Desvendando a indução em Karl Popper, Sherlock Holmes e no peru de Russell


       Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Bruno Castro

     Arthur Conan Doyle, autor das crônicas de Sherlock Holmes distribuídas ao longo de dezenas de obras amplamente difundidas mundo afora, jamais escreveu o bordão “Elementar, meu caro Watson”, que comumente a ele se atribui. Conforme Pigliucci (2003), a frase foi introduzida nas primeiras representações teatrais do detetive ficcional, com o consentimento de Doyle.
     Este esclarecimento presta importante papel na introdução do presente short paper, pois a primeira hipótese que se desenvolverá aqui toma como pedra de toque a suposição de que o raciocínio de Sherlock Holmes era dedutivo – o que parece estar introjetado no senso comum e explicitado pelo bordão que se acabou de desmistificar.
     O que se deseja provar, primeiramente, é que tal suposição está 
Figura 1: Representação típica do
detetive Sherlock Holmes
incorreta, ainda que na própria obra de Doyle leia-se que o detetive deduzia fatos a partir das evidências que encontrava. O que o detetive fazia, de fato, era aquilo que epistemologicamente se pode tratar como indução.
  Apoiando-se novamente em Pigliucci (2003), cujo raciocínio se descreverá a seguir, e em Popper (1979), nota-se a diferença entre dedução e indução, a qual não só sustenta a defesa da hipótese proposta, como se presta a um importante esclarecimento para qualquer pesquisador interessado em aprimorar seu pensamento crítico e assumir postura metaforicamente semelhante à do detetive, como ilustrado na Figura 1.
    A dedução é uma forma de raciocínio na qual se parte de premissas gerais para, então, aportar em asserções específicas. Foi Aristóteles quem primeiro descreveu, na filosofia ocidental, uma das variedades desse procedimento, o silogismo. Partindo, por exemplo, das duas premissas: “Todos os homens são mortais” e “Sócrates é um homem”, a dedução a que se chega é que “Sócrates é mortal”.
Não é difícil extrapolar o mecanismo com que se elaborou o encadeamento acima para campos tão diversos quanto a metafísica ou a matemática, em que a dedução se prova útil para que, baseando-se em teorias científicas gerais, se consiga formular previsões.
Convém ressaltar, contudo, que embora a dedução seja conservadora da verdade, ela não pode oferecer nada mais do que a verdade já conhecida, ou seja, não se trata de método ampliativo. Afinal, é fato que, atendendo às condições de que: a) as premissas sejam verdadeiras e b) a sequência dedutiva esteja formalmente correta, a conclusão é garantida como verdadeira. Logo, a verdade das premissas é conservada.
Em suma, o raciocínio dedutivo não aumenta o conhecimento que se tem do mundo; outrossim, ele se resume a simplificar explicitamente o que já está contido nas premissas. Ora, fica nítido, assim, que a dedução não serviria como ferramenta de resolução de crimes para Sherlock Holmes.
Acontece com o cientista, em seu labor de buscar explicações para os fenômenos pesquisados, algo semelhante às situações descritas anteriormente. Em vez de empregar a dedução, ele recorre a um tipo diferente de raciocínio: a indução. Este, a propósito, é o modus operandi que se pode identificar no raciocínio de Sherlock Holmes, estando comprovada, portanto, a hipótese previamente levantada. Convém, agora, contextualizar este achado, tal qual se procederá nos parágrafos seguintes.
Contrariamente à dedução, a indução parte de fatos particulares para chegar a enunciados gerais. Mas há um ponto a se considerar: nem sempre a indução preserva a verdade, pois requer a elaboração de generalizações a partir de detalhes específicos e, com isso, pode-se chegar a resultados falsos.
O peru indutivo de Russell em quadrinhos | Fonte Google Imagens
     Seguindo o mesmo raciocínio, Bertrand Russell, citado por Pigliucci (2003), propõe a parábola do “peru indutivista”, que aqui se ilustra com a Figura 2. Ele explica que tal animal seria levado a uma fazenda e alimentado regularmente todas as manhãs, no mesmo horário. Logo, como indutivista, o peru se dá conta de que precisa de uma amostra considerável de dados para concluir o que será de seu futuro. Passados 364 dias, chega à conclusão de que continuará recebendo alimento todos os dias, no mesmo horário e com a mesma quantidade de comida. Mas, no dia seguinte, o fazendeiro abate o peru para servi-lo no Dia de Ação de Graças, comprovando definitivamente que a indução não preserva a verdade.
     A despeito dessa desvantagem, a indução é um componente essencial das investigações científicas. De fato, pode-se argumentar que mesmo o raciocínio dedutivo depende, em última instância, da indução: afinal, é preciso obter as premissas de algum lugar, e isso geralmente é feito por indução.
Retome-se, por exemplo, a premissa do exercício de lógica supracitado: se podemos estabelecer que “Sócrates é um homem” por observação direta, a premissa de que “todos os homens são mortais” não é o resultado da simples observação nem de uma inferência lógica. A crença de que todos os homens são mortais baseia-se unicamente no fato de que todos os homens de que se teve notícia até agora morreram. Porém, o que garante que esse raciocínio esteja tão errado quanto o do peru de Russell?
Uma possível saída para o impasse provém de Karl Popper (1979), que combateu o problema da indução afirmando que a ciência não procura provar teorias, mas refutá-las.
     Popper pondera que o princípio a ser inserido num debate indutivo precisa ser um enunciado sintético que admita logicamente uma negação e, portanto, seja passível de uma análise racional. Assim, o mecanismo pelo qual se redundaria em erro na parábola do peru de Russell esbarraria na possibilidade de negação; seria aberto, destarte, o atalho para que a verdade viesse à tona.
     Recorrendo à psicologia empírica, Popper descreve uma reconstrução racional que o cientista precisaria fazer a todo momento para não cair nas armadilhas da indução. Tal rotina seria, mantendo o paralelo com a ave russelliana, o procedimento segundo o qual o peru deveria reelaborar diariamente seu olhar diante do tratamento recebido. Supõe-se, num âmbito tão hipotético quanto o escopo deste trabalho permite, que tal peru supostamente adepto da reconstrução racional descobriria, em pouco tempo, a real motivação por trás da regularidade da alimentação a ele oferecida.
Identifica-se, portanto, que a indução é um procedimento relevante, embora admita margem para falhas, e que nela se encontra um ponto comum entre os assuntos aparentemente imiscíveis sobre os quais se discorreu aqui: Karl Popper, Sherlock Holmes e o peru de Russel.

Referências
DORTIER, J-F. Le cercle de Vienne et le nouvel sprit scientifique. In: Sciences Humaines, hors-série, septembre, 2000 (tradução livre) (2p).
PARSONS, T. Sugestões para um tratado sociológico da teoria das organizações In: ETZIONI, A. (org) Organizações Complexas. São Paulo, Atlas, 1967.
PIGLIUCCI, Massimo. Elementary, dear Watson (Thinking About Science). Skeptical Inquirer, v. 27, n. 3, p.18, 2003.
POPPER, K. A lógica da investigação científica. In: Karl Popper. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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