Zé Gotinha corre perigo: até que ponto temos fé na ciência?

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Mestrado Acadêmico Bruno Castro

     Data de muitas eras o debate entre a fé a ciência; é tópico para toda sorte de contendas, desde acaloradas conversas de botequim, até robustas teses de doutorado. Não convém, dado o escopo de um short paper, enveredar por esta senda. O que aqui se fará, marotamente, é permutar a preposição para se chegar a um tema razoavelmente passível de breve análise. Indo direto ao ponto: se tratará não da fé “e” a ciência, mas da fé “na” ciência.
     Há muitos palcos em que se percebe o embate de conceitos aqui proposto. Mas, para efeito de recorte, este trabalho se restringirá às campanhas de vacinação aplicadas frequentemente no Brasil e a reação a elas promovida pelo movimento antivacina. Essas campanhas costumam trazer como mascote o personagem Zé Gotinha, criado pelo Ministério da Saúde na década de 1980, e que está reproduzido na Figura 1 - O personagem Zé Gotinha.
     O apoio teórico a que se acorrerá é o de Robert Merton (2013), em particular quando trata do tema do desinteresse. E, de maneira mais ampla, bebe-se na fonte de Piotr Sztompka (2007), pesquisador polonês de cujo artigo se extrai uma súmula bem construída a respeito dos princípios mertonianos.
     Antes de tudo, cabe um questionamento: como se poderia conceber que alguém tenha capacidade ou interesse em “crer” na ciência? Colocando a discussão nesses termos, salta aos olhos uma aparente contradição entre o cientificismo e um aspecto mais, por assim dizer, religioso do conhecimento, mas basta avançar um degrau na compreensão do mecanismo da credibilidade científica e a confusão se desfaz por completo. Tão logo se compreenda que “crer” na ciência é “crer” nos pesquisadores e em suas ações, começa a fazer sentido esse empréstimo do termo originalmente circunscrito à esfera religiosa para uso no meio acadêmico.
O alvo da fé em questão fica, assim, bem delimitado; logo, pode-se partir para uma análise da substância da fé na ciência.
       Toda vez que se manifesta a crença no trabalho de um pesquisador, aquilo em que se está crendo é, de fato, na verdade. Em outras palavras, trata-se da fé na capacidade supostamente desinteressada dos cientistas em esclarecer a verdade e oferecê-la ao grande público como resultado de suas pesquisas, em consonância com os postulados de Robert Merton.
       Em relação a quem exerce a fé na ciência, vislumbra-se todo um arranjo social que parte de uma esfera dita mais “elevada”, com universidades, ONGs, empresas e governos consumidores do saber produzido na academia, indo desaguar num substrato mais popular, em que se encontram, por exemplo, os pais ou responsáveis que levam as crianças para tomarem vacinas.
      Neste ponto, alcança-se a inquirição sobre a qual se queria discutir desde o começo: até que ponto se tem fé na ciência? Um possível caminho para a resposta está nas campanhas de vacinação supracitadas, contrastando com o movimento antivacina descrito por Vasconcelos-Silva (2015). Este autor relata a existência de campanhas contra a vacinação obrigatória de crianças, capitaneadas por sites e outros meios de comunicação que, irresponsavelmente, propagam a crença em supostos riscos da vacinação, principalmente o de causar autismo.
    São mostradas evidências sólidas de que, anualmente, um percentual significativo de crianças morrem vitimadas por doenças facilmente evitáveis mediante a vacinação – sintoma de que o movimento antivacina avança não só em extensão midiática, mas também na letalidade que advém como sua consequência.
    Os defensores do boicote vacinal costumam apoiar-se em estudos preliminares sobre a suposta relação entre a aplicação de vacinas e o desenvolvimento do autismo. Embora esses estudos tenham sido amplamente refutados por pesquisas posteriores, tem crescido a circulação, pelas mídias sociais, daqueles primeiros trabalhos, tidos pelos indivíduos adeptos da não-vacinação como ícones sagrados.
Percebe-se, assim, que a fé inabalável no desinteresse dos cientistas persiste na população, embora se bifurque em duas vertentes opostas, que se descreverão a seguir.
      De um lado, há quem se mantenha “fiel” – e, aqui, note-se como é impraticável abolir a metáfora da fé ao falar de ciência – ao ordenamento da vacina como vem sendo instituído há décadas, em respeito aos estudos cada vez mais elucidativos da eficácia da imunização coletiva obrigatória.
     Por outro lado, tem-se um contingente cada vez maior de indivíduos que acolhem como verdade absoluta estudos científicos de autenticidade contestada, ligando a aplicação de vacinas ao desenvolvimento de autismo. Parece haver, nesse caso, uma mesma fé na ciência, mas mesclada a um medo patológico de ameaças disseminadas por mídias sociais, que faz com que se escolha um viés no qual acreditar. Saem perdendo, infelizmente, todas as crianças que deixam de ser imunizadas. E resta, portanto, a dúvida: será que a fé na ciência se transmutou em algo doentio, ou estaria desaparecendo da mente do cidadão comum até o ponto em que não subsistirá mais? Quem viver, verá!


Referências.

MERTON, R. K. A ciência e a estrutura social democrática. In: MERTON, R. K. Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013.
SZTOMPKA, Piotr. Trust in Science. Journal of Classic Sociology, v. 7, n. 2, p. 211-220, 2007.
VASCONCELOS-SILVA, P. R. A sociedade de risco midiatizada, o movimento antivacinação e o risco do autismo. Ciência & Saúde Coletiva, v. 20, n. 2, p. 607-616, 2015.

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