O Fantástico da Ilha de Santa Catarina: A complexidade das pedras do Itaguaçu

Pequeno ensaio produzido pela aluna de Mestrado Acadêmico Maria Eduarda Dias.

O objetivo deste ensaio é observar que as pedras do Itaguaçu, bairro localizado em Florianópolis, apesar de imóveis, são capazes de transitar entre diferentes campos de conhecimentos científicos, e desta forma construir identidades múltiplas e complexas.
O bairro Itaguaçu localiza-se na parte continental da cidade de Florianópolis. De origem tupi, seu nome significa “Pedras Grandes”, o que pode ser explicado por seu horizonte repleto de enormes monumentos rochosos espalhadas pelo mar. Segundo Alencar (2013, p.85) "A paisagem encontrada na praia do Itaguaçu é composta por seixos, blocos e matacões de rochas “arredondados” que suscitam no imaginário popular uma ideia de empilhamento antrópico".
Geograficamente, a riqueza das formações rochosas de Itaguaçu constituídas no decorrer da história constituem em um belo cenário, que pode ser contemplado na Figura 1.

Figura 1 - Formações rochosas do bairro Itaguaçu
Inspirado nas belas paisagens de seu bairro nativo, o historiador e artista Franklin Cascaes coletou através do método de história oral lendas sobre a personalidade mística deste conglomerado de rochas. Entre a coleta de dados culturais de Cascaes, existe o conto de uma briga entre bruxas festeiras e um diabo invejoso, que acabou por resultar na formação das tais rochas dos Itaguaçu, como é visto na Figura 2.


Figura 2 - Placa fixada em uma das pedras da praia de Itaguaçu
A união entre o deleite contemplativo destas formações rochosas e o entretenimento de lendas místicas passadas de geração a geração, faz desenvolver o potencial turístico e econômico do bairro. Passeios turísticos são realizados com frequência na região, monumentos em homenagem à Franklin Cascaes foram erguidos e o comércio local se mantém. O restaurante Recanto das Pedras é um ponto turístico essencial do bairro, por apresentar a gastronomia local e também proporcionar uma vista privilegiada, como pode ser apreciada na Figura 3.

Figura 3 - Bairro Itaguaçu, em Florianópolis
Diante desta sucinta descrição do bairro Itaguaçu, é possível perceber a multiplicidade de papéis que o território adquiriu a partir das formações rochosas do local. Latour (1994) ao evidenciar a presença de elementos não humanos, reconhece a influência desses objetos na realidade e nas interações sociais. A Guerra das Ciências, evidenciada por Demo (1985), retrata a priorização das Ciências Naturais às Ciências Sociais no decorrer da história e o predomínio do pensamento cartesiano, de “tentar conceber um universo que fosse uma máquina determinista perfeita” (MORIN, 2003, p.58). Todavia, explicações centradas exclusivamente em fatos reais e palpáveis nem sempre conseguem explorar um campo de causa de maneira abrangente, devido à sua complexidade. Retomando o exemplo deste ensaio, os aspectos geológicos e geográficos das formações rochosas são essenciais para que se compreenda o mundo real, mas os mitos que surgiram através delas também fazem parte da realidade local, da cultura do povo “manezinho”. Morin (2003, p.64) reconhece a importância das descobertas feitas pelas Ciências Naturais, mas, ao contrário do Positivismo, considera também a complexidade das Ciências Sociais e da autonomia humana: 

A noção de autonomia humana é complexa já que ela depende de condições culturais e sociais. Para sermos nós mesmos precisamos aprender uma linguagem, uma cultura, um saber, e é preciso que esta própria cultura seja bastante variada para que possamos escolher no estoque das idéias existentes e refletir de maneira autônoma. Portanto, esta autonomia se alimenta de dependência; nós dependemos de uma educação, de uma linguagem, de uma cultura, de uma sociedade, dependemos claro de um cérebro, ele mesmo produto de um programa genético, e dependemos também de nos sos genes.

O sistema de símbolos artificiais da nossa sociedade geram um estoque de dados, e a Demarcação Científica (Demo, 1985) visa categorizar o que é e o que não é Ciência. Obcecados pela razão e guiados pelo pensamento cartesiano, os filósofos do século XVIII, acabavam por nutrir uma espécie de “paranóia”, que os impedia de compreender os mitos, a religião, enfim, elementos metafísicos que constituem a identidade humana, de maneira profunda. Essa busca incessante por responder de maneira objetiva e factual uma lista infinita de “por quês” limitava a compreensão mais abrangente de algumas questões. Desta forma, conforme Le Moigne (2003), na abordagem do Paradigma da Complexidade, a razão pura criticada por Kant vai do “por quê?”, para o “por quê não?” Por quê não dar a mesma relevância às diferentes comunidades científicas e seus paradigmas, perceber as suas contribuições, as suas formas de explicar o mundo, formas estas que se complementam e interagem? Quando preservar a cultura local se torna um mero hobby e não uma preocupação científica, muito do nosso conhecimento sobre o mundo se perde.

O trabalho de Franklin Cascaes comprova essa afirmação, através dos dados de história oral compilados e preservados em suas obras, que quase se perderam com o passar dos anos, pela falta de pesquisa, de registro, de apropriação das Ciências Sociais neste campo. Mas não cabe apenas aos Sociólogos tal exercício. Morin (2003, p.75) afirma que “(...) o sociólogo é uma parte desta sociedade. O fato de ser detentor de uma cultura sociológica não o coloca no centro da sociedade. “
Quando Schutz (1979) traz com a Fenomenologia a concepção de multiversos, a cultura local “manezinha”, é um dos multiversos que constituem Florianópolis, uma ilha tão complexa quanto o próprio conceito de Sujeito. Desta forma, por quê não cabe ao Sujeito Cidadão preservar a cultura das cidades, ao colocar-se no centro de seu próprio mundo, saber e procurar entender sua existência e aquilo que faz parte de sua história? Uma Floripa natural, cultural, universitária, mística, tecnológica e turística, transcende aquilo que consegue ser explicado pelos paradigmas científicos cartesianos, pois pertence a cada indivíduo de uma forma particular, de acordo com a sua história e as suas experiências e se transforma a cada momento, em uma construção contínua. As pedras do Itaguaçu, apesar de imóveis, tem seus significados transformados em conjunto com o Sujeito e com a cidade, e formam um ecossistema vivo e dinâmico: um paradigma complexo.


REFERÊNCIAS


ALENCAR, R. A Geodiversidade da Ilha de Santa Catarina: Explorando seu valor didático no 6º ano do ensino fundamental. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Geografia, Florianópolis, 2013
CASCAES, F. O Fantástico da Ilha de Santa Catarina. Coleção Repertório, Ed. UFSC, Florianópolis, 2015, 272p.
DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987, p.217-257.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LE MOIGNE, J-L. O construtivismo em construção In: Le constructivisme: modeliser pour comprendre. Paris: L´Harmattan, 2003 (tradução livre por Carolina Andion).
MORIN, E.. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 2003 (Cap. 3 e 5).
SCHUTZ, A. Fundamentos da Fenomenologia. In: WAGNER, H. R Fenomenologia e Relações Sociais. Textos Escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

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