Orçamento público e a pluralidade de ideias

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Julia De Marchi.

A Constituição Federal de 1988 traz ao cenário municipal brasileiro o princípio da “cooperação das associações representativas no planejamento municipal” (artigo 29, inciso XII). Esse princípio, mais tarde reforçado pelo Estatuto da Cidade em seu art. 44, apresenta a participação popular como fundamental na construção do orçamento público municipal. 

É através do orçamento público que a cidade planeja os seus próximos passos, definindo suas prioridades e objetivos, e todos os gastos durante cada ano deverão estar contemplados nele. Ou seja, o orçamento é uma das ferramentas mais importantes na gestão pública. É ela que determinará se uma escola ou um posto de saúde serão construídos naquele ano, por exemplo. 

Durante muito tempo difundiu-se a ideia de que a gestão pública era de responsabilidade exclusiva dos políticos e tecnocratas. Porém, se o orçamento é/deve ser um espelho das necessidades e prioridades de uma cidade, como o prefeito, vereadores e técnicos seriam capazes sozinhos de definir essas prioridades? Assim, o orçamento participativo é essencial para a construção de uma sociedade mais democrática. Com ele, o poder de decisão não fica restrito aos gestores municipais, passando a ser responsabilidade de toda a sociedade.

A teoria construtivista traz uma acepção acerca do conhecimento que pode ser utilizado para entender a importância do orçamento participativo. Essa teoria defende o pressuposto de que o conhecimento não é algo a ser aprendido, mas sim construído. Ou seja, essa forma de conhecimento baseia-se na interação do sujeito com o meio e, por conseguinte, com o objeto (KHUN, 1987). Ressalta-se que o construtivismo não é um método ou uma prática, mas sim uma epistemologia que parte da noção de que o sujeito constrói o conhecimento. 

Baseando a análise do orçamento participativo nesta teoria, fica claro que os gestores municipais não podem aprender as necessidades de uma determinada localidade usando como instrumento somente as leis e procedimentos técnicos. Esse entendimento será construído através das interações de cada indivíduo com o meio. Portanto, cada indivíduo experimentará essa interação de uma forma. 

Khun (1987) evidencia essa relação ao afirmar que duas pessoas diferentes podem receber os mesmos estímulos do ambiente/objeto e ainda assim terem sensações muito diferentes. Diante disso, podemos considerar que pessoas que vivem em uma mesma cidade ou até em um mesmo bairro, apesar de muitas vezes vivenciarem as mesmas situações, poderão ter sensações diferentes acerca do vivido. Essa multiplicidade de visões é de grande valia para a construção de uma cidade mais democrática. 

Nunes (1990) reforça que o construtivismo considera que tanto o ambiente social quanto o ambiente físico oferecem oportunidades de interação do sujeito com o objeto. Portanto, para a construção do conhecimento deve-se levar em conta o contexto que o sujeito está inserido, incluindo seus aspectos históricos, culturais e sociais. E essas interações geram conflitos, ou desequilíbrios, que levam a uma reestruturação das construções mentais já existentes no indivíduo (NUNES, 1990).
Fonte: Paris Musees (2016).
Isto posto, destaca-se que “todos esses processos são deliberados e neles procuramos e desenvolvemos regras e critérios. Isto é, tentamos interpretar as sensações que estão à nossa disposição para podermos analisar o que o dado é para nós” (KHUN, 1987, p. 241). Considera-se, então, que há certos padrões neurológicos em comum, ainda que isso não signifique que todos levem às mesmas interpretações.

Logo, não parece haver lógica na construção de um orçamento municipal de forma padronizada, tendo em vista apenas os mandamentos legais e com caráter top-down. Esse modelo de relação hierárquica do poder público com a sociedade, onde um é entendido como o sujeito e o outro o objeto, já não é mais válido. Ambos devem ser vistos como sujeitos na construção das cidades.

Assim, através da elaboração de orçamentos participativos, tanto a compreensão dos problemas municipais quanto a proposição de soluções e estabelecimento de prioridades serão definidos em conjunto com os principais envolvidos, os moradores. Há muito a se ganhar nessa interação, afinal, o que cada cidadão conhece a respeito de sua cidade não lhe foi ensinado, mas sim vivido no dia-a-dia, construído. Por isso, é preciso ampliar cada vez mais a participação popular no orçamento público, para que a cada ano tenhamos uma maior pluralidade de visões e percepções acerca das necessidades municipais, possibilitando a construção de políticas públicas cada vez mais próximas dos cidadãos. 

Referências bibliográficas:

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Congresso Nacional.
_____. (2001) Lei 10.257 de 10 de julho de 2001: regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília: Congresso Nacional.
KHUN, Tomas. Posfácio. In: KHUN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 217-257.
NUNES, Terezinha. Construtivismo e alfabetização: um balanço crítico. Educ. Rev.,  Belo Horizonte ,  n. 12, dez. 1990, p. 21-32.
PARIS MUSEES. [Imagem de mãos e lâmpadas.] In: KOGAN, Ariel. Paris: uma referência em orçamento participativo 2.0. 19/10/2016. Disponível em: https://br.okfn.org/2016/10/19/paris-%E2%80%8Auma-referencia-em-orcamento-participativo-2-0/. Acesso em: 20/11/2019.

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