Os limites do utilitarismo à luz da sustentabilidade ambiental

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Camila Alves d’Avila.

Desenvolvido principalmente pelos filósofos britânicos Jeremy Bentham e John Stuart Mill entre os séculos XVIII e XIX, o utilitarismo é uma corrente epistemológica que constrói suas premissas a partir do princípio da utilidade – ou princípio da maior felicidade –, o qual, de acordo com Bentham (1979, p. 3), “estabelece a maior felicidade de todos aqueles cujo interesse está em jogo, como sendo a justa e adequada finalidade da ação humana e até a única finalidade justa, adequada e universalmente desejável [...]”. Assim, a dor e o prazer dos seres humanos balizam suas ações, sendo uma ação moral aquela que aumenta a felicidade do maior número possível de indivíduos. 

A partir dessa máxima, a argumentação de que o utilitarismo é marcadamente antropocêntrico poderia se fazer plausível. Contudo, Bentham (1979) se antecipou à essa crítica ao afirmar que não há motivo para que animais não-humanos fossem tratados de maneira cruel, visto que eles são capazes de sofrer, apesar de não serem capazes de falar ou raciocinar. Peter Singer (2004) exemplificou a questão: seria um contrassenso dizer que não é do interesse de uma pedra ser chutada na estrada – ela não possui interesses, uma vez que não sofre –, ao passo que um camundongo tem interesse em não ser chutado, já que sofrerá se isso acontecer. 

Entretanto, é imprescindível considerar a ética e a moralidade das ações para além dos seres sencientes, aqueles que têm a capacidade de sentir. Mesmo que seja difícil de conceber o sofrimento de uma árvore caso ela fosse derrubada, por exemplo, continuam existindo motivos para que não seja realizado desmatamento em massa: muitos organismos não-sencientes são recursos naturais – como é o caso das matas – e, por isso, são fundamentais para a vida dos seres sencientes, incluindo a dos humanos (SINGER, 2002a). Freitas e Zambam (2015, p. 41) reforçam a concepção dessa ética mais ‘biocêntrica’: 

Essa proteção é uma obrigação ética, para fins de continuidade da vida humana no planeta, porque a garantia da existência humana e sua perpetuação passam pela proteção da integralidade da biosfera e do reconhecimento de sua dignidade. Logo, a intervenção humana no espaço natural deve ser equilibrada, sobretudo observando o todo simbiótico. (FREITAS; ZAMBAM, 2015, p. 41)

Fonte: Vilter (2019).
O utilitarismo, além de não prever toda a magnitude de organismos não-sencientes, valida desastres naturais em prol do atingimento de uma maior eficiência para um maior número de pessoas. Por exemplo, estaria justificada a destruição de grande parte das riquezas minerais do nosso ecossistema, se isso representasse avanços tecnológicos e aumento do prazer para a maioria da população (FREITAS; ZAMBAM, 2015). 

Talvez, essa despreocupação com a sustentabilidade ambiental possa ser fruto do pouco conhecimento acerca da temática e sua relevância, na época em que o utilitarismo foi concebido. Ainda assim, atualmente,  

mesmo diante dos esforços internacionais, nacionais e locais, no sentido de demonstrar a importância da construção de uma sociedade ambientalmente sustentável, que utiliza os recursos naturais de forma ética e responsável, ainda há importes nações e considerável número de sociedades empresarias e de seres humanos, que continuam se relacionando com a natureza de forma utilitarista (CARMO, 2018, p. 1).

Hoje, infelizmente, seja a partir da aplicação de agricultura, da construção de moradias ou de infraestrutura pública, etc., nem mesmo áreas de preservação permanente são respeitadas. Numa balança utilitarista, o fator socioeconômico acaba pesando além do fator ambiental. Evidentemente, a nossa subsistência enquanto sociedade civil é extremamente importante e, muitas vezes, a exploração dos recursos naturais se faz necessária. Apesar disso, é fundamental que exista um limite bem esclarecido: até onde vai essa necessidade de exploração? Há décadas o homem usa e abusa da natureza sem considerar as consequências a longo prazo dessa sua ambição (CARMO, 2018).

Fonte: Santos (2019).
Mesmo que Mill (2007) reforce esmiuçadamente que o padrão utilitarista visa promover a felicidade coletiva de todos os envolvidos e não somente a do próprio agente, essa não deixa de soar como uma epistemologia que, de certa forma, se faz egoísta ao não considerar propriamente as gerações e o ecossistema futuros. Certamente, “a base filosófica para uma ética da ecologia profunda é difícil de ser sustentada”, conforme aponta Singer (2002b, p. 136). De qualquer modo, o argumento em favor da preservação ambiental não é enfraquecido, apenas reconhecido como desafiador e complexo. De maneira nenhuma ele deve deixar de ser incorporado aos pensamentos científicos (SINGER, 2002b).

Além disso, é essencial ressaltar que, ainda que os recursos naturais sejam muitas vezes subjugados como um empecilho para o desenvolvimento socioeconômico (CARMO, 2018), não é preciso que seja realizada uma escolha entre este e a preservação ambiental. O conceito de desenvolvimento sustentável, que surge como um meio de solucionar tal embate, é definido, de acordo com a Organização das Nações Unidas, como “aquele que atende às necessidades das gerações presentes, sem comprometer as necessidades das gerações futuras” (ONU, 1987, p. 24). Esse ideal de desenvolvimento busca promover não só a sustentabilidade econômica, social e ambiental, mas também considera outras dimensões, como a cultural e a espacial (SACHS, 2009 apud ARAUJO; MORAES, 2016).

Frente a uma pauta tão valiosa e urgente como a sustentabilidade ambiental e, principalmente, como o desenvolvimento sustentável no seu todo, é muito importante destacar os limites do utilitarismo que, até hoje, se faz presente nas relações e nos constructos da nossa sociedade civil.  O ser humano precisa compreender mais a fundo o seu verdadeiro lugar em meio ao nosso ecossistema diverso e complexo, assumindo suas responsabilidades éticas e morais, melhorando sua postura enquanto integrante do mesmo. 

Referências: 

ARAUJO, J. MORAES, G. Utilitarismo e desenvolvimento sustentável: eles podem se encontrar? Revista de Economia Mackenzie, v. 11, n. 3, p. 187-208, 2016.
BENTHAM, J. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
CARMO, Wagner. O Utilitarismo da natureza. 2018. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/o-utilitarismo-da-natureza>. Acesso em 23/11/2019.
FREITAS, F. ZAMBAM, N. O utilitarismo e o princípio responsabilidade para o desenvolvimento sustentável. Revista Direito Ambiental e Sociedade, v. 5, n. 2, p. 28-53, 2015.
MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Report of the World Commission on Environment and Development: our common future. New York: ONU, 1987.
SACHS, I. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
SANTOS, Arionauro da Silva. [Imagem de charge sobre desmatamento da floresta.] Pinterest, 2019. Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/ 535998793146043718>. Acesso em: 22/10/2019.
SINGER, P. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002a.
______. Libertação animal. Porto Alegre: Lugano, 2004.
______. Vida ética: os melhores ensaios do mais polêmico filósofo da atualidade. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002b.
VILTER, Nick. [Imagem de aperto de mãos entre homem e árvore.] In: Respect Nature. Descubra ideias sobre vida sustentável, Pinterest, 2019. Disponível em: https://www.pinterest.ru/pin/659425570413374798/?nic=1a. Acesso em 22/10/2019.

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