Fenomenologia parte 1: A Fenomenologia de Husserl e Schütz

     Nesta semana o Kritiké traz dois papers que trabalharam sobre diferentes enfoques a corrente da Fenomenologia. O primeiro é do Doutorando Anderson Luís que discutiu apontamentos sobre como a fenomenologia pode ser utilizada na Administração. O segundo é da mestranda Maria Eduarda que discutiu a questão do gênero numa perspectiva social fenomenológica. Boa leitura!

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Doutorado Anderson Luís do Espírito Santo.

     Em “Ideia da Fenomenologia (Cinco Lições)”, Edmund Husserl (1859-1938) vai apresentar a sua obra máxima que foi responsável pela disseminação, desdobramentos e demais argumentações acerca da Fenomenologia. Do grego phainomenon + logos (fenômeno + estudo), esta filosofia busca investigar o fenômeno, a essência, sendo que, essência não é entendida aqui como uma forma pura. Para Husserl essência é tudo aquilo que é retido no intencional. Fenomenologia significa discurso sobre aquilo que se mostra como é. Daí a ênfase no sujeito e a preocupação em identificar os objetos da consciência.
   O positivismo idealizado por Augusto Comte tem sua lógica de compreensão do fenômeno totalmente ao contrário. Sua ênfase está no objeto e busca compreender as condições imutáveis da sociedade (ordem) e as leis que conduzem o seu desenvolvimento (progresso). Para o positivismo a demonstração é um fator importante e o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro, daí a se dedicar a “experiência” pura, tal qual pregada pelo empirismo. O positivismo refuta qualquer tipo de crendices, influências religiosas e a metafísica. Dedica-se a observações empíricas. Outra corrente filosófica que vale ser citada é o utilitarismo, que discute o princípio da utilidade, proposto por Jeremy Bentham e desenvolvido amplamente por Stuart Mill. Bentham apresenta a importância de se compreender a dor e o prazer e como estas influenciarão as racionalidades dos indivíduos (a busca da felicidade através da razão e da lei).
    Ora, se este ensaio é sobre fenomenologia, por que falar em positivismo e utilitarismo? Ocorre que tanto o positivismo quanto o utilitarismo são duas correntes teóricas que influenciaram, intensamente, o desenvolvimento do ensino e da pesquisa no campo da Administração – e ainda se fazem presente. O positivismo surgiu pregando que era o verdadeiro progresso das ciências com ênfase na experiência e nos fatos para propor um conhecimento por meio do rigor científico. Esta corrente bebe do empirismo e influenciará o utilitarismo inglês. Ademais delineou na Administração o desenvolvimento de uma ciência que busca a demonstração rigorosa dos fatos observáveis com ênfase na racionalidade e munida de inúmeros modelos organizacionais. “Se esta é a nossa origem como você ousa escorregar e entrar no riacho inverossímil chamado fenomenologia? ”, disse um avaliador durante minha qualificação no mestrado". 
     No mestrado a minha organização em estudo foram as feiras livres e me propus a analisar o possível fechamento destas feiras (8 no total) na fronteira Brasil-Bolívia. Para tanto, a partir da fala dos sujeitos, foram evidenciados os fenômenos, as imagens, fantasias, ritos, emoções e a consciência das pessoas sobre o possível fechamento. “Sou a feirante mais antiga e a única aqui da minha época que ainda atua na feira [...] se eu parar de trabalhar eu morro. E se a prefeitura fechar a feira como tão falando, também morro” (Entrevistada, 84 anos, feirante há 50 anos na região). A partir das falas dos inúmeros sujeitos (numa bola de neve que chegou a 285 entrevistas) a dissertação foi delineada. Diversas citações tiveram que ser retiradas por decisão da banca, afinal espera-se de um administrador um trabalho dedutivo, preciso, buscando a causa-efeito e que apresente sua pesquisa com viabilidade-confiabilidade (positivista). É preciso inferir uma lei geral a partir dos casos observados e não apresentar um trabalho por meio da indução, reflexivo, analítico, através da interpretação da realidade do senso comum (fenomenologia) (SCHÜTZ, 2002). Tais afirmativas exemplificam algumas falas do que foi me dito na qualificação e, hoje, eu não acredito e nem concordo com elas. Por fim, acabou que, na escrita - no papel, a fenomenologia foi retirada da dissertação - desapareceu. Contudo, na essência, ela esteve presente nas 170 páginas da dissertação pois, naquele momento, foi impossível não vivenciar os pressupostos da fenomenologia (apresentados a seguir). Este ensaio poderia ter o título fantasioso de “Xii... de repente eu fiz fenomenologia!”. Por esse motivo, o meu argumento será: desmitificação da fenomenologia e sua importância para a Administração. Trata-se de uma interessante aproximação entre a Administração (majoritariamente positivista) e a fenomenologia (estudo do fenômeno).
     Anterior a Husserl, alguns autores notórios já haviam empregado o termo fenomenologia em seus estudos, a destacar Kant. Contudo foi com Husserl que, na virada do século, o termo ganhou expressividade. Naquele momento o autor criticou a psicologia experimental (na lógica) que possuía sua ênfase no emocional humano, em detrimento da consciência racional para propor o pensamento puro. Para o autor, a empiria é instável e superficial, por isso, não fornece o rigor científico necessário para uma profunda investigação filosófica. Assim, Husserl dedica-se a criar uma epistemologia que fornece para a filosofia a ciência e o rigor (sua influência da lógica). Para ele, o método fenomenológico atenderia esse pressuposto por ser um método crítico do conhecimento, uma doutrina universal das essências que se integra a ciência da essência do conhecimento. Considera, num primeiro grau, o pensamento, a imaginação e a reflexão (HUSSERL, 2008; BOAVA e MACEDO, 2011). Schütz (1979) afirma que os fenomenologistas desdenham todos os fatos empíricos e os métodos científicos, mais ou menos estabelecidos, para coletá-los e interpretá-los. Recomeçam a pesquisa repetidas vezes. Buscam seu lugar entre o realismo e o idealismo. O argumento principal de Husserl (2008) é apresentar um método de investigação que tenha o objetivo de apreender o fenômeno através da consciência. Para conseguir tal façanha, Husserl apresenta a redução fenomenológica.  
     A redução fenomenológica Epoché (suspensão do juízo) “proporciona o acesso ao modo transcendental; possibilita o retorno a consciência. Vemos nela como é que os objetos se constituem” (HUSSERL, 2008, p.10). “Trata-se de suspender momentaneamente o juízo sobre a existência ou não existência do fenômeno para verificação desse fenômeno numa nova perspectiva” (BOAVA e MACEDO, 2011, p.6). Na fenomenologia o foco é o sujeito, logo, a redução faz-se necessária para se evidenciar os sentidos que são percebidos e como este é transmitido a consciência. Para tanto, na redução fenomenológica, suspendemos nossos julgamentos e crenças na tradição da ciência (temporariamente) e buscamos captar os fenômenos – as experiências de vida dos seres humanos, observando de uma nova forma.  Alegria, medo, ilusão, felicidade, realidade – tudo que é possível aparecer na consciência e trazido à luz. Assim, a máxima da fenomenologia é voltar as próprias coisas. Os fenômenos captados da consciência exteriorizam as experiências, a verdade, o como as coisas são feitas. Na fenomenologia não há pressuposições, parte-se do zero e a ênfase é centrada no sujeito (HUSSERL, 2008; BOAVA e MACEDO, 2011).
     Mas o que é o fenômeno para a fenomenologia? A partir das leituras de Husserl (2008), Schütz (1979), Ales Bello (2006), Boava e Macedo (2011) e Souza e Guedes (2011) compreende-se que o fenômeno é tudo aquilo que possui vivência – o aparecer e o que aparece. A vivência de um eu é identificada em diversos tipos de dados, não só os genuínos, mas também os intencionais e, ou, falaciosos, que podem ser evidenciados nas vivências. Logo a fenomenologia é a ciência dos fenômenos cognoscitivos – manifestações de atos da consciência. Já o fenômeno é aquilo que se mostra, aparece ou parece. “Tomemos a fenomenologia como reflexão do fenômeno ou sobre aquilo que se mostra. Nosso problema é: o que é que se mostra e como se mostra” (ALES BELLO, 2006, p.18).
     Outros pontos da fenomenologia merecem destaques e maior aprofundamento, contudo, findarei com a intencionalidade. Husserl (2008) apresenta que uma das principais características da consciência é a intencionalidade. Todo ato é intencional, logo a consciência intencional retrata as aparências e a experiência humana. “Toda consciência é consciência de algo” (HUSSERL, 2008). Assim, o conceito de intencionalidade de Husserl diz que a consciência está orientada para algo, ou possui consciência de um determinado objeto. Dessa forma, surgem dois outros conceitos: imanente (o que eu vejo desse objeto – exemplo, a fachada de uma organização) e o transcendente (a objetivação pessoal sobre o objeto analisado, no meu exemplo, como eu vejo determinada organização – a imagem que eu crio em meu consciente). Segundo Husserl a transformação do imanente em transcendente é chamado de análise intencional. (HUSSERL, 2008; SOUZA e GUEDES, 2011).
    Partindo dessa apresentação, sobre os principais pontos da fenomenologia, apresenta-se sua aplicação na Administração. Em uma simples busca com os termos "administração" and "fenomenologia", obteve-se 163 artigos, desde 1997 (data do primeiro artigo) até 2018. Analisando os 20 artigos mais citados, a maior parte dedica-se a apresentar a fenomenologia como uma estratégia de pesquisa para a Administração. Ou seja, apresenta-se como artigo teórico. Apenas 2% utilizaram a fenomenologia na prática, como é o caso do artigo “Relações de Gênero e Subjetividade na Mineração: um estudo a partir da Fenomenologia Social”, de Oliveira et. al (2012) publicado na RAC: Revista de Administração Contemporânea, que buscou analisar o processo de relações de gênero no contexto organizacional de uma empresa de mineração. Com ênfase na subjetividade e nos estudos de Schütz, o artigo defende o uso exclusivo da fenomenologia na pesquisa social sobre gênero e pode servir como referência para futuras investigações
     Apresentado os principais pressupostos que desmitificam a fenomenologia e balizam sua utilização na Administração, vou brevemente relatar como eu procedi na elaboração da dissertação, involuntariamente eu confesso, que acabou me levando a fenomenologia. O caminho básico que eu percorri foi compreender como os sujeitos buscam sentido para o fenômeno (redução Eidética) e como é o sujeito que busca sentido (redução Transcendental). No primeiro caso o sujeito percebe o sentido das coisas ora imediatamente, ora com dificuldade de perceber. No meu caso uma grande parte dos sujeitos (feirantes e consumidores) percebiam o impacto que o fechamento das feiras trariam para a economia e para a cultura local - de forma imediata. Contudo, haviam entrevistados que não identificavam esse sentido tão facilmente, a destacar, a Associação Comercial, que pensava apenas no viés econômico.
     No intuito de entender o sentido das coisas, a essência, foi realizado uma pesquisa historiográfica, em jornais locais a partir da década de 50, que mostravam que historicamente, a cidade apresentou inúmeras vezes a abertura e o fechamento abrupto de diversas feiras. Contudo, as pessoas voltam a se rearranjar e a formar novas feiras. Essa pesquisa histórica foi realizada devido aos relatos dos próprios entrevistados que sinalizaram experiências de ódio, dor e de alegrias sobre toda a história da feira. Uma entrevistada de 37 anos, filha de feirantes, atual esposa de feirante e ex-participante da Feira Bras-Bol (uma espécie de camelódromo fechada em 2013, por cunho político, mas justificada devido ao incêndio da Boate Kiss), relatou: “Chegaram e acabaram com a feirinha (Bras-Bol) [...] também somos brasileiros. Somos filho desse país [...] vamos viver do que? Muitos estavam com raiva do prefeito e outros simplesmente estão correndo atrás de um novo espaço para trabalhar. É muito mais que dinheiro, tem tradição”. A redução eidética permite compreender, rapidamente, o problema econômico que tal fechamento proporcionou a todos os moradores, desde o cliente que não terá mais este canal para fazer suas compras, até o feirante que não terá trabalho. Porém, além da visão física do evento, temos a intuitiva, o ódio, o desespero e a preocupação que o fechamento trouxe. É nesse segundo ponto que a construção da dissertação foi centrada: em compreender o sentido das coisas. O sentido de ser fronteiriço; o sentido de ser feirante; a representação da feira para a sociedade.
     Após o fechamento da primeira feira (BRAS-BOL), a prefeitura nunca soltou uma nota oficial sobre querer, ou não, fechar as feiras livres. Contudo, como isto já era um fenômeno sentido pelos feirantes mais antigos e recorrente na história da cidade, a notícia passou a ser considerada como real (SCHÜTZ, 2002). Podemos fazer aqui uma alusão ao texto “Dom Quixote e o problema da realidade”, quando Schütz afirma que dentro de um espaço, tempo e causalidade ocorrerá o desenvolvimento de uma ação. Nos jogos, no faz de conta e no vamos fingir, um observador, assumindo papel de cientista, poderá interpretar que tudo o que está sendo dito é verdadeiro (redução fenomenológica), visto que, para os sujeitos, é assim que as coisas lhe parecem. Como sendo reais e passíveis de acontecer. Não é plausível subestimar o consciente dos entrevistados, pois, entre o sonho (o feirante em busca de melhores condições de vida) e a fantasia (o Brasil é visto como o local para realizar esse sonho) existem inúmeros subuniversos que aqui fazem fronteira com a realidade. São as ações introjetadas no consciente dos sujeitos que evidenciam sua ação, sua realidade. Logo, nós, enquanto pesquisadores, temos que ter a capacidade de interpretar a realidade do senso comum da vida cotidiana, pois, esta delineará a ação presente e futura. 
     E como acabou a dissertação? A aprovação unânime se fez presente mesmo frente a ausência de se assumir a postura fenomenológica (por escrita) na dissertação. A plateia era grande (cerca de 30 pessoas) e muitos (moradores locais frequentadores das feiras) já estavam fervorosos com os comentários de um outro avaliador. Essa observação realizada por mim, lá do palco, em um momento epifânio, só destaca a importância da fenomenologia em interpretar a realidade do senso comum (SCHÜTZ, 2002). Por tudo isso devemos desmitificar a fenomenologia como uma ciência irrelevante, sem rigor, baseada em senso comum. Ela pode se apresentar como de grande importância para a Administração. Ah... as feiras seguem firmes em suas dinâmicas territoriais.

QUESTIONAMENTOS:
1) Qual a importância da fenomenologia para a Administração?
2) O que é o fenômeno para a fenomenologia?
3) Quais os principais empregos da fenomenologia na Administração no Brasil?

REFERÊNCIAS
ALES BELLO, A. Introdução à fenomenologia. Bauru, SP : Eduse, 2006 
BOAVA, D. L. T.; MACEDO, F. M. F. Contribuições da fenomenologia para os estudos organizacionais. CADERNOS EBAPE.BR, v. 9, Edição Especial, artigo 2, Rio de Janeiro, jul. 2011
ESPIRITO SANTO, A. L. A comercialização de produtos agrícolas em Corumbá-MS: propostas para o fortalecimento da agricultura familiar e da feira livre. (Dissertação de Mestrado). UFMS. Mestrado em Estudos Fronteiriços, Corumbá, 2015.
HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008. Trechos selecionados.
SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
SCHUTZ, A. Don Quixote e o Problema da Realidade In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SOUZA, M. S. V. B.; GUEDES, G. G. A fenomenologia como método de pesquisa em Administração. Universitas Gestão e TI, v. 2, n. 1, p. 47-58, jan./jun. 2012                                            

Nenhum comentário:

Postar um comentário