Somos uma eterna hipótese

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de doutorado Gabriel Marmentini.

Me recordo que Comte entendia a metafísica como uma etapa na hierarquia das ciências. Sendo ela imperfeita, fora substituída pelo positivismo. Comte pode não gostar da metafísica, mas reconhece seu papel na evolução da ciência. Por outro lado, os filósofos e lógicos do Círculo de Viena foram contra qualquer concepção metafísica ou teológica, aproximando do positivismo o elemento da lógica, inspirados em Wittgenstein (DORTIER, 2000), o qual entendia o mundo como fatos e a perspectiva indutiva como o caminho para a universalização das verdades (WITTGENSTEIN, 1961). A busca por uma ciência unificada deu origem ao que chamamos de neopositivismo ou positivismo lógico. Nesta corrente, o que é verdadeiro é passível de verificação empírica, qualquer outra coisa seria apenas filosofia ou pseudoproblema. Importante frisar que isso vale para o conhecimento sintético, visto que o analítico (matemática e lógica) é explicado em si mesmo. 

Em outras palavras, o neopositivismo impõe um critério de verificabilidade à ciência que fortalece ainda mais o ideal de demarcação científica, separando o que é ou não ciência. Inspirado em Demo (1985), me posicionei, outrora, como um defensor das demarcações científicas, desde que funcionem como um elemento de legitimação das mais diversas formas do fazer ciência, e não por uma vertente binária, dogmática e reducionista sobre o que é ou deixa de ser ciência. No que tange a verificabilidade, não tenho nada contra. Quanto mais pudermos verificar, melhor. Não obstante, não tenho a concepção de que é necessário descartar tudo aquilo que não é verificável. Para mim, há espaço de sobra para que a metafísica, a teologia e a ciência coexistam. Além disso, mesmo que haja uma submissão rigorosa à verificação de uma determinada verdade, a mesma pode deixar de ser verdade em algum momento, visto que o mundo é processo e não produto. Nesta linha, emerge em meu texto Karl Popper que, assim como eu, foi crítico desta forma de pensar do Círculo de Viena.

Fonte: Pexels (2019).
Em minha análise, Popper, assim como Kant e Kuhn, representou um ponto de inflexão na teoria do conhecimento. Seu sistema filosófico, denominado racionalismo crítico, se baseia na ideia do conhecimento temporário, hipotético e refutável, além de contestar a lógica indutiva – defendendo o teste dedutivo das teorias – ao apresentar seus problemas (POPPER, 1979). Popper se aproxima mais da forma que eu vejo o mundo. Ele entende o erro como processo e motor para a evolução. Evidente que sua discussão gira em torno da ciência, mas eu a trago para a vida como um todo. Muito do que me faz ser quem sou hoje, tem relação com a minha capacidade de olhar constantemente para as minhas verdades e entendê-las como postulados em contínua transformação. O Gabriel que escreve este texto agora é melhor do que o Gabriel de três anos atrás. Não por ser mais velho, mas por ter visto em seus erros uma oportunidade de crescer e construir novas verdades. 

A capacidade – ou humildade – para contestar nossas verdades é um grande desafio, mas a hora que aprendemos, é um caminho sem volta. Nos transformamos em uma eterna hipótese e enxergamos a beleza por trás disso. Nesses três anos, eu não somente coloquei novos tijolos na construção que estou fazendo como quebrei alguns para dar lugar a outros. Esse foi o meu entendimento acerca da postura de falseabilidade que Popper espera da ciência (POPPER, 1979). Para ele, a correção desses erros identificados em um processo de falseabilidade levaria ao progresso científico. Eu já penso um pouco diferente, visto que ao buscar refutar uma determinada teoria, podemos acabar descobrindo outras, e que não necessariamente refutam a anterior, mas a complementam ou até nem se relacionam diretamente a ela. Ou seja, o foco não é simplesmente refutar tudo que fora concebido, mas serve como um estímulo para galgarmos uma expansão de conhecimento. Se pararmos pra pensar, a própria teoria de Popper sobre a falseabilidade deve ser passível de contestação. 

Por fim, há mais um elemento importante de pontuar nesta discussão: a quem cabe refutar as teorias ora estabelecidas? Somente aos cientistas? Isso nos remete às discussões do fazer ciência, das delimitações e dos modelos mentais relacionados aos cientistas de laboratório. Se Talcott Parsons estiver certo em sua ótica das partes (PARSONS, 1967) que compõem uma sociedade, cada qual com sua função, alguma parte há de ter tal incumbência. Embora eu acredite nesta visão da sociedade como um organismo vivo, onde as partes contribuem para a sobrevivência do todo, tendo a pensar que as funções sociais são difusas, sendo plausível que alguma parte tenha maior ou menor grau de responsabilidade, mas sendo difícil atribuir exclusividade. Em outras palavras, cabe a nós todos o fazer ciência e o refutar ciência.

Toda essa discussão me fez lembrar do uruguaio Eduardo Galeano, quando diz que a utopia serve para não deixarmos de caminhar. Portanto, pretendo continuar minha caminhada com a consciência de que nunca estarei pronto e de que tudo é transitório, estando sempre aberto às refutações. A ciência das verdades absolutas é uma utopia e a contínua refutação é o combustível que nos faz caminhar.

Referências:

DORTIER, J-F. Le cercle de Vienne et le nouvel sprit scientifique. In: Sciences Humaines, hors-série, septembre, 2000. (Tradução livre.) 
PARSONS, T. Sugestões para um tratado sociológico da teoria das organizações In: ETZIONI, A. (Org.) Organizações complexas. São Paulo: Atlas, 1967.
PEXELS. [Imagem de macaco.] Disponível em: <https://www.pexels.com/pt-br/foto/acreditar-animais-selvagens-animal-animal-selvagem-33535/>. Acesso em: 02/11/2019.
POPPER, K. A lógica da investigação científica. In: POPPER, K. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Editora da USP, 1961.

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