Ciência, epistemologia e fake news

 Pequeno ensaio produzido pela acadêmia Larice Steffen Peters

    Ciência e epistemologia, duas palavras que - em um primeiro olhar - parecem fáceis de compreender, mas que requerem uma análise mais aprofundada quando se busca compreender a construção do conhecimento científico e do saber (Demo 1985; Japiassu, 1991; Tsoukas, 2005.) De forma breve, será apresentada uma discussão sobre os referidos termos considerando o contexto das fake news e seu advento no Brasil, sobretudo, a partir de 2018 (Mariani, 2018).

    Retoma-se então o questionamento ilustrado por Demo (1985): o que é ciência? A partir de 2018 o Brasil viu-se imerso em fake news (Mariani, 2018) e uma das consequências dessa imersão é que o questionamento do que é ciência saiu da academia e ganhou o vocabulário popular, estando presentes em longas e acalouradas discussões em grupos de mensagens e mídias sociais. Porém, ressalta-se que responder o que é ciência é uma forma de combater as próprias fake news que popularizam a questão. 

    Para ilustrar – em poucas palavras – a temática parte-se da definição de Demo (1985) sobre os limites da ciência, estando de um lado o senso comum e de outro a ideologia. Há uma clara distinção entre os termos, mas há a convicção de que sempre quando se fala em ciência serão encontrados, em maior ou menor grau, o senso comum e a ideologia.

    No caso em tela, referente às fake news, a ciência foi utilizada como roupagem para reforçar esteriótipos e pré-conceitos decorrentes de senso comum e a ideologia foi ancorada por discursos partidários com fortes posicionamentos políticos, chegando ao seu nível extremo: falsidade e mentira.

Fonte: https://pixabay.com/

    Uma possível análise do motivo pelo qual as fake news ganharam e ganham adesão, pode ser buscada em Chanlat (1996). Ao estudar sobre o indivíduo na organização, o autor afirma que “o desejo de tudo explicar através de um enfoque científico particular é fenômeno característico da sociedade moderna” (p. 26). Para além disso reforça ainda que o indivíduo é um ser espaço-temporal, ou seja, possui uma história que foi moldada com inúmeras particularidades decorrentes dos locais no qual se desenvolveu e com base nas experiências que adquiriu ao longo de sua jornada. 

    Considerar tal característica sobre os indivíduos pode ser um caminho para compreender a maior ou menor adesão a determinadas fake news por determinados grupos. Em algum local desse indivíduo – muitas vezes em seu inconsciente – elas encontram espaço e identificação naquilo que foi moldado temporalmente e está enraizado em sua vida.

    Frente ao exposto, cabe outro questionamento: considerando a necessidade da sociedade moderna em buscar a cientificidade em seus argumentos e que os indivíduos são construídos em um espaço-temporal, como a ciência pode auxiliar no combate a informações falsas?

    Primeiro, a ciência é um objeto construído. Isso significa dizer que ela coincide com a realidade estudada e é dependente do sujeito que a constrói: um sujeito inserido em um espaço-temporal no qual são encontrados senso comum e ideologias (Demo, 1985; Chanlat, 1996). Para compreendê-la, ademais do senso comum e da ideologia, Demo (1985) determina critérios internos e externos, os quais podem ser utilizados como formas de questionamento e combate às fake news. 

    Analisar fatos em um espaço-temporal construído por um sujeito e fazer a verificação do que é ciência pode ser feito através de análises relativas à coerência, consistência, originalidade e objetivação (critérios internos) e, intersubjetividade – na qual está a validação do fato em estudo pela comunidade científica – (critério externo).

    Outra possibilidade para compreensão da ciência e do fenômeno que envolve as fake news é a análise epistemológica. A análise epistemológica, de acordo com Tsoukas (2005), está ligada à competência daqueles que se preocupam com o conhecimento, estando diretamente relacionada com o estudo da ciência. Em um contexto organizacional, sua função para além de entender de como o fato em análise se faz presente é compreender de que forma as organizações se posicionam na arena pública ao reinvindicarem conhecimentos.

    Japiassu (1991) aponta que a epistemologia é flexível e interdisciplinar. Ela possui atuação para “estudar a gênese e a estrutura dos conhecimentos científicos (...) tentar pesquisar as leis reais desse conhecimento” (p.38) e estuda a “produção dos conhecimentos, tanto dos pontos de vista lógico, quanto dos pontos de vista lingüístico, sociológico, ideológico” (p. 38, 39). 

    Fazendo um paralelo com a análise de Chanlat (1996) sobre o indivíduo estar localizado em um espaço-temporal, Japiassu (1991) aponta que na epistemologia também há de se buscar entender a epistemologia psicológica, ou em outras palavras, a forma pela qual os processos simbólicos influenciam a ciência. 

    Cientistas e pesquisadores são sujeitos construídos e localizados no espaçotemporal, rodeados de símbolos, senso comum e ideologias. Sujeitos que fazem parte de organizações e que ao construir a ciência podem cair em armadilhas e truques que podem paralisá-los ou levá-los a discursos que não possuem coerência, consistência, originalidade e objetivação, e, não são validados pela comunidade científica. Ao buscar compreender determinado fato, cientificamente é preciso estar consciente e se voltar sempre a pergunta: o que e ciência?

Referências 

CHANLAT, J. F. Por uma Antropologia da Condição Humana nas Organizações. In: CHANLAT, J. F. (coord). 1996a. O Indivíduo na Organização: Dimensões Esquecidas, São Paulo: Editora Atlas, v. 1, p. 21-45. 

DEMO, P. Demarcação científica. In: DEMO, P. Metodologia Científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1985. 

JAPIASSU, H. Alguns instrumentos conceituais. O que é a epistemologia? In: Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 15-39. 

MARIANI, BETHANIA. Discursividadeds prêt-à-porter, funcionamento de fake news e processos de identificação. Entremeios: Revista de Estudos do Discurso, v. 17, p. 1 - 16, jul - dez/2018. Disponível em: http://www.entremeios.inf.br/published/675.pdf. Acesso em: maio/2023 

TSOUKAS, H. Introduction In: TSOUKAS, H. Complex Knowledge: Studies in Organizational Epistemology. Oxford. Oxford University Press, 2005. p 1-9. Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=ptBR&lr=&id=h8gSDAAAQBAJ&oi=fnd&pg=PR9&dq=Epistemology+and+organization+studi es&ots=xyB6oCzsMx&sig=1hkQw2YnqAaVzrntaBj5fHITkAg&redir_esc=y#v=onepage&q=E pistemology%20and%20organization%20studies&f=false

Nenhum comentário:

Postar um comentário