Filosofia da ciência, revolução científica e a Feira do Conhecimento Multidisciplinar do Centro Educacional Potencial de Campos Novos, SC

Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico de mestrado Flávio Nodari Monteiro.

“Ninguém tá escutando o que eu quero dizer!
Ninguém tá me dizendo o que eu quero escutar!
Ninguém tá explicando o que eu quero entender!
Ninguém tá entendendo o que eu quero explicar!”
“Tem alguém aí?” (Gabriel, O Pensador)

No sábado, dia 19 de outubro, o Centro Educacional Potencial, de Campos Novos (SC), realizou sua “Feira do Conhecimento Multidisciplinar”, envolvendo desde os alunos do ensino infantil aos alunos dos primeiros anos do ensino fundamental, em episódio que pode, de alguma forma, ser considerado uma manifestação tímida, porém real, da influência do pensamento complexo e de novos olhares para a educação e para a ciência. A expressão “multidisciplinar” no nome do evento sugere, desde o início, uma intimidade com a transdisciplinaridade preconizada como necessária e essencial por Morin (1991).

Nos diversos ambientes temáticos criados (“vida animal”, “reino das letras e da matemática”, etc.), que por sua vez eram divididos em seções internas, as educadoras fizeram questão de estabelecer conexão entre os vários elementos expostos, e destes com a realidade dos educandos. Muitas seções surgiram da demanda dos próprios alunos: os dinossauros, as abelhas, os objetos que se relacionam com certas letras, em que situações os números são normalmente usados etc. Desta forma, as múltiplas divisões e ambientes, por mais separadas que pudessem parecer, sempre se apresentavam como partes de um todo maior: a noção de “extinção”, por exemplo, estabeleceu conexão entre a seção da arara-azul, dos dinossauros, das abelhas, das tartarugas, dos animais ameaçados do pantanal e da caatinga.
Sebastian e Cecília, "monitores" da sessão dos dinossauros. Fonte: acervo do autor (19/10/2019).
Ao invés de separar, unir para discernir. A parte compreendida na sua relação com o todo que, por sua vez, transcende a noção de mera soma das partes. Os princípios sistêmico e hologramático de Morin (1991) pareciam se materializar. Sarah Yasmin, a jovem e encantadora cientista de não mais que dez anos, encarregada de explicar a seção dos pets, apresentava em um grande painel as fotos dos alunos da escola com seus bichinhos de estimação. A estima aos animais como elemento de ligação, de intersubjetividade entre os alunos de diferentes idades, origens e graus de conhecimento, fazia seus olhinhos brilharem. Tudo exposto no vocabulário dos próprios educandos, visivelmente enriquecido a partir do contato com os saberes específicos. Emocionava ver Arthur, também na faixa dos dez anos, explicando os biomas do Pantanal e da caatinga, com terminologia técnica precisa.

A incerteza, de maneira saudável, também faz parte do conhecimento que os educandos constroem. “O velociraptor pode, talvez, ter originado as galinhas e outras aves”, diz o pequeno Sebastian, de cinco anos, um dos “monitores” da seção dos dinossauros. “O trabalho com a  incerteza incita ao pensamento complexo”, lembra Morin (1991, p. 79). “‘Dinossauro’ quer dizer ‘lagartos terríveis’”, conta por sua vez a educanda Cecília, a outra “monitora” da seção, numa perspectiva de “conceito de manual”, rigorosa e cartesiana, feliz — como todos os demais monitores das outras seções — por, talvez, ter “feito o certo”, a boa ação, o que deveria ser dito. Perguntada se concordava que dinossauros eram mesmo lagartos terríveis, meigamente respondeu: “Não! Alguns são fofos e não comem outros animais”.

Assim, como alerta Le Moigne (2007), o conceito exposto (de alguma forma “eticamente necessário”), é “o resultado necessário de alguma forma de raciocínio silogístico perfeito (e independente do sujeito pensador)” (p. 117). De acordo com o mesmo autor, “sofremos ainda nas nossas instituições escolares efeitos residuais desse cientismo que o Catecismo Positivista de A. Comte (1852), e As Leis do Pensamento, de G. Boole [...] iriam de alguma forma sacralizar no ensino[...]” (LE MOIGNE, 2007, p. 117).

As visões dos monitores da seção dos dinossauros afiguram-se, de certa forma, dialógicas, permitindo a interação de pontos de vista aparentemente divergentes. Todavia, ambos concordam: “sapo não”, compartilhando aqui convicções (e teorias?) de sua “especialidade”, num metafórico “micro paradigma”, já que, para Kuhn, guardadas obviamente as proporções, um dos sentidos de paradigma é o de “constelação de crenças, valores, técnicas” (KUHN, 1987, p. 218) ou, mais precisamente, “um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma” (KUHN, 1987, p. 219).

Os "cientistas" João Eduardo e Gustavo e as abelhas. Fonte: acervo do autor (19/10/2019).
Finalizam a exposição com a explicação do extermínio dos dinossauros: “aí veio um meteoro e BUM! Eles morreram todos!”. Como pequenos discípulos de Morin (1991), já se envolvem com as noções de ordem e desordem: a vida dos dinossauros, mansamente organizada em seu ecossistema, é “bagunçada” com o meteoro (a álea) que traz o caos, o extermínio e a nova organização. Ordem e desordem interagindo, até chegarem aos nossos tempos ordenados/desordenados, em que outros animais sofrem do mesmo perigo de extinção, só que a partir de eventos bem menos aleatórios do que um meteoro.

Para atingir seus objetivos, as organizadoras do evento, intencionalmente ou não, valeram-se do mandamento máximo de Feyerabend (1977): tudo vale! Valeu misturar réplicas de dinossauros com dino-bots (dinossauros robôs de brinquedo), contextualizá-los com animais atualmente existentes, e para as explicações/compreensões, utilizar lendas, historinhas infantis, manuais didáticos, desenhos televisivos, tudo! 

De acordo com as educadoras, grande parte do conhecimento construído pelos educandos é resultado de suas próprias intuições, das relações, descobertas e associações que realizam. Na seção das abelhas, por exemplo, os pequenos monitores Gustavo e João Eduardo, demonstravam zelo e seriedade para explicar a vida social destes insetos. Quando perguntados se o zangão não era um elemento prejudicial na colmeia, pois aparentemente não desempenhava um papel de relevância, os “cientistas mirins” pensaram, pensaram, pensaram e, em atitude semelhante à adoção de um método heurístico, sabiamente ponderaram: “não é porque a gente não sabe exatamente o que que ele faz que não tem importância! Na vida muita coisa é assim”, lecionaram. “Ele pode fazer talvez a segurança, ou ser  importante para outra coisa”.
Mural da escola. Fonte: acervo do autor (19/10/2019).
O contato com a escola, e principalmente com as crianças, é capaz de realimentar a esperança de que os atuais tempos sombrios, para a ciência e para a educação, irão passar, e que no porvir se encontra a matriz revolucionária esperada. Particularmente nesta escola – ou ao menos neste evento – parece haver comunhão de ideias com os autores das referências bibliográficas adotadas abaixo, uma vez que recepciona seus visitantes, professores e alunos com um grande painel em sua entrada que avisa: “A arte de ensinar é a arte de acordar a curiosidade natural com o propósito que cada ser descubra suas potencialidades”. Há algo mais revolucionário do que despertar a curiosidade, a sede de conhecimento de alguém?

Referências:

FEYERABEND, Paul K. Contra o método. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977.
KUHN, Tomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.
LE MOIGNE, J-L. Inteligência da complexidade. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, n. 4, out/dez 2007.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.
_____. Ciência com consciência. Lisboa: Europa-América, 1991.

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