Drag Queen: um ser dialético

     Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Diego Fernandes Ungari

Não é de hoje que se discute a importância das contradições na construção social, Heráclito na antiguidade clássica já defendia que a luta dos contrários na natureza é necessária para se conservar a harmonia (FOLQUIÉ, 1949). Em contrapartida, existe uma infinidade de movimentos voltados a reprimir os diferentes, visando uma homogeneidade utópica em busca de uma sociedade ideal. Assim ocorreu na Alemanha de Hitler e ainda ocorre diariamente em muitos lugares com minorias que são marginalizadas por não se encaixarem no padrão socialmente construído. Entre essas minorias se encontram as Drag Queens, que podem ser caracterizadas como homens que utilizam roupas, consideradas tipicamente femininas, para performances artísticas e entretenimento (JESUS, 2012, p.10), e por trás de espetáculos cheios de brilho e alegria, há uma história de luta e resistência desses artistas que, direta ou indiretamente, contribuíram para uma mudança significativa na forma como a sociedade encara sua arte e, acima disso, contribuíram para que se passasse a ter mais respeito e tolerância. Assim, o argumento desse paper será discutir "um ser dialético", a partir da representação das drags queens.
Não é um absurdo pensar que em um ambiente conservador e em uma cultura majoritariamente patriarcal exista certa dificuldade em se entender a ideia de um homem que se veste de mulher. Se mesmo em um ambiente acadêmico, onde se vê a elite intelectual, existem conflitos para compreender ideias básica em razão de pensamentos arcaicos, por exemplo, que a ciência se transforma e se torna multidisciplinar - como traz Latour (1994) ao explicar a “proliferação dos híbridos” (LATOUR, 1994) – como se esperar que a sociedade compreenda algo que não lhes é (e nunca foi) habitual?
Por isso, indivíduos como as drag queens são uma representação real do pensamento dialético, que incita a necessidade de se provocar inquietações que abalem as estruturas sociais, pois desse modo é que se repensam e se desconstroem conceitos mumificados (GURVITCH, 1987), isto porque, por si esses artistas geram uma contradição, como indica a música Dona (2017) que narra parte da história da rapper brasileira e drag queen, Gloria Groove: “Ai meu Jesus / Que negócio é esse daí? / É mulher? / Que bicho que é?”. Esse trecho da canção representa um pensamento de grande parte das pessoas, que não compreendem e não buscam refletir sobre essa expressão artística, construindo pré-julgamentos e preconceitos com base em meras suposições ou divagações. 
Trecho do clipe Dona - Gloria Groove
     Como aponta Lefebvre (1983), “toda contradição admitida inconscientemente no pensamento, sem ser expressamente assinalada e refletida, introduz uma inconsequência, uma incoerência que apresenta o risco de destruir esse pensamento enquanto pensamento” (LEFEBVRE, 1983, p. 81). Portanto, ao se deparar com uma contradição, como no caso em questão representada pela figura da Drag Queen, o indivíduo que não busca assimilá-la e refletir sobre isso pode recair em uma concepção ideológica sem fundamentos, tornando seus pensamentos abstrações, como preconceitos, que não raramente se revertem em agressões físicas ou psicológicas, que por si são injustificáveis. Contudo, essas contradições acarretam, de algum modo, uma real mudança de pensamentos, basta refletir sobre a presença de drag queens na mídia. Há alguns anos era raro ver artistas desse nicho nos meios de comunicação, nomes como Rogéria - uma das primeiras artistas a ganharem fama como drag queen, ou transformista (termo mais comum em meados da década de 60, período de sua ascensão) - eram pouco mencionados e quando eram tendiam a ser estereotipados negativamente. A própria Rogéria utilizava um icônico e irônico bordão em que se dizia “a travesti da família brasileira”. 
     No entanto, atualmente vê-se artistas nacionais se destacando cada vez mais, como Pabllo Vittar, que entre outras conquistas foi incluída na Billboard, conceituada revista americana sobre música que elabora um ranking de artistas e músicas mais tocadas mundialmente; teve seu nome artístico incluído no Dicionário Cravo Albin de Música Popular Brasileira e fez parcerias com artistas internacionais. À primeira vista, podem parecer conquistas pouco relevantes, mas simbolizam claramente um rompimento de pensamentos antiquados e conservadores, uma vez que nenhum artista atinge e mantém sua fama sem um grande número de pessoas que o admire.  Nesse sentido, como aponta Foulquié (1949) ao citar Staline e Lenine, a dialética “é o estudo das contradições na própria essência das coisas” (FOULQUIÉ apud STALINE; LENINE, 1949) e o movimento drag representa isso.
     Conclui-se, por tudo isso, que a drag queen é um ser dialético por si. Tal qual preconizam os princípios do método dialético, a cultura drag é um fenômeno que não pode ser analisado de forma isolada, pois interfere é interferido por todo o contexto histórico-social, além disso conecta em si dois universos, o masculino e o feminino, que com isso provoca uma contradição que não excluí, mas ao contrário, inclui em um mesmo universo dois mundos comumente polarizados. A partir disso, constroem gradualmente um movimento de transformação e, como advogam os pensamentos de Marx e Hegel, “o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas acabadas, mas como um complexo de processos onde as coisas estáveis na aparência passam por uma mudança ininterrupta (...) onde finalmente acaba por se realizar um desenvolvimento progressivo” (FOULQUIÉ, 1949, p. 61). Assim, é fundamental que artistas como as Drag Queens, que apesar de se enquadrarem em uma minoria socialmente marginalizada, continuem e fortaleçam sua presença para que cada vez mais pessoas possam refletir sobre seus pensamentos e desconstruir alguns de tantos conceitos mumificados.
Referências
BORTOLOZZI, R.M. A Arte Transformista Brasileira: Rotas para uma genealogia decolonial. Quaderns de Psicologia: 2015, Vol. 17, n. 3, p. 123-134. Disponível em: https://doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1274. Acesso em: 01 mai 2018.
FOULQUIÉ, P. A dialética. Lisboa: Europa-América, 1978, p 42-66.
GURVITCH, G. Caracterização prévia da dialética. In: Dialética e sociologia. São Paulo: Vértice, 1987, p. 29-32.
JESUS, J. G. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília: Publicação em: abr. 2012. Disponível em: https://goo.gl/x5a2AB. Acesso em 01 mai 2018.
LATOUR, B. Jamais formos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LEPFEBVRE, H. Lógica Formal. Lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

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