A modernidade do (ir)real

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmica Ana Neves.


Ao revisitar a história da Ciência e da modernidade com o antropólogo Bruno Latour através do livro Jamais Fomos Modernos, gostaria de fazer um paralelo com o filme A Origem de Christopher Nolan. Ambos ilustram alguns conceitos de Latour, essenciais para o rompimento do que entendemos como moderno.

Sintetizando de forma simplória o pensamento de Latour (1994), o antropólogo propõe uma investigação simétrica de campos tratados com distinção. Desse modo, a ciência e a política, assim como a natureza e os laços sociais, são reconstruídos a partir de dois paradoxos principais que constroem a ideia de modernidade. Os dois paradoxos, que serão aprofundados adiante, discutem a separação da natureza e do homem, somado a outros conceitos como a distância de Deus, a origem das Constituições, a Revolução, o Relativismo e a Redistribuição. 

Primeiramente, a comparação que proponho com “A Origem” advém do filme ter seu enredo construído na divisão do que é sonho e realidade. Dom Cobb, interpretado por Leonardo DiCaprio, é um ladrão internacional que consegue se infiltrar nos sonhos das pessoas a partir de uma máquina. O protagonista utiliza isso principalmente para espionagem industrial, ao introduzir novos pensamentos e descobrir as ideias dos concorrentes.

A divisão entre realidade e sonho, porém, emerge de maneira complexa, já que seus participantes - e os telespectadores - nem sempre sabem quando cada uma está acontecendo. Pois a realidade influencia os sonhos das personagens e vice-versa em perspectivas intercambiáveis. Latour (1994) nos faz ter cautela ao analisar realidades distintas e nos mostra como “tudo acontece no meio”. 

Em segundo lugar, o paralelo com Latour (1994) pode ser construído também a partir dos seus dois paradoxos principais. Em relação ao primeiro paradoxo, o telespectador vê a realidade de Dom: “a natureza não é uma construção nossa, ela é transcendente e nos ultrapassa” (LATOUR, 1994, p. 37). Neste viés, os filhos de Dom são a mais pura representação da natureza que o ultrapassa, já que o protagonista possui uma única meta: ficar perto dos filhos novamente. É evidente, de igual forma, a série de contratempos que surgem durante o longa e que apesar do esforço das personagens do filme, não tem o controle da realidade.

Fonte: cena do filme A Origem


Já, quanto ao segundo paradoxo da Modernidade: “Nós construímos artificialmente a natureza no laboratório: ela é imanente” (LATOUR, 1994, p. 37). É perceptível a relação da própria máquina que infiltra os sonhos - aparentemente construída em laboratório e que remete à manipulação da natureza pelo homem. Ao mesmo tempo em que “a sociedade é uma construção” como é mostrado nos sonhos e suas infiltrações, ela também “transcende e nos ultrapassa infinitamente” (LATOUR, 1994, p. 37) na medida em que a realidade e os jogos de poder imperam.

No clímax final, a esposa do protagonista quer se jogar de um prédio, já que não sabe se o que vive é sonho ou realidade. Com esse final aberto à inúmeras interpretações dos telespectadores, a genialidade do longa consiste em nos apresentar universos contamináveis. Por contaminável me refiro à universos que se cruzam e criam um espaço comum na mente de quem assiste o filme. Ou seja, o próprio lugar da discussão de cinéfilos sobre o final de “A Origem” seria um espaço Amoderno que Latour nos propõe? Leva-me a pensar, como não percebemos isso antes?

Junto à visão de um Deus que distanciou e ao mesmo tempo pode tudo no mundo moderno, Latour afirma que “[antes] estes recursos pareciam estar separados, em conflito uns com os outros” (1994, p . 44). Na verdade “[...] tudo acontece no meio, tudo transita entre as duas (direita e esquerda), tudo ocorre por mediação, por tradução e por redes, mas este lugar não existe, não ocorre. É o impensável dos modernos” (LATOUR, 1994, p. 43).

Faço uma analogia ao Jamais fomos Modernos de Latour (1994) por entender que o autor critica a visão do mundo Moderno nos oferecendo outra. Esta é integrada, com universos antes separados e que também são contaminados uns pelos outros.

Fonte: Benjavisa/Getty Images 


Em relação à epistemologia, começo a refletir se essa abertura de mundos nos fosse apresentada antes, como a Ciência poderia ser? Em tempos de “Que bobagem! 1 ” e “[Se você tomar vacina] e virar um jacaré, é problema seu 2 " me parece quase utopia um espaço de discussão no meio termo nos dias atuais. Gostaria muito de ter e poder oferecer uma lupa “Latourizante” para muitos conhecidos meus que em meio à realidade brasileira levam tudo para à direita ou à esquerda, Ciência ou bobagem.

Não posso prever como seria ter essa lente… Posso afirmar que saio de “Jamais fomos Modernos” com a mente mais aberta do que entrei.

Referências

A ORIGEM. Direção: Christopher Nolan. Produção de Emma Thomas. Estados Unidos: Warner Bros. Entertainment, Legendary Pictures e Syncopy, 2023. 

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Editora 34, 1994.  

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