O criticismo de Kant e a certeza do Absoluto

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Dhiogo Cidral de Lima.

É do raciocínio do homem comum, e convenção da era contemporânea em que vivemos, que o que não se pode ser experimentado na prática, não pode ser concretizado como ciência. É analogamente como a máxima de São Tomé, Apóstolo de Cristo: só creio naquilo que vejo, naquilo que posso tocar e por meus sentidos afirmar ser concreto. No mundo atual, diariamente bombardeado por constantes mudanças e falsas especulações, o discurso de incredulidade nunca pareceu ser tão crível.

Divagações à parte, e fazendo um paralelo temporal, talvez o mundo da revolução iluminista tenha um “quê” disto que hoje vivenciamos, onde os discursos “obscuros” nublavam o homem na construção de uma teoria forte e bem elaborada para melhor compreensão do mundo e do conhecimento acerca do vemos, sentimos e mentalmente organizamos. Imagino que Immanuel Kant se esforçou para desconstruir isto, ou melhor, para provar que as teorizações que se imiscuíam na concepção de uma melhor compreensão do conhecimento racionalizado ou experimentado. Sua obra crítica empreende uma investigação abrangente sobre a natureza e os limites do conhecimento humano, abordando questões fundamentais da epistemologia e da metafísica.

Posso supor que Immanuel Kant não era um homem ordinário. Sem nunca ter saído de sua cidade natal, com sua mente e mentalidade viajou e concebeu uma teoria que iniciou a mutação do pensamento moderno. Vivente próximo de duas correntes do conhecimento científico e seus embates, embebido pelo “racionalismo de Descartes” (e outros) e pelo “empirismo de Hume” (e outros), construiu uma crítica (no sentido de uma análise sistemática, e não como para apontar imperfeições) compondo um entreposto na fronteira do conhecimento, sedimentando novas e provenientes extrapolações científicas. Outras teorias pululavam à época (idealismo, ceticismo, etc.) mas foi dentro do debate entre estas, racionalismo e empirismo, que o pensamento kantiano floresceu.

Imagem criada pelo autor (2023)

Enquanto pelo racionalismo o conhecimento só é alcançado por meio de um processo racional e inteligível, o empirismo entendia que o conhecimento é obtido primeiramente pelos sentidos e pela experiência. Ambas as correntes tinham fortes defensores, sendo o debate entre as teorias visto em contraposição. Então modela seu pensamento de forma a reconhecer ambas as teorias do conhecimento por meio de um novo método, no chamado criticismo. “Mas que tesouro é esse, pode-se perguntar, que contamos deixar à posteridade com essa metafísica purificada pela Crítica [...]”? (KANT, 2015, p.33).

A teoria de Kant entra então com a tentativa de reconciliar as duas anteriores, pois, segundo ele, o conhecimento resulta da junção das duas faculdades, sensibilidade e entendimento, para então constituir o sujeito do conhecimento. Sua síntese é particularmente notável, assim como sua postura crítica em relação à razão humana. 

Destas inferências, passa então a postular sobre a distinção entre o conhecimento a priori, que é independente da experiência, e a posteriori, que depende da experiência, argumentando que certos conhecimentos são independentes da experiência e são fundamentais para qualquer forma de conhecimento. Ele também distingue entre o fenômeno, que é o que aparece aos sentidos, e o “noumeno”, que é o que existe em si mesmo, mas que não podemos conhecer.

Kant afirma que a razão pura pode conhecer apenas os fenômenos, mas não os noumenos. Ele também mostra que existem certas ideias que a razão pura tenta alcançar, mas que são inacessíveis, como Deus, a alma e o mundo. Essas ideias são chamadas de antinomias, pois geram contradições lógicas. Kant propõe então uma solução para essas antinomias, que é a crítica, ou seja, a análise dos princípios e dos limites da razão pura. 

O filosofo também traz, para compor seu entendimento, a distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos. Juízos analíticos são aqueles em que a verdade é determinada por definição e relação interna de conceitos, enquanto juízos sintéticos são aqueles em que a verdade requer a verificação na experiência ou acrescenta conhecimento novo além da análise conceitual. Destas premissas, elabora um terceiro juízo, referencial de sua obra, introduzindo a noção de "juízos sintéticos a priori", que são juízos que adicionam conhecimento novo e não derivado da análise de conceitos, mas que também não dependem da experiência sensorial. Isso desafia a dicotomia tradicional entre juízos analíticos e sintéticos, pois sugere que é possível ter conhecimento a priori que não é meramente analítico. 

De tudo que estuda e percebe, Kant formula três questões que norteiam sua metodologia em três questões fundamentais para a sua filosofia: o que posso saber, o que devo fazer e o que é permitido esperar. A primeira questão se refere ao campo do conhecimento e da razão. Kant se interessou em investigar quais são as fontes, as formas e os limites do conhecimento humano. Ele analisou como a sensibilidade e o entendimento contribuem para a construção do conhecimento, e quais são as condições e os obstáculos para o conhecimento a priori e a posteriori. A segunda questão se refere ao campo da moral e da ação. Kant se preocupou em estabelecer quais são as regras, os motivos e os fins da ação moral. Ele elaborou uma ética baseada no dever, na razão e na universalidade, e propôs o imperativo categórico como o princípio supremo da moralidade. A terceira questão se refere ao campo da fé e da esperança. Kant se ocupou em examinar quais são as bases, as implicações e as justificativas das crenças religiosas e metafísicas. Ele discutiu temas como a existência de Deus, a imortalidade da alma e a liberdade da vontade, e defendeu que essas crenças são necessárias para a moralidade, mas não podem ser provadas pela razão pura.

Daqui discorro mais uma vez sobre o brilhantismo do autor; mesmo vivendo numa época de despertar iluminista, e ainda sendo Cristão, não se opôs a existência de Deus, emitindo sobre Ele uma visão complexa e única, refletindo suas ideias sobre a metafísica, a moralidade e a limitação do conhecimento humano. Ele argumenta que a existência de Deus não pode ser provada através da razão pura, ou seja, por meio de argumentos puramente teóricos e lógicos, mas sobretudo não negou tal existência. Ele sustenta que Deus não é um objeto de experiência sensível e, portanto, não pode ser conhecido empiricamente. Kant identifica Deus como um conceito necessário para a moralidade, uma "ideia regulativa" que orienta a nossa conduta moral, mas que não pode ser provada empiricamente. Deus, para Kant, é uma ideia necessária para assegurar a harmonia entre a moralidade e a busca da felicidade.

Surpreendente é saber que, muitos anos depois, e extraindo-se daqui apenas as questões e razões de cunho personalíssimo sobre o divino, tais teorizações puderam se demonstrar prováveis com a ciência moderna. Claro que tais teorias não ficaram imaculadas, pois a ciência moderna contraria alguns dos seus pressupostos fundamentais. Mas o entendimento kantiano demonstrava já, naqueles idos anos, que existe um mundo que existe fora do nosso entendimento, mas não do nosso conhecimento. A implicação se destaca no debate acerca do foi proposto acima. Objetos absolutos, aqui refletindo no conceito de Deus, não são dados no espaço e no tempo. Temos também que a física moderna mostrou que o universo foi criado e junto com ele o espaço e o tempo. Ora, se foi criado, respeitando-se o princípio da causalidade, algo deu causa a este mesmo universo, o gerando... demonstrando serem estas causas os efeitos de algo mais além. Logo, fica definido que o princípio criador, seja ele como e qual for, está para além do espaço e do tempo. Pela teoria, isto precisa ser respeitado, e nominado, ainda que não tenha como ser experimentado. Pergunto a mim mesmo o que suponho que Kant tenha se perguntado: será que aí que mora o Absoluto?

Referências:

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 4.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. p.17-68

Revista Mente, Cérebro e Filosofia Kant-Hegel v. 3, jan 2005, p. 1-17. 

DUKA, Marilia. Criticismo. Todo Estudo. Disponível em: https://www.todoestudo.com.br/filosofia/criticismo. Acesso em: 28 de agosto de 2023. 

#04 Filosofia Moderna – Kant e um novo olhar sobre o real. Filosocast. Pablo Duarte. 2022. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/3OdvMwuQ5z8e0kqPa8ISLg?si=7a1df4a8cf2c4ddb. Acesso em: 28 de agosto de 2023. 


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