Por um realismo pluralista

 Pequeno ensaio produzido pelo acadêmico Ricardo Lonzetti

    O nascimento da racionalidade moderna, que deu origem à ciência moderna, é em geral atribuído ao que se denomina revolução científica ocorrida nos séculos XVI e XVII e que teve como expoentes Kepler, Copérnico, Galileu, Descartes e Newton. Como afirma Koyré (2011), suas ideias partiram de concepções que exigiam a crença em um modo racional de pensar e testar ideias, essencialmente distinto das concepções sustentadas na pelos filósofos medievais, cujas discussões metodológicas seguiram o modelo fixado pelos gregos e estiveram estreitamente ligadas ao modo pelo qual Aristóteles trata do problema da ciência, ou seja, por meio de um método indutivo e dedutivo.

    Descartes, em destaque, costuma ser visto por muitos como o fundador da filosofia moderna, pois teria problematizado, pela primeira vez, a questão das fontes de validade e o alcance do conhecimento de modo explícito e relativamente sistemático, empregando a razão para refletir sobre a própria razão. Hannah Arendt (1981), por exemplo, o vê desse modo. Guiado por essas visões, Descartes criou um sistema filosófico que era novo e original, que não pode ser comparado a nada desde Platão e Aristóteles, conforme o manual de Niiniluoto, Sintonen e Wolenski (2004).

Fonte: https://pt.dreamstime.com/ilustra%C3%A7%C3%A3o-stock-retrato-estilizado-de-rene-descartes-image66285306

   Descartes (1979) propôs uma operação incomum até então, a de empregar a razão para refletir sobre a própria razão, de modo que fosse possível descobrir qual sua natureza e qual o seu alcance. Até aquele momento, se buscou um fundamento seguro para o conhecimento, entre outros, no mundo das ideias (Platão), na substância (Aristóteles) ou no Ser (Tomás de Aquino). Em uma leitura abrangente dele e de seus contemporâneos, ponto de vista corroborado por Niiniluoto, Sintonen e Wolenski (2004), testemunhamos que Descartes inaugurou uma nova etapa na história do pensamento em que o conhecimento deveria ser descoberto pelo homem, no próprio homem, ou, mais precisamente, na razão. Assim, em “O Discurso do Método”, Descartes (1979) defende que a verdade somente pode ser conhecida a partir da racionalidade, da objetividade e da neutralidade do observador.

    Visando a evitar o erro e assegurar a verdade, Descartes (1979) propõe um método baseado em quatro regras: a) regra da evidência (verificar a verdade, a boa procedência daquilo que se investiga); b) regra da análise (divisão do assunto em tantas partes quanto possível e necessário); c) regra da síntese (elaboração progressiva de conclusões abrangentes e ordenadas a partir de objetos mais simples e fáceis até os mais complexos e difíceis) e; d) regra da enumeração (enumerar e revisar minuciosamente as conclusões, garantindo que nada seja omitido e que haja coerência entre as conclusões).

    Obviamente, como nos alerta Koyré (2011), a obra deixada por Descartes está inserida dentro de uma tradição heterogênea de pensamento, comumente denominada de racionalismo, que tem uma longa história. A propósito, em um breve resumo a respeito da história da ciência, Nascimento (2006), descreve que a física mecanicista, como proposta por Newton, estabeleceu uma visão determinista para explicar diversos fenômenos do mundo real. A mecânica relativista também adotou um olhar determinístico. Já a mecânica quântica abriu uma vertente pela qual o acaso passou a ter papel ontológico no estabelecimento do comportamento dos objetos de estudo da física, tratando o acaso, contudo, como distribuições de probabilidade sobre grandes populações de objetos microscópicos, mas mantendo o determinismo no nível macroscópico. Assim, continua o autor, com o sucesso e prestígio do determinismo no âmbito da física, cuja proposta era estender e generalizar a causalidade física pelo acréscimo em particular da consideração das condições iniciais, a postura racionalista se estendeu para as outras ciências naturais e se estabeleceu nas ciências sociais, inclusive com o objetivo de explicar o comportamento humano.

    De todo modo, como lembra Losee (1998), nos parece evidente que, do reconhecimento da necessidade de modelos e abstrações na ciência à visão idealista de que o mundo não tem qualquer estrutura que lhe dê suporte, exceto a que lhe é dada pela mente humana, há um longo caminho. Uma evidente consequência do avanço da ciência é que, mesmo um racionalista, tem de aceitar que os fenômenos organizacionais são contingenciados material, social e cognitivamente. Em uma visão corroborada por Nascimento (2006), quando trata da epistemologia na administração, posso afirmar que não é mais consistente com a ciência atual uma ontologia que negue a realidade da prática, das representações mentais, ou melhor, das crenças, intenções, planos, objetivos e conceitos dos sujeitos no entendimento das organizações. Contudo, em uma visão de certo modo racionalista, entendo que é inescapável à prática científica a explicitação de critérios de atribuição da verdade para proposições descritivas, das coisas (objeto), de seus estados e das relações entre o estado e o objeto.

    O pesquisador em Administração, assim, deve ter o compromisso com a busca da verdade como um fim em si mesmo. Como afirmam Mendonza e Camargo Jr. (2016), em interessante e esclarecedora análise a respeito das implicações do pensamento cartesiano para a ciência, biomedicina e saúde coletiva, o pensamento cartesiano não deve ser visto como sinônimo de “mecanicista”, “determinista” e “reducionista”, dentre outras alcunhas empregadas em muitos casos de modo depreciativo. Descartes continua sendo considerado um dos fundadores da modernidade - dentre outros motivos, por sua ênfase na razão e no pensamento. Sua obra nos agracia com um arsenal teórico que pode nos auxiliar a dar conta dos problemas do tempo atual. A necessária aceitação de um realismo pluralista, e porque não, atualizado em bases construtivistas, também abre caminho para o descarte de um idealismo extremado, subjetivista.

Referências:

 ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; 1981.

DESCARTES, R. Discurso do Método. In René Descartes. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

KOYRÉ, A. As origens da ciência moderna: uma nova interpretação. In KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2011.

LOSEE, John. Introdução histórica à filosofia da ciência. Lisboa, Portugal: Oxford University Press. 1998.

MENDONÇA, André L. de O.; CAMARGO Jr., Kenneth Rochel de. Os acertos de Descartes: implicações para a ciência, biomedicina e saúde coletiva. Cadernos De Saúde Pública, 32(5). 2016.

NASCIMENTO, Paulo Tromboni de Souza. O livre arbítrio epistemológico na administração. 2006, Anais. Rio de Janeiro: ANPAD, 2006.

NIINILUOTO, Ilkka, SINTONEN, Matti; WOLEŃSKI, Jan. Handbook of Epistemology. Netherlands: Springer Science & Business Media. 2004

Nenhum comentário:

Postar um comentário