Evolução sob a ótica positivista: um etnocentrismo?

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Mariana Laporta Barbosa.
Nos estados do Amazonas e Roraima, vivem cerca de 26 mil indígenas ianomâmis, que estão sofrendo com a presença de garimpeiros ilegais. Em agosto deste ano, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apresentou pesquisas que revelam a contaminação de mercúrio, acima do limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em mulheres e crianças dessas aldeias. A causa dessa contaminação está no processo de retirada do ouro do leito do rio, quando os garimpeiros jogam mercúrio para facilitar a extração. É esse mesmo rio que as comunidades indígenas costumam usar para pescar, beber água, banhar-se e trafegar. As consequências da contaminação são problemas neurológicos, neuromotores e sistêmicos (O GLOBO, 2019).

Em 2015, antes de ser eleito presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro afirmou em entrevista que “não tem terra indígena onde não têm minerais. Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazônia, a área mais rica do mundo”, continuando com a frase dizendo que “não entro nessa balela de defender terra pra índio”. Segundo ele, o índio deve ser integrado ao povo e “não ser tratado como bicho em zoológico”. Em outra fala, questionou: “os índios não falam nossa língua, não têm dinheiro, não têm cultura. São povos nativos. Como eles conseguem ter 13% do território nacional?” (CAMPO GRANDE NEWS, 2015).

Fonte: Gilmar (2019).
O positivismo, corrente sociológica do século XIX, nos traz alguns argumentos para entender essa relação entre o governo brasileiro e os indígenas que aqui vivem. Padovani e Castagnola (1990) afirmam que o positivismo é devido, em grande parte, ao avanço das ciências naturais e à tentativa de aplicação de seus métodos à filosofia. Métodos esses que são o foco deste pensamento moderno, admitindo apenas a experiência imediata, pura, sensível e os fatos positivos como fonte do conhecimento verdadeiro (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990). Dessa forma, para compreender-se problemas sociais deveria ser produzido um conhecimento por meio da ciência, o único válido.

O francês Augusto Comte é considerado o pai do positivismo e da sociologia, e sua teoria apresenta uma boa perspectiva para entendermos os conflitos ainda atuais. Burguês, nascido em Montpellier, Comte buscava uma ciência neutra, sem ideologias, para explicar a sociedade e substituir a filosofia (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990). O positivista acreditava que se havia leis físicas que regiam o universo, deveriam também haver leis sociais que regeriam a sociedade. E assim, segundo Padovani e Castagnola (1990), procurou fixar em leis mais gerais as relações constantes de sucessão ou semelhança entre os próprios fenômenos.

Mas para este paper, a maior relevância do estudo positivista de Comte está na Lei da Evolução Intelectual da Humanidade ou Lei dos Três Estados, onde este propõe uma linha evolutiva para a civilização humana (COMTE, 1976). Para Comte (1976), teríamos que atravessar três grandes fases: a fase do estado teológico ou fictício, o estado metafísico ou abstrato e, por último, o estado positivo ou real. No ponto de partida, nas sociedades mais “primitivas”, para Comte, a religião seria dominante, recorrendo a seres transcendentes e divinos, como, por exemplo, ocorreu no Egito Antigo. Na fase metafísica, recorre-se a entidades racionais e abstratas, com a argumentação, como no caso do período do Renascimento. Já na última fase, segundo Comte (1976), a sociedade tem um entendimento da realidade pela experimentação, logo, temos a maturidade racional atingida e entendemos os fatos unicamente em sua realidade empírica. Como pode-se perceber, essa evolução de Comte tem a substituição do culto da divindade pelo culto da humanidade (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990), ou seja, deixa o senso comum e o religioso.

Atualmente, sabemos que a Teoria dos Três Estados apresenta vários problemas e cabe aqui apresentá-los, fazendo uma crítica e um paralelo com a questão indígena. De início, podemos perceber que Comte coloca a religião como se fosse algo totalmente desprezível, no mais baixo nível da humanidade (estado fictício). A evolução, para ele, seria a saída desse estado negativo, passando por um estado de debate (aonde falta a prática), para finalmente chegar no positivo. Essa visão é muito positivista, apresentando o estado positivo como a grande salvação da humanidade, ao passo que hoje em dia sabemos que não é exatamente assim. Voltando ao nosso exemplo, alguns avanços tecnológicos e científicos, como as descobertas de mercúrio na garimpagem, quando usados sob as áreas indígena tem gerado vários problemas à uma comunidade que vivia anteriormente isolada, com seus signos, sua cultura e sua religião.

Para o olhar positivista, as comunidades indígenas precisariam de uma evolução, pois seriam consideradas “atrasadas”, assim como o presidente do Brasil afirmou em suas entrevistas. É preciso ressaltar que, atualmente, sabemos que isso não se valida, pois cada sociedade evolui da sua maneira. E a teoria de Comte seria, além de um desrespeito cultural, um enorme etnocentrismo europeu.

Outro autor citado por Padovani e Castagnola (1990) é o inglês Herbert Spencer, que junta a teoria de Charles Darwin com uma teoria social, aplicando a famosa lei da evolução e seleção natural para todo o campo da experiência. Ele afirma que as sociedades começam pequenas, mas ao aumentarem tornam-se complexas e surgem indivíduos que não podem colaborar, podendo apenas “atrapalhar”. Por isso, deveria haver uma eliminação desses que contaminariam os demais. Esta é outra teoria altamente criticável na atualidade, pois se seguíssemos a regra, teríamos que eliminar os pobres, os negros, os pardos, os portadores de necessidades especiais... seria um verdadeiro racismo científico!

Já o francês Émile Durkheim, em sua obra mais famosa, denominada As Regras do Método Sociológico, tenta explicar como analisar os objetos de estudo sem que as subjetividades do pesquisador atrapalhem as análises. Para isso, ele precisaria ter os fatos sociais, que trazem a objetividade das ciências naturais e são estudados pelos métodos (DURKHEIM, 2007). Esses fatos sociais são identificados por três características: exterioridade, ou seja, existem fora dos indivíduos; coercitividade, por meio da influência que exercem sobre os indivíduos; e generalidade, pois servem para todos na sociedade.

Dessa forma, podemos perceber que quando nascemos já existiam valores morais, culturas, religiões, signos e dogmas construídos anteriormente. Assim, há uma “existência própria, independentemente de suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 2007, p. 13). Quem adere a essas coisas, que já estão na sociedade, é o indivíduo. A língua própria dos grupos ianomâmis é um exemplo de fato social, já que eles nasceram com ela em seu meio, é imposta onde vivem e tem o caráter geral, pois serve para todos os que participam dessa sociedade.

Referente a isso, pode ser interessante nos perguntarmos: “será que nós evoluímos, quando os portugueses aqui chegaram?” Pode ser um pequeno exemplo, mas enquanto tínhamos mais de 200 línguas indígenas faladas pelas tribos brasileiras, escolhemos trazer o simples português para ser nossa língua oficial. Etnocentrismo europeu ou evolução? Você escolhe.
Referências:

CAMPO GRANDE NEWS. Bolsonaro diz que OAB só defende bandido e reserva indígena é um crime. 22/04/2015. Disponível em: <https://www.campograndenews.com.br/politica/bolsonaro-diz-que-oab-so-defende-bandido-e-reserva-indigena-e-um-crime>. Acesso em: 16/09/2019.
COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. Porto Alegre: Editora Globo; São Paulo: Editora da USP, 1976. 
DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
GILMAR. [Ilustração de indígena.] In: ARAÚJO, Pedro Zambarda de. Sangue de índio. Diário do Centro do Mundo. 27/04/2019. Disponível em: <https://www.diariodocentrodomundo.com.br/sangue-de-indio-por-gilmar/>. Acesso em: 15/10/2019.
PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. O criticismo kantiano e o positivismo In: PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990.
PRAZERES, Leandro. Estudo da Fiocruz mostra que 56% dos ianomâmis têm mercúrio acima do limite. O Globo, 03/08/2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/estudo-da-fiocruz-mostra-que-56-dos-ianomamis-tem-mercurio-acima-do-limite-23852233>. Acesso em: 16/09/2019.

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