Ordem e Regresso

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Maria Júlia Pereira Spindler Guedes.

O positivismo do século XIX teve como seu idealizador Auguste Comte. Dentre as diversas teorias abordadas por esse pensador, surgiram os conceitos de evolução e progresso. Essa corrente teórica influenciou muito a política brasileira, principalmente no período da Primeira República e derivou o lema da nossa bandeira “ordem e progresso”. Tendo em vista a influência do positivismo no Brasil, torna-se interessante contextualizar algumas questões atuais à luz dessa corrente, como: o Programa Future-se apresentado pelo Ministério da Educação, o Mobral implementado durante a ditadura militar em 1967 e a relação (ou falta de relação) com o princípio da vedação do retrocesso dos direitos fundamentais estabelecidos.

Para discutir o contexto das questões apontadas é importante relacioná-las com alguns conceitos chaves do positivismo: evolução e progresso. Segundo Padovani e Castagnola (1990), o positivismo reduz substancialmente o conhecimento humano ao conhecimento sensível, a metafísica à ciência e o espírito à natureza, tendo como seu elemento característico o conceito de evolução, considerada como lei fundamental de todos os fenômenos empíricos, isto é, de todos os fatos humanos e naturais. Ainda para os autores, o positivismo acredita estoicamente no progresso. Porém, trata-se de um progresso concebido para o bem-estar material. Além disso, a ideologia positivista apregoa a construção de indivíduos para uma sociedade ordenada, contribuindo assim para  fortalecimento dos princípios do liberalismo na sociedade capitalista. 

Assim, pode-se dizer que a corrente de Auguste Comte ainda influencia a política e o modo de se governar no Brasil, como é o caso do atual presidente Jair Bolsonaro, que traz um elemento marcante do positivismo da Primeira República, o autoritarismo militar positivista. Outro ponto marcante do positivismo nos dias atuais é o que tange a educação. De acordo com Zanotto (2005), os ideais positivistas atribuíam à educação funções conservadoras, de preservação da sociedade com um ensino moral burguês, que daria aos indivíduos uma segunda natureza social. 

Nesse contexto, no dia 17 de julho 2019, o Ministério da Educação (MEC) lançou o Programa Future-se, que vem causando grandes discussões nas universidades federais de todo o Brasil. Segundo Danniel Figueiredo (2019), o objetivo do programa é dar maior autonomia para as universidades fomentando o empreendedorismo e a inovação, captando recursos privados. O programa  apresenta-se, então, como uma tentativa de desresponsabilizar o Estado pelo investimento na educação, principalmente no que tange às ciências sociais aplicadas e à pesquisa nessa área, e aproxima-se muito do ideal positivista de caráter mercadológico, com fins lucrativos, que ao reduzir  a metafísica à ciência, o espírito à natureza, acaba por excluir a pesquisa na área das ciências sociais. 


Fonte: Santos (2019)
Para o APUFPR-SSind (2019), o programa traz um viés tecnicista que vai sufocar essas pesquisas, desequilibrando ainda mais o investimento e a importância entre as áreas científicas. Logo, o Future-se assemelha-se muito ao Programa Mobral implementado pelos militares em 1967.

O Mobral, de acordo com Castilho (2010), teve como objetivo reducionista ensinar a ler e a escrever. À época, o sistema universitário também foi alvo da proposta educacional. O Ministério da Educação brasileiro e a United States Agency for International Development (USAID) assinaram, em 1965, um acordo para a reforma universitária. O acordo tinha como fim “integrar a universidade na vida econômica nacional, a fim de capacitá-la e atender a demanda de mão de obra”. Além disso, o convênio estabelecido pelo MEC-Usaid deixava à margem a produção científica nacional e tinha como medida a cobrança de anuidades. 

Assim, pode-se dizer que, seguindo um pensamento positivista e influenciado por um autoritarismo militar ainda existente no Brasil, o Future-se e o Mobral relacionam-se em diversos pontos, como: submissão à lógica mercantil; desmonte do tripé ensino, pesquisa e extensão; desrespeito ao acesso universal à educação; afronta à autonomia universitária; perseguição política; fim da estabilidade e redução salarial; e intervenção na nomeação de reitores. 

O Future-se não traz somente um grande risco para as universidades federais e para a pesquisa na área das ciências humanas, mas é uma afronta ao princípio de vedação do retrocesso de direitos humanos estabelecidos. Entende-se por direitos humanos, os valores universais que garantem a qualquer cidadão o direito à vida, à liberdade de expressão de opinião e de religião, direito à saúde, à educação e ao trabalho. É uma característica desses direitos, segundo Mazzuoli (2011), a vedação do retrocesso, ou seja, os Estados estão proibidos de retroceder em matéria de proteção de direitos humanos. Os direitos humanos devem sempre agregar algo de novo e melhor ao ser humano, não podendo o Estado proteger menos do que já protegia. 

À luz desses conceitos e da breve introdução sobre o Programa Future-se, fica o questionamento: progresso ou retrocesso? Como um Estado pode reformular totalmente a administração das universidades e institutos federais sem respeitar os direitos já adquiridos? Como um Estado pode desconsiderar a autonomia didático-científica, administrativa e financeira das universidades, deixando-lhes submetidas ao interesse do mercado? Como um Estado pode reduzir o seu papel como mantenedor da garantia dos direitos sociais, como o acesso universal à educação? E por fim, como nós cidadãos, pesquisadores e cientistas podemos lutar pelo futuro da geração do conhecimento do nosso país?

Referências:

APUFPR-SSIND. 12 riscos que o Future-se representa para as universidades públicas. 2019. Disponível em: <https://apufpr.org.br>. Acesso em: 22 ago. 2019.
CASTILHO, Ricardo. Direitos humanos: processo histórico – evolução no mundo, direitos fundamentais: constitucionalismo contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2010. 
FIGUEIREDO, Danniel. Future-se: entenda a nova proposta do MEC. 2019. Disponível em: <https://www.politize.com.br>. Acesso em: 22 ago. 2019.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 
PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. O positivismo In: PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990. 
SANTOS, Patrícia. [Imagem de pessoas protestando pela educação.] In: GALVANI, Giovanna. ‘Future-se’ é principal alvo de estudantes em novos atos pela educação. Carta Capital, 13/08/2019. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/educacao/future-se-e-principal-alvo-de-estudantes-em-novos-atos-pela-educacao/>. Acesso em: 18 out. 2019.
ZANOTTO, Marijane. O legado do positivismo sobre a pesquisa na universidade brasileira. Revista HISTEDBR On-line, n. 18, p. 134-140, jun. 2005.

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