A construção do conhecimento sob a perspectiva da teoria do ator-rede

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico de mestrado Gabriel Estruzani Queiroz de Melo.

A teoria do ator-rede desenvolveu-se primeiro nos estudos da ciência e tecnologia, principalmente por Bruno Latour, Michel Callon e John Law, pretendendo ser uma alternativa às abordagens que enfocavam apenas o papel dos humanos ou apenas o dos objetos na compreensão do desenvolvimento e das mudanças tecnológicas. Ela defende que existem entidades que são formadas e adquirem seus atributos por meio do conjunto de relações que estabelecem com outras. A entidade, por sua vez, é resultado de uma estrutura hierárquica pré-estabelecida, do acesso a informações privilegiadas, do domínio sobre o que depende dela. Assim, uma entidade surge e se mantem à medida que as relações que a compõem permanecem inalteradas (ALCADIPANI; TURERA, 2009; LAW, 2004).

Uma de suas principias contribuições é um enfoque menos antropocêntrico dado à sociologia, ao considerar os elementos não-humanos como dotados de agência, influentes no cotidiano e não subservientes aos humanos. Se os humanos estabelecem uma rede social não é porque interagem apenas entre si, mas porque interagem com elementos não-humanos também. Máquinas, estruturas e instituições também formam o social (ALCADIPANI; TURETA, 2009; CAMPOS; PALMA, 2017; QUEIRÓZ, 2011). Isto posto o objetivo deste paper é discutir o processo de construção do conhecimento a partir da perspectiva da teoria do ator-rede. 

Latour (1994) defende que a pretensa modernidade, ao introduzir novos conhecimentos, funcionou com um mecanismo de exclusão: para apresentar novas ideias era necessário apagar aquelas que estavam associadas ao pensamento antes vigente. O conhecimento precisava, dessa forma, ser constantemente “purificado”, ficando sempre mais próximo da “verdade”, que seria una, ainda que provisória. Porém, o processo de construção e acumulação do conhecimento não se dá na forma preconizada pelos positivistas, uma linha reta temporal que sempre avança, a partir do último ponto de referência. Ele depende da biografia dos pesquisadores, bem como de suas intenções e anseios particulares ao fazer ciência, das interações que estes fazem com sua rede de relações e do contexto em que estão inseridos, além dos materiais que estão disponíveis para análise e coleta de informações pertinentes. (QUEIRÓZ, 2011).

Fonte: Guimaraes (2017).
A construção e sedimentação do conhecimento depende das redes relacionais que cada indivíduo mantém, dos coletivos a que pertence e dos materiais a sua disposição. Como aponta Sertillanges (1965), o cientista não pode ser isolado, seu trabalho não faz sentido se não for compartilhado e escrutinado por seus pares. Não há ciência sem grupos de estudo, instituições de ensino, mas também não há ciência sem os materiais necessários para sua execução, sejam esses laboratórios, salas de aula, utensílios para pesquisa de campo ou qualquer outro não-humano que se faça necessário ao pesquisador. O pesquisador sustenta seu estudo nas teorias e boas práticas científicas, mas também em sua bagagem vivencial e na possibilidade de deixar sua “marca”.

Outra necessidade fundamental no processo de construção do conhecimento, é que aquele que detém a posição hierárquica superior abra mão de seus privilégios e arrisque sua posição, seja transmitindo da melhor forma possível o conhecimento e conviver com a possibilidade de que aquele que aprende o supere em termos de acúmulo de saber, ou renunciando os pressupostos de sua teoria (ou teoria que defende) quando está já não se prova mais válida.

Na perspectiva da TAR, a disseminação do conhecimento só faz sentido se aquele que o recebe, mas que também o constrói, tiver a oportunidade de conectá-lo a sua realidade, não havendo uma metodologia única para sua absorção. Cada indivíduo, tributário de sua história e das redes que a compõem, deve encontrar sua própria maneira de fazer isso, a qual pode ser modificada, ao passo que redes e história não são estáveis, diferenciando cada vez mais sua própria metodologia. Esta necessidade de conexão faz com que não baste que um conhecimento seja cientificamente comprovado; ele não pode ser redundante para a realidade daquele que aprende e deve ecoar, de alguma forma, no seu cotidiano (ARENDT, 2004). 

Nesta perspectiva, Wenger (1988) defende que toda aprendizagem deve acontecer em comunidades, onde os objetivos são definidos e a participação dos indivíduos é reconhecida, dando-lhes sentido de pertencimento a uma determinada rede. Dentro destas comunidades de aprendizagem são desenvolvidos três elementos fundamentais: um significado, onde a atividade educacional fornece sentido – individual e coletivo – para a nossa existência no mundo; uma prática, que exprime a vivência partilhada de experiências e perspectivas e a qual permite “aprender fazendo”; e uma identidade, que surge pela forma como a aprendizagem transforma a biografia dos indivíduos inseridos nessa comunidade. 

Essas comunidades, além de existirem em substância, necessitam de uma materialidade, precisam se dar em espaços físicos, como a universidade ou grupos de estudo. Ou necessitam de elementos físicos para serem estabelecidas, como no caso de uma comunidade de aprendizado on-line que depende de computadores, redes de conexão, etc.  A proposição de Wenger (1988) ajusta-se à ideia sugerida pela Teoria do Ator-Rede de que um indivíduo desvinculado, sem senso de pertencimento ou com uma reduzida rede relacional, encontra-se em uma situação de empobrecimento. Neste contexto ele é alguém impedido de compartilhar o conhecimento que possui e de aperfeiçoá-lo através da troca. 

A Teoria do Ator-Rede, conforme exposta acima, é uma lente de análise útil para compreender de que o forma o conhecimento é construído e compartilhado, mas também de quais são as condições necessárias para que isso aconteça. A maior contribuição, talvez, resida na ideia da inseparabilidade dos pontos da rede e na relação de interdependência existente entre os elementos (sejam eles humanos ou não-humanos) que as compõe.

Referências:

ALCADIPANI, R.; TURETA, C. Teoria ator-rede e análise organizacional: contribuições e possibilidades de pesquisa no Brasil. Organizações & Sociedade, v. 16, n. 51, 2009, p. 647-664.
ARENDT, R. Psychology and the actor-network theory. Paper presented in the 4S & EASST Meeting, École des Mines de Paris, 2004.
CAMPOS, S. A. P. de; PALMA, L. C. Contribuições da teoria ator-rede para o estudo da sustentabilidade. Revista Metropolitana de Sustentabilidade, v. 7, n. 1, 2017, p. 47-67.
GUIMARÃES, V. [Imagem de figuras humanas em rede.] In: GUIMARÃES, Vanessa. O que podemos aprender com o conhecimento em rede? 24/10/2017. Disponível em: https://jornalistavanessaguimaraes.wordpress.com/2017/10/24/ conhecimento-em-rede/. Acesso em: 14/11/2019.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994
LAW, J. After method: mess in social science research. London: Routledge, 2004.
QUEIROZ, M. de F. A. et al. Discutindo a aprendizagem sob a perspectiva da teoria ator-rede. Educar em Revista, n. 39, 2011, p. 177-190.
SERTILLANGES, A-D. La vida intelectual: su espíritu, sus condiciones, su métodos. Barcelona: Editora Estela, 1965.
WENGER, E. Communities of practice: learning, meaning and identity. New York: Cambridge University Press, 1998, p. 12-15.

Nenhum comentário:

Postar um comentário