O processo de economicismo e o utilitarismo na ciência social

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de mestrado Gabriel E. Queiroz de Melo.

Este estudo propõe analisar os rumos utilitaristas adotados pela moderna ciência social a partir de sua relação com o chamado processo de economicismo das ciências, e apresentar uma alternativa não utilitarista para a retomada da função crítica e questionadora que se demanda dela.

O utilitarismo, como defendido por Mill (2007), é o chamado “grande princípio da felicidade”, que, na vida prática humana, estimula as ações certas, aquelas que trazem a felicidade, e censura as erradas, aquelas que trazem a dor. Na perspectiva de Bentham (1996), o utilitarismo fundamenta-se na tese de que o homem é um animal egoísta, independente e calculista. Já no campo da ciência, o comportamento utilitarista pode ser traduzido como aquele que ignora todas as consequências e não se importa com as implicações da prática científica, preocupa-se com a produção, trata a ciência como uma esteira de fabricação, que deve gerar sempre maior desenvolvimento tecnológico ou maiores benefícios econômicos. É o comportamento que não permite questionamentos ou reflexões acerca da própria atividade científica, acredita que eles não valem a pena, uma vez que não produzem utilidade prática alguma.  

Apesar de estender sua influência pelas mais diversas áreas do saber, o utilitarismo está intimamente associado com a ciência econômica, e elenco três razões para isso: (i) por conta da própria natureza dessa ciência, que sempre aponta para o princípio da utilidade marginal; (ii) por causa dos seus modelos, que, ao buscar a simplificação, se utilizam da figura do homo economicus: uma ideia de homem racional, maximizador do seu bem-estar e individualista; e (iii) pelas próprias origens do utilitarismo, visto que Mill e Bentham fundamentam muitos dos seus princípios a partir de obras dos chamados “pais da ciência econômica”, como os escritos de Adam Smith, “uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações”, de 1776, e “a teoria dos sentimentos morais”, de 1759. Assim, mesmo que esse não seja o intento de seus formuladores e estudiosos, a ciência econômica sempre corre o risco de tornar-se utilitarista.

Caillé (2015) alerta que a moderna ciência social, a partir dos anos 1980, passa por um danoso e indevido processo de economicismo, que consiste na aplicação errônea dos princípios das ciências econômicas a todas as outras ciências sociais. Neste processo, a ciência social abandona a perspectiva do homo politicus, homo religosus, ou de outras concepções de homem, para limitar-se ao homo economicus. A partir desta movimentação, iniciada alguns anos antes pelo trabalho de Gary Becker (1965), o homem é visto em todos os campos de sua existência, e não mais apenas no campo da produção ou das trocas comerciais, como indivíduo racional, calculista e egoísta.
Fonte: Gonzo Banker (2017).
Caillé (2001) afirma que as demais ciências sociais vivem atualmente sua fase utilitarista por cometer o mesmo erro no qual incorreu a ciência econômica antes: não respeitar suas próprias particularidades e tentar copiar o modelo de teorização das ciências exatas. Assim, a ciência social limita-se a uma ciência do previsível, que intenciona apenas prever e compreender a ação social, na tentativa de extrair o máximo de benefício dela.

A partir da compreensão deste movimento de economicismo das ciências sociais é necessário relembrar os alertas de Marcel Mauss (2003) de que uma revolução intelectual, mantida por muito tempo, avança até o mundo real, assim, esse não tem outro resultado senão o convencimento do próprio homem de que ele não é nada mais que o homo economicus, o que leva a generalização das culturas para melhor encaixe nos sistemas mercantis, o sentimento de que o mercado é a única forma de organização social funcional e que o fim último do ser humano é a maximização do próprio capital financeiro.

Porém a visão unicamente utilitarista é tão nociva para a ciência social que, mesmo em seu lugar favorito de repouso, a ciência econômica, pelo menos desde os trabalhos de Herbert Alexander Simon (1979; 1991; 2004), já são questionadas as noções de racionalidade e cálculos instrumentais individualistas. Esforços para o desenvolvimento de alternativas ao utilitarismo nas ciências sociais não são poucos, como o MAUSS (Movimento anti-Utilitarista nas Ciências Sociais), cuja sigla homenageia o autor de “ensaio sobre a dádiva” de 1925, Marcel Mauss, principal referência intelectual do movimento. Caillé (2015) elenca uma série de correntes de pensamentos na ciência social que são alternativas ao utilitarismo, como a empirista, a hermenêutica, a etnometodológica ou a comparativista, porém nenhuma delas têm força para suplantar o utilitarismo, ao passo que não têm a mesma eficiência para ligar propostas teóricas a propostas normativas para o comportamento humano.

Apresenta-se, então, um novo desafio para o cientista social moderno, o de desenvolver uma perspectiva não utilitarista, porém eficiente e que ainda possa refletir resultados na realidade, para seu campo de atuação. Esta nova perspectiva deve afastar-se dos modelos já estabelecidos, que oferecem uma resposta sistemática para todas as esferas da vida humana; deve respeitar a individualidade e subjetividade de diferentes agrupamentos sociais, levando em consideração todas as dimensões pertinentes de homus, e não só o economicus como insiste a moderna ciência social produtivista.

Cabe ao cientista social, neste momento, retomar suas ambições grandiosas ao reatar laços com a filosofia, a moral e a ética. Não se trata de desprezar as contribuições que as ciências exatas podem oferecer, por meio de diálogos multidisciplinares, uma vez que seus sistemas teóricos tem comprovados benefícios. Mas trata-se de saber delimitar bem as áreas, para conseguir o que os filósofos clássicos gregos chamariam de “florescimento do homem por completo” (eudaimonia) em todas as suas dimensões. As ciências exatas, e até mesmo a econômica (que, não esqueçamos, é também social), contribuem para este florescimento a partir da multiplicação dos bens de consumo, da criação de melhores condições materiais e de avanços tecnológicos. Já a ciência social pode também contribuir ao passo que respeite sua natureza, retorne para suas origens, que é a de sempre questionar e criticar o humano e o social. 

Referências:

BECKER, Gary S. A. Theory of the allocation of time. The Economic Journal, v. 75, n. 299, p. 493-517, sep. 1965. 
BENTHAM, J. The collected works of Jeremy Bentham: an introduction to the principles of morals and legislation. Oxford: Clarendon Press, 1996.
CAILLÉ, Alain. O princípio de razão, o utilitarismo e o antiutilitarismo. Sociedade e Estado, v. 16, n. 1-2, p. 26-56, dez. 2001. 
CAILLÉ, A. Por una sociologia antiutilitarista. Sociológica, vol. 86, set-dec 2015, p. 9-30.
GONZO BANKER. [Imagem com cartoon de Bill Clinton.] 2017. Disponível em: <https://gonzobanker.com/2017/03/bank-contact-centers-its-the-people-stupid/its-the-economy-stupid-pin-clinton/>. Acesso em: 07/10/2019.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.
SIMON, H. A. et al. Models of a man: essays in memory of Herbert A. Simon. Cambridge: The MIT Press, 2004.
SIMON, H. A. Rational decision making in business organizations. The American Economic Review, v. 69, n. 4, p. 493-513, sep. 1979.
SIMON, H. A. Bounded rationality and organizational learning. Organization Science, v. 2, n. 1, p. 125-134, feb. 1991. 

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