Reflexões sobre a ciência moderna Kant e Latour

Pequeno ensaio produzido pela acadêmia Larice Steffen Peters. 

O presente texto visa apresentar, de forma breve, reflexões sobre a construção do conhecimento científico, ou em outras palavras, da epistemologia considerada - de forma ampla - “o estudo metódico e reflexivo do saber, de sua organização, de sua formação, de seu desenvolvimento, de seu funcionamento e de seus produtos intelectuais” (Japiassu, 1991, p. 16).

Foram definidos como pano de fundo para as reflexões recortes das obras Crítica da Razão Pura, publicada por Kant em 1781, e, a obra de Latour, Jamais Fomos Modernos, publicada em 1991. A justificativa para a escolha de tais obras transita no fato de serem consideradas dois clássicos no estudo da epistemologia e porque ambas abordam a ciência moderna – seja remodelando-a, seja questionando-a.

Cabe, antes de buscar compreender o que é a ciência moderna, compreender que ao longo da história pensadores, filósofos e cientistas ao postularem sobre o que é o não ciência – seja negando uma corrente de pensamento, seja desenvolvendo outra corrente - estavam fazendo o que Demo (1985) caracteriza como demarcação científica.

Um dos pontos da ciência moderna, e que está atrelado a sua relevância história, é a sua demarcação através da necessidade de métodos para comprovar o que pode ser chamado de ciência e consequentemente, da ruptura com as especulações da metafísica. 

No escopo da ciência moderna há dois precursores, Bacon e Descartes. Ambos defendem um desligamento da visão Aristotélica (cultivar o saber pelo próprio saber) e afirmam que apenas com métodos científicos é possível construir a ciência, sendo que essa deve olhar para a natureza de modo que o homem detenha o poder sobre ela (Bacon, 1979; Descartes, 1979). 

Bacon ao publicar o Novum Organum, em 1620, apresenta que só pode ser considerado como ciência aquilo que é passível de ser comprovado através da experimentação (Bacon, 1979). Em O Discurso do Método, publicado em 1637, Descartes aponta que a ciência precisa ser prática e não especulativa sendo possível afirmar apenas aquilo que pode ser provado (Descartes, 1979). 

Kant, em 1781, buscando compreender a origem do conhecimento publica seu primeiro trabalho crítico: Crítica da Razão Pura. De um lado o autor se depara com Bacon, o precurssor do empirismo e que possui uma lógica indutiva na construção do conhecimento, e, de outro lado com Descartes que defende a racionalidade e a lógica dedutiva para construção do conhecimento. Ao analisar ambos, Kant definirá que nosso conhecimento pode vir da experiência, o que ele denominará de conhecimento a posteriori, ou pode estar atrelado a razão, o que ele denominará de conhecimento a priori (Kant, 2015).

Compreender se nosso conhecimento depende ou não da experiência – para Kant – não é suficiente para afirmar que há um fato científico o que o leva a criar três tipos de juízos: juízos sintéticos, aqueles que acrescentam informação ao conhecimento e que possuem natureza a posteriore; juízos analíticos, que não acrescentam informação e possuem natureza a priori. Não é a intenção dessa reflexão explicar os tipos de juízos de Kant, mas sim mostrar em que ponto ele vai de encontro com Bacon e com Descartes, e esse ponto é a elaboração do juízo sintético a priori, ou seja, nem Bacon e nem Descartes estão corretos, é preciso de um meio de campo. Nesse meio de campo é onde Kant se destaca e defende que nós, sujeitos, não temos acesso ao mundo como ele realmente é, mas sim como ele nos é mostrado, temos acesso aos seus fenômenos sendo que esses fenômenos são consequência de nossa capacidade de pensamento – visão racional – e nossa capacidade de sentidos – visão empírica (Kant, 2015).

Após a contextualização sobre a ciência moderna, é possível realizar as reflexões que motivaram a escrita desse texto. Kant apresenta uma evolução dentro dos preceitos iniciais que a definiram, ele – de certa forma – dá o primeiro passo para a ruptura de uma visão dicotômica dentro da ciência moderna: não há espaço para ontologias que só consideram de um lado o objeto (empirista) e do outro o sujeito (racionalista). Essa ruptura, esse novo olhar para a ciência moderna e a epistemologia que ele propõe é o que o levam a não ver o sujeito e o objeto de forma dissociadas, mas de forma que há uma interrelação entre ambos. 

Fonte: https://www.istockphoto.com/br/foto/explos%C3%A3o-colorida-do-p%C3%B3-no-fundo-preto-gm1130795002-299189624

Se lançarmos nosso olhar para o que Latour escreveu esse primeiro passo não é suficiente para compreender a sociedade e a complexidade com a qual nos deparamos nos dias atuais. Ao – também – analisar a fundamentação da ciência moderna, Latour afirma que não é possível separar sujeito de objeto (Latour, 1994) – o que pode ir ao encontro de Kant – mas Latour vai além, para ele nós sequer fomos modernos porque aquilo mesmo que a modernidade pregou ela não foi capaz de comprovar com seus métodos científicos. Nunca houve uma separação e uma dicotomia entre sujeito e objeto, a sociedade se faz através dos híbridos e é nesse ponto que, epistemologicamente, sua visão vai além da visão de Kant: há novas formas, há coisas e sujeitos que sequer podem ser assim classificados porque sua própria existência é fruto da hibridação entre eles: sujeito, objeto, natureza e política dialogam e formam redes e essas redes dialogam com sujeito, objeto, natureza e política e formam novas redes, essa é a complexidade de nossa existência. 

A ciência é criada, defendida e questionada dentro de um espaçotemporal, quanto mais conhecemos sobre ela mais temos a capacidade de ampliar a nossa demarcação científica e compreender que há relações entre sujeitos e objetos e que, nós construímos o mundo e também somos construídos por ele.

Referências:

BACON, F. Novum Organum In: Francis Bacon. Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 1-21. (trechos escolhidos).

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985.

DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (trechos escolhidos).

JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. O que é a epistemologia? In: Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 15-39. 

KANT, I. Crítica da razão pura. 4.ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. p.17-68.

LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário