“A lei vale para todos” diz o direito. Vale ela para tudo? Uma análise da (im)possibilidade de leis absolutas na esfera da ação e mudança social

Pequeno ensaio produzido pela aluna de doutorado Amanda Maciel Carneiro.

As leis, quando aplicadas ao direito, têm características básicas de serem gerais (quanto a sua abrangência, pois valem a todos) e abstratas (prescrevendo um dever ser) (MELLO, 2011). No dicionário, de latim lex, legis, podem ser, dentre outros conceitos, “preceito ou regra estabelecida por direito”, “norma, obrigação”, “relação constante entre fenômenos da natureza, ou entre as fases de um mesmo fenômeno” (PRIBERAM, 2019). Compreendendo-se lei pela acepção acima, suscita-se a controvérsia de que alguns defendem o cabimento de leis de forma extensível ao ambiente social, como Comte (1976) e Durkeim (2007), e outros, seu débil enquadramento e espúria adequação, haja vista a característica dinâmica das relações sociais, ad infinitum [como Boudon (1983)]. Seria, assim, possível que leis previssem comportamentos sociais?

A discussão aqui apresentada toma por base texto de Boudon (1983), contrariando a possibilidade de existência de leis absolutas para prever ações e mudanças sociais, exceto quando relacionadas a fatos passados, de forma parcial e local, sob pena de se encontrarem muito mais exceções do que casos respondendo à lei. Neste estudo, argumenta as infinitas possibilidades futuras, condições internas e externas relacionadas a cada caso específico, sob as quais afirma que os estudos sociológicos devem ter foco no indivíduo, na especificidade e qualificação, e aplicação em processos particulares. Aqui, é interessante o quanto destoa de Durkeim (2007), que afirma o estudo sociológico a partir dos fenômenos sociais considerados como algo coletivo e distinto das ações individuais, e de Comte (1976), que se foca na visão naturalística de ciência e na existência de leis de “relações constantes que existem entre os fenômenos observados” (COMTE, 1976, p. 17). Cumpre fazer justiça, aqui, de que o próprio Comte (1976) afirma não ser possível uma sistematização dos fenômenos individuais, daí a defender o estudo do social de forma coletiva.

O foco na ação concreta e no indivíduo também pode ser percebido na doutrina utilitarista, defendida pelos renomados Bentham (1979) e Mill (2007). A busca de felicidade e a ausência de dor defendidas pelo utilitarismo baseiam sua moral nos sujeitos e nas situações (mesmo quando buscando a felicidade do maior número de indivíduos possível) e, embora tratem também da dimensão moral, criam grande divergência do imperativo categórico kantiano, posto que apresentam características mais hipotéticas e condicionadas. Nas palavras de Mill (2007), “o que há para decidir se vale à pena adquirir um prazer em particular ao custo de uma dor específica, exceto os sentimentos e julgamentos daqueles que o experimentam?” (MILL, 2007, p. 27). A visão, assim, no utilitarismo, é sempre particular, nunca universal – por mais que busque a maior felicidade coletiva; sempre voltada à moralidade da conduta em um balanço positivo entre felicidade e dor, a sacrifícios que só valem a pena quando balizados por essa busca (MILL, 2007). 

No que tange à impossibilidade de previsão do futuro com base no passado, entendimento condizente com o de Boudon pode ser visto na metáfora de Lisboa (2013) acerca do metrô das ações da vida. Nesta leve crônica, o autor afirma que “quando você olha para a frente, vê inúmeras linhas, conexões e estações para escolher. Mas, quando olha para trás, você vê apenas trilhos em linha reta, levando diretamente, sem conexões, para o lugar em que está.”. Aí, talvez, a metáfora-chave da questão proposta por Boudon: as leis, quando aplicadas às ciências sociais, servem, sim, para descrever o passado, categorizá-lo, reconhecer (dentro do possível) conexões; isso porque o vemos do futuro, já cientes das consequências até agora apresentadas, em condição favorável de quem já sabe as respostas. Isso não significa que daí possamos prever o futuro. 

O estudo de Boudon (1983), assim, se posiciona ao trazer visões de Nisbet e Lenski e, perante isso, defende a impossível relação entre mudança social e leis universais, entendendo as leis possíveis nos casos de um grupo específico de condições e em uma interação particular em determinado contexto, explicando singulares e passados processos. Isso porque reconhece que eventos externos ou internos possam afetar a “estabilidade” das leis convencionadas quando relacionados a ações e mudanças sociais, trazendo às vezes os efeitos previstos, às vezes os seus opostos, e às vezes consequências inclusive impensadas, defendendo sua incapacidade de concepção de forma generalizada, já que é das leis não poderem ser falsas e verdadeiras ao mesmo tempo. No raciocínio de Boudon (1983), mesmo quando presentes características similares, nem por isso as ações e interações terão uma resposta previsível.

Considerando o conceito inicialmente apresentado, sendo lei uma relação constante, realmente é difícil imaginar, por exemplo, uma ruptura ou crise seguindo um padrão predeterminado. O que o padrão definido assimila são os casos até então conhecidos – que não falam a respeito do futuro, e sim do passado, e dentro de um contexto de sujeitos-objetos-interações-tempo-espaço.

A lei, por si, fala mais do dever ser do que é. No plano do direito, do mundo ideal, do que gostaríamos que fosse; no da ciência, voltada à natureza, do já conhecido, do que já foi (e, no máximo, do que é), dentro daquilo que nos é possível conhecer (até agora). Existem comportamentos esperados e tendências – alguns dirão –, mas nem por isso eles são assertivamente capazes de ditar o futuro. A natureza dinâmica das relações sociais, a construção da realidade social, a desconhecida potencialidade e complexidade humana são fatores que fogem à previsão de ações e interações futuras.

Não se discorda, aqui, da influência de fenômenos sociais coletivos distintos de ações individuais, posto que se reconhece a influência do coletivo na ação, nem de toda a contribuição dos pensadores anteriores. O que se reconhece neste caldo é a imprevisão impositiva de ações, de aplicação determinística e universal, com leis sociais invariáveis, às ações e interações sociais. Caberia, então, o conceito de lei para as ações e mudanças sociais? Uma relação constante, um futuro previsível, ditado pelo passado? Isso não suporia um mundo estático, involutivo, sem livre arbítrio? Retomando o conceito de leis, relembramos: elas são mais o que deve-ser do que o que é. E o que será, só o futuro dirá.

Referências:

BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. In: BENTHAM, J. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 3-18.  
BOUDON, R. Individual action and social change: a no-theory of social change. Hobhouse Memorial Lecture. The British Journal of Sociology, vol. 34, n. 1, p. 1-18, mar. 1983.
COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. Porto Alegre: Editora Globo; São Paulo: Editora da USP, 1976.
DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
LISBOA, Victor. As escolhas são cheias de vida. Papo de homem. 06/10/2013. Disponível em: <https://papodehomem.com.br/as-escolhas-sao-feitas-de-vida/>. Acesso em: 23 set. 2019.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. O conceito de normas gerais no direito constitucional brasileiro. Interesse Público, Belo Horizonte,  ano 13,  n. 66,  mar./abr. 2011. Disponível em:<https://www.editoraforum.com.br/wp-content/uploads/2014/07/artigo-bandeira-mello.pdf> . Acesso em: 20/09/2019.
MILL, S. O que é o utilitarismo? In: MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.
PRIBERAM. Dicionário Priberam da língua portuguesa. 2008-2013. Disponível em: <https://dicionario.priberam.org/lei> . Acesso em: 20/09/2019.

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