ANT and Beatles: de formigas a besouros

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Rafael Tachini de Melo

       Os Beatles são a maior banda de rock de todos os tempos, sua música é tocada em todas as partes do mundo, e um beatlemaníaco pode ser de qualquer idade, gênero, cor, classe ou cultura. No oriente ou no ocidente, sempre existirá um fã dos Beatles. Muitos dizem que a trajetória dos garotos de Liverpool influenciou a vida destes inúmeros fãs, em uma visão clássica de um fenômeno social sobre as pessoas, a cultura, a política, a sociedade em geral, a qual foi exprimida por Émile Durkheim. Mas será que foi dessa maneira?
      A teoria ator-rede, de Bruno Latour, conhecida pelo acrônimo em inglês ANT (Actor Network Theory) traz uma lente diferente para a mesma circunstância, e recria tal visão, de maneira a demonstrar que a inspiração dos Beatles na vida de um intitulado beatlemaníaco, que aqui me incluo, decorreu da sua atuação e das suas mais íntimas experiências pessoais, que encontraram essas clássicas canções. 
       Por outro lado, os argumentos de que os Beatles foram influenciados pelo movimento beatnik, pela religião hindu, e até pelo uso de drogas sintéticas também são falhos sob a perspectiva latouriana. Para chegar a essa conclusão, precisamos primeiro adentrar na confecção desta objetiva. Bruno Latour busca desconstruir o conceito de definição do fenômeno social, da ordem social, como fenômeno aparentemente supra existente que explica os mais variados aspectos de esferas consideradas “não sociais”, como direito, psicologia, economia, geografia, ou seja, a definição clássica de ciência do social, numa espécie de purificação dos elementos estudados. Para tanto, cria a visão de ciência das associações, indo na raiz latina da palavra social, socius que redefine a sociologia como sendo busca de associações, o social não é algo entre outros, mas sim um tipo de conexão entre coisas que não são, em si mesmas, somente sociais. 
    A sociedade moderna restringiu o significado de social às relações humanas. Em verdade o significado de social é muito mais que o contexto humano, e se entrelaça em associações e agregados de forma infinita. A primeira visão da sociologia teria confundido aquilo que devia ser explicado com a explicação. Ou seja, o contexto social não é a explicação para o direito, a biologia, a ciência ou a religião, mas cada um desses fatores associados explica o que é a sociedade. É esse o caminho da sociologia das associações que a teoria do Ator-Rede adota. Os atores não são meros informantes de tipos conhecidos, mas tem capacidade de elaboração das teorias sobre a constituição do social. Bebendo na fonte de Gabriel Tarde, a teoria do Ator-Rede busca recriar uma sociologia apta a justificar como a sociedade é, em vez de usar a sociedade para justificar um ou outro aspecto. 
    A teoria ator-rede portanto seria, inclusive, imparcial, ao considerar as percepções do ator e transformar a unificação de cada percepção e atuação das coisas (e pessoas) que compõem progressivamente e coletivamente um mundo comum, ao invés de impor leis e predefinições de fenômenos sociais, na visão de Durkheim, para se alcançar um “retrato social”. Ao mesmo tempo não é tão somente descritiva, tem caráter de ativação e política na influência e montagem do mundo comum. 
      Ao retomar a trajetória de cada membro dos Beatles, e sua própria composição, verifica-se uma profusão de associações pessoais, familiares, políticas, legais, científicas que formaram o mundo comum deles próprios e de milhares de pessoas. Paul e John foram apresentados por um amigo em comum, pouco antes da apresentação da banda Quarrymen, que tinha John Lennon como líder, em uma festa da St. Peter’s Church.

Uma despretensiosa foto daquela apresentação, que marca um dia histórico 
      Enquanto George Harrison e Ringo Starr cresceram em famílias com pai e mãe, Paul McCartney perdeu sua mãe ainda quando criança, e John Lennon foi criado pela Tia Mimi, e acabou por conhecer sua mãe apenas na adolescência, descobrindo da maneira mais traumática possível, que ela morava a poucos minutos a pé da sua casa, mas ia visitá-lo com pouca frequência, chegando inclusive de ônibus para dar a noção de uma distante viagem. 
   A ausência da presença materna na vida de Lennon/McCartney os levou à música como passatempo, fuga e paixão em inúmeras tardes de composição na adolescência. Um paradoxo na vida de John, é que apesar da ausência de sua mãe, ganhou justamente dela o seu primeiro banjo. George Harrison conheceu os dois no ônibus que os levava para a escola. Ringo Starr integrou a banda apenas quando esta estava na iminência do sucesso, diante da insatisfação dos demais membros com Pete Best, o então baterista dos Beatles.
      Sobre Ringo, marcante é o fato de que poderia ter morrido em um bombardeio da Segunda Guerra Mundial, ainda criança, pois a segunda casa ao lado da sua foi completamente destruída por uma bomba. A atuação de milissegundos para frente ou para traz de um artilheiro alemão em uma aeronave nazista definiu a trajetória da banda.
      Mergulhados na saída da adolescência, nos seus vinte e poucos anos, o grupo galgou ao sucesso por meio de músicas que falavam de amor e relacionamento, como Love me do (1962), She Loves you, I want to hold your Hand (1963) e And I Love Her (1964). Neste ponto, interessante um aparte. Com base na teoria do ator-rede, a influência que as músicas têm na vida das pessoas não é de cima para baixo. Não vou buscar ou amar alguém somente pelo contexto da música que ouvi, mas sim por experiências pessoais e musicais, que acabam por influenciar o jeito de pensar e agir do indíviduo e sua relação com tudo a sua volta e moldar o coletivo e o mundo comum.
        A vontade de cada indivíduo em ver os Beatles levou à formação de um jeito até então inédito de se bandas se apresentarem: um concerto em um estádio. Em Nova York, em 1965, o Shea Stadium foi palco do maior show até então realizado, que alcançou 55.000 (cinquenta e cinco mil) pessoas, público que até hoje poucas bandas conseguem alcançar.
       A catarse e a histeria em volta dos Beatles nada mais é que tudo e todos, com a bagagem de suas experiências e relacionamentos, agindo para formar o coletivo e o mundo comum. Em que pese tudo não passasse de barulho e caos, como testemunhado pelo próprio Lennon, até a fabricante de caixas de som à época desenvolveu o então alto falante mais potente do mundo especialmente para o show. Elementos considerados pela ciência moderna sociais e naturais (tecnologia), entrelaçados, moldaram aquele cenário. 
      O show quase não ocorreu, pois era necessário um depósito de 50 (cinquenta) mil dólares, quantia exorbitante na época, sendo que o produtor americano responsável desenvolveu um método de venda inédito até então para shows, anunciou a pré-venda de ingressos para atingir tal quantia. Este show marcou as percepções de cada beatle até onde tinham chegado e no que tinham transformado a experiência musical para os demais. Um tanto quanto barulhenta e não contemplativa. E eles começam a falar das suas angústias através de músicas.
      Em Help (1965), pedem um socorro ante a maratona de shows. A percepção dos besouros, como atores, de como se transformaram comercialmente, a necessidade deles de ir atrás das suas essências decorrentes de vivências e angustias pessoais e profissionais mudou a forma de eles fazerem música. A busca pessoal de novas experiências e a complexidade das experiências de suas vidas os levaram a parar as turnês e compor músicas focadas no passado e na reflexão.
     Uma tríade de sucessos com esse mote surgiu: Eleanor Rigby (1966) era o nome escrito em uma lápide de um cemitério da Igreja tal, em Liverpool, onde John, Paul e George, ainda adolescentes, costumavam beber escondidos, e inventavam histórias sobre as pessoas falecidas. Penny Lane (1967) era a rua nas redondezas de onde John, Paul e George passaram a infância, onde havia o banco, a barbearia e a igreja que frequentavam, tudo descrito na canção. Strawberry fields forever (1967) falava do orfanato próximo da casa de John, que quando adolescente, costumava invadir, muitos dizem para brincar, outros para vandalizar a instituição, mas todos concordam que se reconhecia nas crianças, por também não ter pai e mãe presentes.
      No álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967) os Beatles fazem uma desconstrução, sob a alcunha de uma banda alter ego, apresentando as inúmeras influências que permearam a vida de cada um. Figuras políticas, religiosas, do esporte, da música, da cultura em geral, de amigos pessoais e inclusive os próprios Beatles. Esta capa é o retrato claro de que a vivência pessoal de cada um deles os levou até onde estavam, e formou o mundo comum dos beatlemaníacos, que viveram este álbum. É a última expressão da consecução da teoria ator-rede

Capa do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band 
       No final da carreira da banda, o relacionamento entre os integrantes estava desgastado, e as experiências diárias levaram à composições clássicas e marcantes, mas que expressaram o humor daquele momento, como Let it Be (1969), expressão que fala em “deixar estar”, para não se preocupar que tudo vai dar certo [caso a banda termine], e I’ve got a feeling (1970), uma música que trata, ao mesmo tempo, de amor, humor e de consolo, ao falar que todo mundo passa por momentos difíceis e engraçados na vida.
    A trajetória dos pequenos besouros soa como o pequeno trabalho de Latour como formiga na formação do mundo comum. Eles se tornaram famosos, apaixonantes, instigantes, mas tudo isso adveio das suas experiências e vivências no seu meio, no seu inter-relacionamento com o mundo pessoal, local, cultural, religioso, social, científico, técnico, etc., não se podendo conceber que o “contexto social”, seja lá o que seja isso, é que foi o fator de criação desta marcante expressão musico-cultural do século XX ou de sua legião de fãs.


Referências.
DAVIES, Hunter. As letras dos Beatles - A história por trás das canções.Tradução de Maria da Anunciação Rodrigues. São Paulo: Planeta do Brasil, 2016.
DURKHEIM, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007
HEWITT, Paolo. Love me do – 50 momentos marcantes dos Beatles. Tradução de Leandro Woyakoski. Rio de Janeiro: Versus Editora, 2014.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
LATOUR, B. Reagregando o Social. Uma Introdução à Teoria do Ator Rede. New York: Oxford University Press, 2012.
PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. O criticismo Kantiano e O positivismo In: PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da Filosofia. São Paulo: Mehoramentos, 1990 (trechos escolhidos).

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