Fenomenologia e o filme Cisne Negro

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Mariana Laporta Barbosa.

Na aula passada, vimos que Auguste Comte, assim como outros filósofos positivistas, limitavam o seu campo de análise ao experimental, afirmando que o conhecimento científico era a única forma verdadeira de conhecimento. Para essa corrente, as ciências partiam dos dados empíricos para desenvolverem seus postulados. É na metade do século XIX que o matemático e filósofo alemão, Edmund Husserl, começou a questionar esse método científico, pois para ele, a instabilidade dos dados da empiria não fornecia o rigor necessário para sua investigação filosófica. 

Segundo Schutz (1979, p. 55), a fenomenologia “recusa-se a aceitar de modo acrítico percepções sensoriais, fatos biológicos, sociais e ambientais como dados, como pontos de partida inquestionáveis para a investigação filosófica”. Assim, buscando constituir a filosofia como uma ciência de rigor, “de início, não nos é permitido admitir conhecimento algum como conhecimento” (HUSSERL, 2008, p. 21), ou seja, seria necessário encontrar o início real de todo o pensamento filosófico.

Visando alcançar sua tão desejada exatidão filosófica, Husserl (2008) diz que é necessária uma clarificação do sentido íntimo das coisas. Para isso, o autor trabalha com o conceito de redução fenomenológica, que seria a suspensão momentânea da atitude natural com a qual nós nos relacionamos com as coisas do mundo. Resumidamente, precisaríamos deixar de lado todos os preconceitos, teorias e definições que são utilizadas para dar sentido as coisas. Schutz (1979) define isso como colocar “entre parênteses” os julgamentos do senso comum sobre o mundo exterior e dos resultados científicos, os quais implantaram uma preconcepção básica em todos nós, com a ideia de que tudo só pode ser explicado cientificamente.

Após o uso dessa epoché, o resultado seria a consciência transcendental, “nada mais nada menos que a totalidade concreta da corrente de nossa experiência, contendo todas as nossas percepções, reflexões, enfim, as nossas cogitações” (SCHUTZ, 1979, p. 59). Dessa forma, conseguimos acessar a corrente de consciência em si, que é mutável, pois envolve a situação, em um tempo e espaço. Aqui, temos uma noção de intencionalidade, pois para Husserl, toda a consciência é relacionada a algo, ou seja, existe uma relação entre o sujeito e o objeto.

O autor também tece as definições de noese, como os atos de compreensão de algo, e de noema, como aquilo de que se tem consciência. Em outras palavras, a noética seria ter a consciência de algo, ou seja, é o aspecto subjetivo da vivência, abarcando o perceber, o lembrar e o imaginar, enquanto a noemática corresponde aos aspectos objetivos dessa vivência. Músicas, apresentações teatrais, pinturas e esculturas são alguns exemplos de formas noéticas, pois há a percepção, retenção e lembrança nos indivíduos que entram em contato com essas formas de arte. Nesse ponto, a fenomenologia se aproxima da psicologia, e o psicólogo americano William James compartilha dos pressupostos da teoria em seus estudos.

Para exemplificar o estudo da psicologia fenomenológica, podemos utilizar o filme Cisne Negro, cujo enredo gira em torno de uma companhia de balé, que está montando a peça dramática “O Lago dos Cisnes” para sua temporada e procura uma nova bailarina principal. No filme, a jovem Nina (interpretada por Natalie Portman) ganha a chance de assumir esse posto, mas para isso precisa lidar com a rigidez do diretor artístico Thomas (interpretado por Vincent Cassel), além das exigências de sua mãe e da concorrência, tanto interna, por meio do seu pensamento perfeccionista, quanto externa, na figura das outras bailarinas.

Fonte: Fox (2010).
A trama mostra o esforço de Nina para poder interpretar dois personagens da apresentação: o inocente e frágil cisne branco e o misterioso e sensual cisne negro. Apesar de ser a própria personificação do cisne branco, ela não é capaz de incorporar as características do outro e é para esse papel que aparece Lilly (interpretada por Mila Kunis), uma bailarina que se encaixa perfeitamente, com sua espontaneidade e sensualidade. A partir da chegada dessa nova personagem na trama, Nina desencadeia uma paranoia de concorrência, transpondo uma imensa pressão sob si, fruto de uma projeção: Lilly era tudo que ela queria ser. Dessa forma, Nina perde o senso da realidade e passa a assumir personalidades distintas, que são frutos de alucinações.

De início, podemos perceber o balé, em geral, como um exercício fenomenológico, bastando para isso observar os momentos em que as artistas colocam os seus mundos “em parênteses”. Um exemplo dado por Gonzaga (2018) é o esforço para o desempenho de um determinado papel, como ocorre no filme. Para que Nina vivesse ambos os cisnes, ela teria que colocar sua vida “entre parênteses” e se comportar diferentemente da sua personalidade, para assim conseguir acessar o mundo sombrio do cisne negro durante a interpretação. Além disso, a obra em si, quando escrita, foi a criação de um mundo de personagens e espaços diferenciados, feito “entre parênteses” do nosso mundo, mas que é construído para que a ficção possa parecer tão real (GONZAGA, 2018).

Sem querer dar mais spoilers ao leitor, me limito a dizer que o filme passa a maior parte do tempo na linha tênue de realidade e ilusão de Nina, contendo cenas fortes de seus transtornos mentais, que irão se intensificar com a aproximação da data de estreia da peça. Schutz (2002) nos traz alguns elementos para compreender essa crise da personagem, entre o real e o irreal, sendo que para exemplificar as teorias de William James, o autor faz alusão ao problema de realidade apresentado na obra de Dom Quixote, de Cervantes.

A diferenciação do real, para aquilo que é sonho, passa pela nossa escolha do modo de pensar, ou seja, quando o objeto não for refutado, ele é uma realidade que acreditamos e pressupomos como absoluta, logo, somos nós mesmos que escolhemos o que queremos aderir ou ignorar (SCHUTZ, 2002). Dessa forma, seria possível afirmarmos que existem infinitas ordens de realidade e que os objetos que pensamos devem sempre se referir a pelo menos um destes “subuniversos”. No filme Cisne Negro, assim como em Dom Quixote, essas múltiplas realidades são a narrativa central, havendo um choque constante entre o mundo dos sentidos, experimentado pelo senso comum, e o mundo da pura loucura.

No subuniverso que Nina se insere, o espaço, o tempo e a causalidade são modificados, o que explica os momentos retratados no filme, onde a bailarina acredita ter vivido certas experiências que, na realidade preponderante da vida quotidiana, não se comprovam. Schutz (2002) afirma que isso ocorre porque os fatos do mundo da loucura não são verificáveis por meios comuns de percepção sensorial, e isto gera conflitos entre os esquemas díspares de interpretação. Logo, se a “crença na identidade substancial da experiência intersubjetiva do mundo se rompe, então a própria possibilidade de estabelecer comunicação com os nossos semelhantes é destruída” (SCHUTZ, 2002, p. 758). E é nesse ponto que devemos escolher: transformar a identidade por completo ou perceber as experiências como meras ilusões. 

A mente deve escolher em qual realidade ficar e é aqui que as obras apresentadas tomam caminhos distintos. Dom Quixote, após um episódio de visão de Dulcinéia, entra em dúvida quanto a sua identidade e acaba por destruir o seu subuniverso da loucura, voltando à realidade da vida quotidiana. Já para quem assistiu ao filme Cisne Negro até o final, fica claro que a personagem não consegue alcançar essa conscientização, e o seu trágico fim é um reflexo do abismo insuperável entre os dois subuniversos.

Referências: 

GONZAGA F., B. M. Cinema e fenomenologia: sentidos e sentimentos. In: XIII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada - ABRALIC, 2013, Campina Grande - PB. Anais ABRALIC Internacional, 2013. v. 1. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/anais/arquivos/2013_1434328 968.pdf>. Acesso em 09 de out. 2019.
FOX Searchlight Pictures. [Imagem de divulgação do filme cisne negro.] 2010. In: BARBOSA, Neusa. Cisne negro revela sonhos e pesadelos de uma bailarina. DomTotal, São Paulo, 05/02/2011. Disponível em: <bailarinahttps://domtotal.com/noticia/296574/2011/02/cisne-negro-revela- sonhos-e-pesadelos-de-uma-bailarina/>. Acesso em: 22 out. 2019.
HUSSERL, E, A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008.
SCHUTZ, A. Fundamentos da fenomenologia. In: WAGNER, H. R. Fenomenologia e relações sociais. Textos escolhidos e Alfred Shutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
SCHUTZ, A. Don Quixote e o problema da realidade. In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 

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