Visão dos diferentes: uma troca entre amigos

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Ana Gabrielle Neves de Oliveira.

Quando pensamos em epistemologia, pode acontecer de nossa cabeça tomar vários caminhos. Alguns pensam em filosofia, outros dão mais importância ao método. Muitos como eu, antes de entrar nessa disciplina, tentavam desvendar os mistérios de um conceito que parece fácil e difícil ao mesmo tempo: a ciência de como fazer ciência.

O ponto que quero trazer é um relato pessoal e fazendo um paralelo com um acontecimento real do campo de epistemologia. Por isso não poderia deixar de dizer que ao adentrar nessa disciplina com mais profundidade e ler (alguns) clássicos e sabendo que tenho muito no que mergulhar ainda, entendi uma coisa: é muito estudo.

Muito estudo da ciência, da sua teoria e prática. Confrontar visões não é algo simples, mas necessário. Necessário para nos desconstruirmos, reconstruímos, achar o que estava perdido.No final esta é uma prática essencial para quem quer se melhorar como cientista e pessoa.

Por estar envolvida em muitas leituras e no universo da epistemologia, achei um tanto curioso quando me deparei com a história de dois grandes pensadores da área: Imre Lakatos (1922-1974) e Paul Feyerabend (1924-1994). Acontece que os dois eram grandes amigos e se opunham fortemente do que é e como é composta a cientificidade.

Diferente do neopositivismo, da lógica da linguagem, da falseabilidade e das etapas de construção de argumentos teóricos e avanços da ciência, Imre e Paul não acreditavam que era bem assim que as coisas aconteciam. Certamente a maioria das pessoas da Academia já ouviram falar de Lakatos ou até o referenciaram nos métodos de seus trabalhos. Talvez, as contribuições deste autor tenham um grande incentivo de Feyerabend.

Lakatos nos trouxe a metodologia dos programas de pesquisa, o que é na minha opinião mais próximo do que conhecemos hoje nas Universidades. Cada programa teria um núcleo firme de teorias unânimes ou irrefutáveis pelos cientistas da área e uma heurística positiva rege modificações nas teorias auxiliares da primeira. Portanto, em uma visão global o avanço e a revolução da ciência se dá pela superação dos programas de pesquisa, uns aos outros. 

Fonte: https://blogs.lse.ac.uk/lsehistory/2023/01/27/imre-lakatos-and-lse/

Por outro lado, Feyerabend é conhecido pelo anarquismo epistemológico, ou seja, ele acreditava que a liberdade na produção do conhecimento é o mais importante para o progresso na ciência. E a ciência e seu progresso são entendidas de várias maneiras, não há somente uma certa.

Fonte: https://alexbretas11.medium.com/carta-a-paul-feyerabend-18f8da84eb76

Nesse sentido, Feyerabend nos diz que quanto mais teorias existirem, mais progrediremos. Ele contrapõe a lógica de uma construção linear do conhecimento e afirma que o contexto da justificação, as intersubjetividades da descoberta e do cientista os influenciam e assim deve ser. As “anomalias” nas teorias “irrefutáveis” existem e a confirmação da hipótese nunca se dá cem por cento. Por este motivo, não é certo desconsiderar as subjetividades dos indivíduos e se levar em conta formalidades excessivas. Para ele, a ciência deve ser democrática e discutida com a comunidade. 

Voltando a parte curiosa, Lakatos e Feyerabend foram dois grandes amigos que trocavam cartas e discutiam suas visões extremamente diferentes. No início de seu livro Contra o Método, Feyerabend diz:

Este ensaio é a primeira parte de um livro a propósito do anarquismo que seria escrito por Lakatos e por mim. Cabia-me atacar a posição racionalista; Lakatos, por seu turno, reformularia essa posição, para defendê-la e, de passagem, reduzir meus argumentos a nada. Juntas, as duas partes deviam retratar nossos longos debates em torno desse tema — debates que tiveram início em 1964, prosseguiram em cartas, aulas, chamadas telefônicas, artigos, até quase o último dia de vida de Imre, e se transformaram em parte de minha rotina diária. A origem do ensaio explica o seu estilo: trata-se de uma carta, longa e muito íntima, escrita para Imre e cada frase perversa que contém foi escrita antecipando frase ainda mais ferina de meu companheiro. Também é claro que o livro, como se apresenta, está lamentavelmente truncado. Falta-lhe a parte mais importante, a réplica da pessoa para quem foi elaborado. Publico-o, entretanto, como testemunho da forte e estimulante influência que Imre Lakatos exerceu sobre todos nós. (FEYERABAND, p. 8, 1977).  

Portanto, o que virou um livro era uma troca de cartas com o amigo. Quando Lakatos morreu, Feyerabend resolveu publicar suas cartas sem respostas como um livro para homenageá-lo. Conforta o íntimo saber que entre ideias tão diferentes, havia tanta amizade e carinho um com o outro em suas tratativas.

Isso nos lembra que há muita vida para além da teoria. E que da teoria também emergem amizades. Essa é uma lição atual contra as armadilhas que o ego nos impõe. A vida nem sempre é fácil, pessoas são mais racionais, outras mais da liberdade, entretanto sempre podemos tornar tudo mais leve. 

Ultrapassando todo o contexto pessoal que eu não queria, mas fiz, pretendo levar esse aprendizado para a Academia que eu entro. Ela é diferente do que estes autores conheceram, o acesso é mais fácil, as coisas são mais rápidas, conseguimos reconstruir a parte que faltava no livro de Feyerabend.

Mas uma coisa não mudou. Somos todos pessoas, que precisam do convívio, de se achar entre seus entremeios e de seguir o caminho do bom convívio. E quando se tem (ou se faz) um grande amigo, ah, isso faz toda a diferença.

Referências:

FEYERABEND, Paul K. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.  

 

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