Teoria antiga, mas dilemas atuais

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Mariana Laporta Barbosa.

Imagine o seguinte dilema: um sequestrador faz 39 pessoas de reféns em um ônibus, mostrando que possui gasolina, isqueiro e armas, ameaçando colocar fogo com todas as pessoas dentro do veículo. Você está distante, mas possui uma arma de precisão e pode acertá-lo, devido ao seu treinamento para tal ato. Deveria, assim, matar uma pessoa, o sequestrador, ou esperar ele queimar as outras vítimas? Após a sua resposta, digo que não é preciso imaginar, já que esta situação não é apenas hipotética, mas ocorreu de fato.

No dia 20 de agosto deste ano, um homem identificado como Willian Augusto da Silva entrou em um ônibus intermunicipal do Rio de Janeiro, perto das 6h, e ordenou sua parada sobre a ponte Rio-Niterói. Após o veículo estar bloqueando o trânsito da região, anunciou que se tratava de um sequestro e começou um intenso período de negociações com a Polícia Militar e o Batalhão de Operações Especiais. Passaram-se 3 horas de sequestro, transmitido ao vivo nas emissoras de televisão, e mesmo com psicóloga disponível para orientação do sequestrador, a decisão foi dar um fim utilitarista.

O utilitarismo é uma corrente filosófica criada no século XVIII e defendida principalmente pelos autores Jeremy Bentham e John Stuart Mill, dois ingleses que se propunham a criar uma teoria da justiça que medisse se uma ação qualquer é correta ou incorreta. E o que seria a coisa correta a se fazer? Para esses filósofos, seria a ação com maior utilidade. A utilidade é “existente em qualquer coisa, propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade ou a impedir que aconteça o dano, a dor, o mal, ou a infelicidade” (BENTHAM, 1979, p. 4). Em resumo, segundo este pensamento devemos sempre buscar o prazer e evitar a dor. Isso pode parecer um tanto óbvio à primeira vista, mas no dia-a-dia nos coloca em dilemas bastante complexos, como o apresentado no início deste paper.

Fonte: Rocha (2019).
Para sabermos qual alternativa escolher, Bentham (1979) propôs um cálculo da utilidade, ou seja, um método que pode nos guiar quando houver a necessidade de pesar a dor e o prazer de um ato. O filósofo afirma que não se espera a rigorosidade em sua aplicação, mas sim que deve ser mantido diante dos olhos, para quando se precisar do processo (BENTHAM, 1979). O cálculo leva em questão quatro circunstâncias: 1) a intensidade do prazer ou da dor; 2) a sua duração; 3) a certeza ou incerteza de que vá acontecer; e 4) a proximidade ou a distância do objeto. Após medir-se as quatro circunstâncias para as duas opções de ações, procede-se um balanço que, “se for favorável ao prazer, assinalará a tendência boa geral do ato, em relação ao número total ou à comunidade dos indivíduos em questão. Se o balanço pesar para o lado da dor, temos a tendência má geral” (BENTHAM, 1979, p. 18).

Já segundo Mill (2007), a felicidade, composta pelo prazer e a imunidade à dor, seria a única coisa desejável na vida, sendo que alguns tipos de prazeres seriam mais desejáveis e valiosos que outros. Aqui, continuamos com a utilidade quantitativa de Bentham, mas lhe acrescentamos um viés qualitativo, que demonstra a diferença de qualidade entre os prazeres, uma preferência. Dessa forma, existem prazeres superiores e inferiores, e a forma de defini-los seria por meio da experimentação daqueles que estão inteirados de ambos (MILL, 2007). Essa nova visão de Mill (2007) traz um padrão utilitarista de felicidade que não é pertinente apenas ao próprio agente, mas a todos os envolvidos, criando uma associação indissolúvel entre a felicidade individual e a felicidade coletiva.

No caso do sequestro do ônibus seria possível que calculássemos a utilidade das duas alternativas: matar o sequestrador ou esperar ele matar os reféns. A alternativa que proporcionar mais prazer ou a que evitar mais dor e dano, será a de maior utilidade, ou seja, a correta a se fazer. Bentham (1979) afirma que se a parte interessada nessa utilidade for a comunidade em geral, deve-se tratar da felicidade ou dor dessa comunidade. Logo, no desfecho presente que tivemos, de o sequestrador ser morto por um atirador de elite, não se tratou apenas de um indivíduo particular e sua respectiva felicidade ou dor, mas sim de toda uma comunidade ao redor, ameaçada e com medo.

O caso em questão gerou diversas repercussões na internet. Em sua maioria, as pessoas defendiam a atitude do atirador de elite, que não disparou o gatilho sozinho, mas com o consentimento coletivo das forças policiais na operação e do governo. Já defendendo o outro lado, pessoas afirmavam que a negociação teria sido a melhor opção, pois depois do ocorrido, verificou-se que se tratava de uma arma falsa e de um sequestrador que sofria de surtos psicóticos.

O fato é que o utilitarismo ainda é muito usado na atualidade, principalmente os seus conceitos de moral e justiça, sendo que nos deparamos com dilemas que nos fazem pesar diariamente se vale a pena seguir uma ação ou praticar outra. Questões como o fato de acertar uma criança com bala perdida da polícia, se for para matar um líder de facção criminosa, são recorrentes em nossos noticiários. Com as metodologias apresentadas por Mill (2007) e Bentham (1979), conseguimos ter uma noção do famoso “certo a ser feito” utilitarista. Mas a questão que levanto para os próximos estudos é: “até onde podemos ir para alcançar o desejado bem-estar social?” Ou seja: quais são os limites da lógica utilitarista?

Referências:

BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. In: BENTHAM, J. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 3-18.
CORREIO BRAZILIENSE. Após 3 horas, homem que sequestrou ônibus na ponte Rio-Niterói é morto. 20/08/2019. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/08/20/interna-brasil,778153/passageiros-sao-feitos-refens-durante-sequestro-a-onibus-no-rj.shtml>. Acesso em: 25/09/2019.
MILL, S. O que é o utilitarismo? In: MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.
ROCHA, Fabiano. [Imagem de ônibus sequestrado.] In: AMORIM, Diego. Confira a cronologia do sequestro de passageiros de ônibus na Ponte Rio-Niterói. Agência O Globo, Rio. 21/08/2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/confira-cronologia-do-sequestro-de-passageiros-de-onibus-na-ponte-rio-niteroi-23890367. Acesso em: 15/10/2019.

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