplo através dos cisnes brancos, mas basta que seja encontrado apenas um caso concreto negativo para que a teoria seja falseada.  Ou seja, o fato de um cisne não ser branco é suficiente para refutar a generalização causada no método indutivo, com o enunciado de que “todos os cisnes são brancos”. 

Fonte: Rocha (2018).
Outro ponto muito importante levantado por Popper está relacionado à objetividade científica e convicção subjetiva, que na minha opinião é um dos pontos mais relevantes da leitura do livro A Lógica da Investigação Científica. Popper (1979) argumenta que as teorias científicas não são inteiramente justificáveis ou verificáveis, mas essas devem ser passíveis de serem testadas. O autor coloca que os testes dos enunciados devem ser realizados intersubjetivamente. E que se ocorrem esses testes, “não podem existir enunciados últimos na ciência” (POPPER, 1979, p. 20), deixando ainda claro que nem todo enunciado precisa ser testado antes de ser aceito, mas, no entanto, esses devem ser suscetíveis de serem testados.  
   
E é justamente a ciência passar por testes que possibilita a sua evolução. Para ilustrar a importância da ideia de falseabilidade para ciência é citado como exemplo a pesquisa realizada por Conrad et al. (2017), os quais realizaram uma pesquisa sobre a proteína ESAT-6, relacionada a tuberculose (Virulência de M. Tuberculosis). O artigo verificou a ocorrência de falhas de interpretação nas afirmativas sobre protocolos de pesquisas, na função biológica da proteína ESAT-6, realizadas até então, mesmo que algumas tenham sido publicadas em revista de alto impacto. Essas falhas ocasionaram uma quantidade considerável de interpretações incorretas nas pesquisas sucessoras, o que teve consequências epistêmicas significativas para o campo da tuberculose e para a biologia molecular em geral. Portanto, Conrad et al. (2017), ao testarem essas afirmativas encontraram vieses nas pesquisas e falsearam uma teoria vigente, possibilitando, assim, a evolução da ciência.  

Dentro do campo das ciências sociais, pode ser citada como exemplo a evolução da teoria do Homo Economicus, o qual visa racionalidade perfeita dos indivíduos na tomada de decisão, os quais buscavam interesse próprio e informação perfeita, muito aceita por economistas (STATMAN, 2006; BROCCHI; BROCCHI, 2016). Contudo, a evolução da ciência nos permitiu verificar que o ser humano não é plenamente racional na sua tomada de decisões, principalmente nas abordagens que possuem vieses psicológicos (BROCCHI; BROCCHI, 2016). Essa inferência possibilitou falsear a teoria do  Homo Economicus e deu origem as teorias no campo das finanças comportamentais, como por exemplo, a Teoria do Prospecto de Tversky e Kahneman (1979). 

Referências: 

BROCCHI, Raphel Leon Peres Thomazine; BROCCHI, Jaqueline Thomazine.  A evolução do processo de tomada de decisão: ilusão de controle e aversão à ambiguidade. Revista Técnico-Cientifica do Instituto de Brasília, EIXO. Brasília, v. 5, n. 1, 2016. Disponível em: <revistaeixo.ifb.edu.br/index.php/ RevistaEixo/article/view/302>. Acesso em: 16 out. 2019.
CORAND, W. H. et al. Mycobacterial ESX-1 secretion system mediates host cell lysis through bacterium contact-dependent gross membrane disruptions. Proceeding of the National Academy of Sciencies of the  United States of America – PNAS, v. 114, n. 6, p. 1371-1376, feb. 2017. Disponivel em: <https://www.pnas.org/content/114/6/1371>. Acesso em: 16 out. 2019.  
DEMO, P. Metodologia científica em ciências sociais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1995. 
DORTIER, J-F. Le cercle de Vienne et le nouvel sprit scientifique. In: Sciences Humaines, hors-série, septembre, 2000 (tradução livre). 
POPPER, K. A lógica da investigação científica. In: POPPER, K. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 
ROCHA, M. Monogâmicos, cisnes que moram em lago do Palácio do Itamaraty sofrem a perda de parceiros. Época, Brasil, 21 de agosto de 2018. Disponível em: <https://epoca.globo.com/brasil/noticia/2018/06/monogamicos-cisnes-que-moram-em-lago-do-palacio-do-itamaraty-sofrem-perda-de-parceiros.html>. Acesso em: 04 de nov. 2019. 
STATMAN, Meir. What is behavioral finance? In: POMPIAN, Michael M. (Org.) Behavioral finance and wealth management: how to build optimal portfolios that account for investor biases. New Jersey: John Wiley & Sons, 2006.
VANNUCCHI, J. A falseabilidade na filosofia de Karl Popper. Acervo Filosófico. Brasil, 18 Abr. 2018. Disponível em: <http://www.acervofilosofico.com/a-falseabilidade-na-filosofia-de-karl-popper/>. Acesso em: 04 de nov. 2019. 

Somos uma eterna hipótese

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de doutorado Gabriel Marmentini.

Me recordo que Comte entendia a metafísica como uma etapa na hierarquia das ciências. Sendo ela imperfeita, fora substituída pelo positivismo. Comte pode não gostar da metafísica, mas reconhece seu papel na evolução da ciência. Por outro lado, os filósofos e lógicos do Círculo de Viena foram contra qualquer concepção metafísica ou teológica, aproximando do positivismo o elemento da lógica, inspirados em Wittgenstein (DORTIER, 2000), o qual entendia o mundo como fatos e a perspectiva indutiva como o caminho para a universalização das verdades (WITTGENSTEIN, 1961). A busca por uma ciência unificada deu origem ao que chamamos de neopositivismo ou positivismo lógico. Nesta corrente, o que é verdadeiro é passível de verificação empírica, qualquer outra coisa seria apenas filosofia ou pseudoproblema. Importante frisar que isso vale para o conhecimento sintético, visto que o analítico (matemática e lógica) é explicado em si mesmo. 

Em outras palavras, o neopositivismo impõe um critério de verificabilidade à ciência que fortalece ainda mais o ideal de demarcação científica, separando o que é ou não ciência. Inspirado em Demo (1985), me posicionei, outrora, como um defensor das demarcações científicas, desde que funcionem como um elemento de legitimação das mais diversas formas do fazer ciência, e não por uma vertente binária, dogmática e reducionista sobre o que é ou deixa de ser ciência. No que tange a verificabilidade, não tenho nada contra. Quanto mais pudermos verificar, melhor. Não obstante, não tenho a concepção de que é necessário descartar tudo aquilo que não é verificável. Para mim, há espaço de sobra para que a metafísica, a teologia e a ciência coexistam. Além disso, mesmo que haja uma submissão rigorosa à verificação de uma determinada verdade, a mesma pode deixar de ser verdade em algum momento, visto que o mundo é processo e não produto. Nesta linha, emerge em meu texto Karl Popper que, assim como eu, foi crítico desta forma de pensar do Círculo de Viena.

Fonte: Pexels (2019).
Em minha análise, Popper, assim como Kant e Kuhn, representou um ponto de inflexão na teoria do conhecimento. Seu sistema filosófico, denominado racionalismo crítico, se baseia na ideia do conhecimento temporário, hipotético e refutável, além de contestar a lógica indutiva – defendendo o teste dedutivo das teorias – ao apresentar seus problemas (POPPER, 1979). Popper se aproxima mais da forma que eu vejo o mundo. Ele entende o erro como processo e motor para a evolução. Evidente que sua discussão gira em torno da ciência, mas eu a trago para a vida como um todo. Muito do que me faz ser quem sou hoje, tem relação com a minha capacidade de olhar constantemente para as minhas verdades e entendê-las como postulados em contínua transformação. O Gabriel que escreve este texto agora é melhor do que o Gabriel de três anos atrás. Não por ser mais velho, mas por ter visto em seus erros uma oportunidade de crescer e construir novas verdades. 

A capacidade – ou humildade – para contestar nossas verdades é um grande desafio, mas a hora que aprendemos, é um caminho sem volta. Nos transformamos em uma eterna hipótese e enxergamos a beleza por trás disso. Nesses três anos, eu não somente coloquei novos tijolos na construção que estou fazendo como quebrei alguns para dar lugar a outros. Esse foi o meu entendimento acerca da postura de falseabilidade que Popper espera da ciência (POPPER, 1979). Para ele, a correção desses erros identificados em um processo de falseabilidade levaria ao progresso científico. Eu já penso um pouco diferente, visto que ao buscar refutar uma determinada teoria, podemos acabar descobrindo outras, e que não necessariamente refutam a anterior, mas a complementam ou até nem se relacionam diretamente a ela. Ou seja, o foco não é simplesmente refutar tudo que fora concebido, mas serve como um estímulo para galgarmos uma expansão de conhecimento. Se pararmos pra pensar, a própria teoria de Popper sobre a falseabilidade deve ser passível de contestação. 

Por fim, há mais um elemento importante de pontuar nesta discussão: a quem cabe refutar as teorias ora estabelecidas? Somente aos cientistas? Isso nos remete às discussões do fazer ciência, das delimitações e dos modelos mentais relacionados aos cientistas de laboratório. Se Talcott Parsons estiver certo em sua ótica das partes (PARSONS, 1967) que compõem uma sociedade, cada qual com sua função, alguma parte há de ter tal incumbência. Embora eu acredite nesta visão da sociedade como um organismo vivo, onde as partes contribuem para a sobrevivência do todo, tendo a pensar que as funções sociais são difusas, sendo plausível que alguma parte tenha maior ou menor grau de responsabilidade, mas sendo difícil atribuir exclusividade. Em outras palavras, cabe a nós todos o fazer ciência e o refutar ciência.

Toda essa discussão me fez lembrar do uruguaio Eduardo Galeano, quando diz que a utopia serve para não deixarmos de caminhar. Portanto, pretendo continuar minha caminhada com a consciência de que nunca estarei pronto e de que tudo é transitório, estando sempre aberto às refutações. A ciência das verdades absolutas é uma utopia e a contínua refutação é o combustível que nos faz caminhar.

Referências:

DORTIER, J-F. Le cercle de Vienne et le nouvel sprit scientifique. In: Sciences Humaines, hors-série, septembre, 2000. (Tradução livre.) 
PARSONS, T. Sugestões para um tratado sociológico da teoria das organizações In: ETZIONI, A. (Org.) Organizações complexas. São Paulo: Atlas, 1967.
PEXELS. [Imagem de macaco.] Disponível em: <https://www.pexels.com/pt-br/foto/acreditar-animais-selvagens-animal-animal-selvagem-33535/>. Acesso em: 02/11/2019.
POPPER, K. A lógica da investigação científica. In: POPPER, K. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Editora da USP, 1961.

A compreensão da beleza como busca da verdade

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de doutorado Vinicius Schambeck.

Como é possível compreender o êxtase e a intimidação que a experiência de contemplar uma aurora boreal pode oferecer? Ou então, o hipnotismo causado ao ouvir o Lago dos Cisnes de Tchaikovsky? Esses questionamentos incitam a reflexão acerca da beleza como necessidade intrínseca da natureza humana, e como ela pode ser analisada e compreendida sob diferentes correntes do pensamento filosófico. Em tempos onde a literalidade e o objetivismo ganham espaço frente ao simbólico e ao subjetivo, resgatar a valorização do belo como forma de conexão através de valores compartilhados é discutir a própria existência humana.

Nesse contexto, ao tomar a beleza como objeto de investigação surge o questionamento sobre a sua utilidade na vida cotidiana. A evolução do pensamento moderno caminhou para a construção de uma sociedade utilitarista, onde o entendimento da beleza como algo secundário teve sua expressão nas artes, música e arquitetura, sustentado numa premissa de que a forma deveria seguir a função. A necessidade que o homem tem pelo belo é útil em si, por ser belo, independente da sua aplicação prática ou funcional. Seja através da beleza sutil do cotidiano ou do sublime, o belo traz em si mesmo o prazer e a felicidade, podendo assim se justificar até no princípio geral da utilidade enunciado por Mill (2007), afirmando a sua capacidade de ser útil como fim e não como meio.

Scruton (2013) vai além e questiona até se a beleza seria um valor universal, um remédio para uma vida repleta de caos e sofrimento. Apoiando-se em argumentos de Platão e Kant, o autor reflete que a experiência da beleza vêm quando abandonamos nossos interesses, quando olhamos para as coisas não com a intenção de usá-las para nossos propósitos, explicar como elas funcionam, ou satisfazer alguma necessidade ou desejo, mas apenas para observá-las e assimilar o que elas são.

A sensibilidade ao belo de certa forma caracteriza a capacidade do homem de racionalizar, indo além dos sentidos. Afinal de contas, não observamos nos animais a capacidade de admiração e contemplação da beleza natural como um pôr do sol, fenômeno esse que ao homem pode provocar um senso de harmonia, conformidade e pertencimento e algo maior que a sua própria existência. 

Fonte: Shutterstock (2019).
Compreendemos algo como belo quando extraímos prazer ao contemplá-lo como um objeto individual, por si mesmo. E essa capacidade de fazer da beleza uma ponte ao sagrado e transcendental é o que dá um sentido maior aos objetos e fenômenos, que para Kant (2015) só é possível porque existem as faculdades humanas de cognição, ou seja, “estruturas” mentais que nos possibilitam organizar as percepções e o conhecimento. Essas estruturas são transcendentais e a priori, comuns a todos os indivíduos.

Esse entendimento do termo “fenômeno” utilizado por Kant como a realidade que se mostra para a nossa consciência carrega uma distinção entre o fenômeno e o objeto em si. Sob a ótica fenomenológica de Husserl (2008) não há esta divisão, onde o fenômeno é considerado do modo como ele aparece em si mesmo, onde não há somente a representação da coisa observada, nem mesmo somente a coisa em si, mas a coisa como é revelada à consciência.

Relacionada a essa capacidade de ser sensível ao belo há uma intencionalidade específica envolvida como parte de uma vida cognitiva. Somente criaturas como nós, com linguagem, auto-consciência, razão prática e julgamento moral, podem observar o mundo desta forma alerta e desinteressada, de modo a capturar o objeto apresentado e extrair prazer dele por meio da contemplação, não apenas do desejo.

Essa intencionalidade é o que define para Husserl (2008) a consciência, pois toda consciência é consciência de algo. A intencionalidade, ponto central da fenomenologia, é um modo de ser da consciência enquanto um transcender em direção à outra coisa, onde todas as experiências carregam de certa forma alguma intencionalidade. O objeto só pode ser definido também em relação a consciência, pois todo objeto é objeto para algum sujeito. Nessa perspectiva, o método fenomenológico como instrumento para conhecer a essência das coisas e da própria consciência dá sentido à compreensão de realidade para Husserl, onde a beleza se compreende como um conjunto de significações e sentidos. 

A confrontação com a beleza é imediata, vívida e pessoal, sendo capaz de nos conectar com o mistério máximo da existência, trazer à presença do sagrado e talvez até nós aproximar de uma verdade universal. Em tempos difíceis, guiados pela falta de compreensão, empatia e senso de unidade, seria a beleza um caminho para nos reconectar enquanto humanidade?

“...A beleza é verdade,
A verdade é beleza,
Isto é tudo que conheceis sobre a Terra
E é tudo o que precisamos conhecer...” 
(John Keats)

Referências:

HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008.
KANT, I. Crítica da razão pura. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.
MILL, S. O que é o utilitarismo? In: MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.
SCRUTON, R. Beleza. São Paulo: É Realizações, 2013.
SHUTTERSTOCK. [Imagem de pessoa contemplando a aurora boreal.] In: SHEPERT, Elana. Vancouver is awesome. Vancouver News, 30/08/2019.  Disponível em: <https://www.vancouverisawesome.com/2019/08/30/northern-lights/>. Acesso em: 01/11/2019.