Fenomenologia parte 2: Ce n'est pas un rouge à lèvres: Gênero e Fenomenologia

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Mestrado Acadêmico Maria Eduarda Dias.

     O objetivo deste paper é apresentar considerações, apontamentos e principalmente reflexões acerca da questão de gênero, numa perspectiva social fenomenológica.
    Para a fenomenologia, diferente do que defende a corrente positivista, a consciência pessoal também constitui e percebe a realidade no estudo das Ciências Sociais. Neste caso, cabe primeiro a consciência individual interpretar os objetos que nos rodeiam. Quando se trata da questão do gênero, os objetos definidos como “femininos” ou “masculinos” se dividem e se propagam no consciente coletivo da sociedade. A “corrente da consciência” (Schütz, 1979, p.60) transforma o significado dos objetos. Toda a construção de gênero é algo que se inicia no consciente e transcende o real.
É claro que biologicamente, homens e mulheres possuem suas particularidades, mas a interpretação que é dada às cores rosa e azul (Figura 1) por exemplo, foi estabelecida pelo consciente coletivo. Para a fenomenologia, provar empiricamente que tal objeto consiste num simples batom - noema, o objeto em si (Figura 2), não é suficiente quando inserido na questão do gênero. Neste caso, o objeto adquire outros significados - noesis, as percepções sobre o objeto.

     Descartes e Kant já haviam trazido, antes de Husserl, a concepção das capacidades cognitivas e de reflexão, mas referindo-se apenas ao noema, o objeto real. Na fenomenologia, o caráter transcendental do ator de pensar também é abordado. A concepção de gênero, quando discutida no campo das Ciências Sociais, é um fenômeno que foi construído, e muitas vezes se modifica ao interagir com outros temas. Quando Latour (1994) utiliza a expressão “Fio de Ariadne” para discutir a conexão entre diferentes temas que se afetam mutuamente, também podemos encaixá-lo na questão de gênero, visto que se relaciona com outros campos de discussão, tais como sexualidade, preconceito, equiparação salarial, violência, participação política, etc. A fenomenologia traz a percepção consciente desses fenômenos interrelacionados, ou seja, o que é construído na consciência humana e o significado que damos a objetos e eventos de acordo com a nossa inserção em um espaço-tempo específico existem, se transformam e por muitas vezes interagem entre si.
    A temporalidade (Schutz,1979) afeta diretamente a trajetória do fenômeno do gênero. Por exemplo, em alguns países, as mulheres não podiam usar calças até o início do século XX, mas atualmente isso é comum. A questão do espaço em que o indivíduo se insere também afeta a construção de gênero, haja vista que a trajetória dessa discussão no Ocidente e no Oriente é muito diferente, devido às particularidades de cada cultura. Toda a história da construção de gênero é constituída de fases, que compõem atos de atenção (Schutz, 1979, p.63), momentos que ficaram no passado e se tornaram experiências vividas, como o Sufrágio Feminino. Hoje, tal direito foi conquistado em muitos países e se tornou um momento da história do caráter prático da construção de gênero na sociedade, que é (Schutz, 1979, p.75)
     a) incoerente: os interesses da sociedade mudam continuamente, e provocam transformações relevantes para o debate sobre gênero. Eventos vão ocorrendo e modificando constantemente o plano pré concebido sobre essa questão. Alguns símbolos da representatividade feminina, como Frida Kahlo na pintura, Bette Davis no cinema e Virgínia Woolf na literatura, demoliram toda uma concepção de gênero que fora pré-estabelecida antes de suas contribuições.
        b) apenas parcialmente clara: o ser humano tem uma certa resistência em saber as origens de um fenômeno, como ele se criou, quando e por quê. Não é a toa que obras que tratam de gênero, como o documentário “O corpo das mulheres”, que traz uma reflexão sobre a objetificação da mulher na mídia, ou o livro “Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir, geralmente são consideradas polêmicas.
       c) não está livre de contradições: resgatando novamente o “Fio de Ariadne”, o ser humano possui diversas opiniões sobre diferentes temas, de acordo com a sua relevância. A opinião individual que se tem sobre gênero pode - ou não - seguir um caminho lógico quando comparado à outros temas Por exemplo, nada impede um militante do movimento anti-racismo de ser machista.
     Mesmo ao se conectar com outros temas, a questão de gênero mantém suas particularidades. Ela pode ser considerada, quando observada pela metodologia fenomenológica, como um fenômeno social histórico que se manifesta de maneiras diferentes em cada cultura. Explicações biológicas não são suficientes para explicar todo o seu fenômeno, os sentimentos pessoais são relevantes. As experiências vividas por homens e mulheres são diferentes, dependendo da inserção temporal e espacial de cada indivíduo em uma determinada sociedade, e são elas - as experiências - que formam a estrutura desse fenômeno. No conto “A Mensagem”, de Clarice Lispector, é discutida através de metáforas a separação que existe entre os universos “masculinos” e “femininos”. Um garoto e uma garota, ao se tornarem amigos, começam a perceber que suas diferenças não se limitam ao seu sexo biológico, mas a questões maiores. O rapaz, ao tentar manter essa amizade, passa a tratar a amiga como um “camarada”. A hierarquização histórica do gênero, que “situa os homens numa posição de poder” (KUHNEN, 2014, p.02), pode ter sido o causador desse comportamento. Porém, a garota não se sente confortável com esse tratamento, ou, “(...)sobretudo a moça já começara a não sentir prazer em ser condecorada com o título de homem ao menor sinal que apresentava de… de ser uma pessoa.” [LISPECTOR, 1998, p.122].
Por causa do desejo que a moça apresenta de ser, antes de tudo, tratada como uma pessoa, os dois amigos falham ao se adaptar a esse sistema e acabam se separando. A separação dos dois ocorre em frente a uma casa, que pode ser interpretada como uma metáfora do fenômeno em si. A autora descreve a casa como alta, gasta e pesada; uma casa angustiada. Sua aparência levanta questionamentos:
“A casa era angústia e calma. Como palavra nenhuma o fora. Era uma construção que pesava no peito dos dois. Um sobrado como quem leva a mão à garganta. Quem? quem a construíra, levantando aquela feiura pedra por pedra, aquela catedral do medo solidificado? Ou fora o tempo que se colara em paredes simples e lhes dera aquele ar de estrangulamento, aquele silêncio de enforcado tranquilo?” [LISPECTOR, 1998, p.128-129]
     A pergunta “Quem?”, neste caso, traz uma inquietação: como esse fenômeno se originou, como se formou, quem o impôs? Seguindo a perspectiva fenomenológica, não há apenas um culpado. A separação dos universos “masculinos” e “femininos” se criaram conforme o tempo, e foram afetado por diversos fatores, construídos de maneira relativa em cada sociedade, em cada multiverso, com elementos considerados reais e não reais, mas que existem da sua maneira.
   Buscou-se neste ensaio, através de exemplos e imagens, provocar a reflexão sobre o fenômeno social do gênero que, apesar de influenciado por questões biológicas (mundo real), não se limita a elas. A Ciência Moderna, ao tentar demarcar aquilo que é, e que não é Ciência (Demo, 1985) foi incapaz de frear a metamorfose dos fenômenos, o “agora assim” e “agora assim” da temporalidade, o ato de “sentir o pensar” (Schutz, 1979). É como disse Virginia Woolf, no livro “Um Teto Todo Seu”: “Não há barreira, fechadura ou ferrolho que possas impor à liberdade da minha mente”. 

REFERÊNCIAS

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
KUHNEN, T. A. A ética do cuidado como teoria feminista. Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas, Universidade Estadual de Londrina, maio de 2014.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LISPECTOR, C. A Mensagem. In Felicidade Clandestina. Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1998, 1º ed. 120p.-136p.
SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 
SCHUTZ, A. Don Quixote e o Problema da Realidade In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SOCIEDADE DOS ILUSTRADORES DO BRASIL. Seleção Batom, Lápis e TPM 2015. Disponível em: <http://sib.org.br/sib-news/selecao-batom-lapis-tpm-2015/> Acesso em: 24/04/2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário