A ciência positiva e seus desmandos sociais

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de mestrado Daniel de Souza Silva Júnior.

No século XIV, o italiano Giovanni di Dondi, estudando a matemática, a mecânica e a astronomia, construiu a “macchina dell'orologio”, como descreve Mumford (1967). Dondi confinou nesta máquina o calendário medieval com suas festividades católicas, a concepção de tempo como um momento e as observações lunisolares registradas nas tabelas afonsinas, promovendo uma “revolução silenciosa”, nas palavras de Gimpel (1977). O relógio de Dondi mecanizou o tempo, destruindo a noção de eternidade (kairós), transformando-o em algo quantificável e controlável. Desde então, o tempo se tornou cronométrico (cronos) e, com isso, Mumford (1962, p. 14) afirmou que “o relógio, não a máquina a vapor, é a chave para a era das indústrias”.

Depois de seis séculos da “revolução silenciosa”, todo o nosso aparato social está amarrado a este deus cronômetro. Indústrias, impérios e tecnologias erguem-se e sucumbem sob o domínio do tempo mecanizado. Doenças da alma e do corpo enfraqueceram o homo faber, com angústias e medos que a modernidade potencializou. Não estamos mais sob o domínio do divino e nem da razão, diria Augusto Comte, segundo Padovani e Castagnola (1990), mas do progresso da humanidade. Findou-se o tempo teológico-metafísico, estamos na era positiva.

Segundo Comte (1976),

o único caráter essencial do novo espírito filosófico que ainda não é indicado pela palavra positiva consiste na sua tendência a substituir por toda parte o absoluto pelo relativo. Mas este grande atributo, há um tempo científico e lógico, é por tal forma inerente à natureza fundamental dos conhecimentos reais, que sua consideração geral não tardará a ligar-se intimamente aos diversos aspectos que esta fórmula já combina, quando o moderno regime intelectual, até aqui parcial e empírico, passar comumente ao estado sistemático. (COMTE, 1976, p. 50)

A marcha positiva desde então tem levado a sociedade moderna a tempos incertos, destino tal que Adouls Huxley demonstrou em seu “admirável mundo novo”, George Orwell descreveu em “1984” e Karel Capek falou-nos em “a fábrica de robôs”. A sociedade controlada e administrável é uma concepção que a indústria tecnológica não se acanhou em absorver. A marcha positiva tende a limitar os valores morais a uma dimensão filosófica ou religiosa, dedicando-se apenas ao estudo de um curto genérico de sociedade: o fato social de que falou Durkeim (2007).

A máquina a vapor, de James Watt, a eletricidade, de Thomas Edson e Tesla, a linha de produção, de Henry Ford, e a revolução digital de nossos dias são desdobramentos daquela quantificação de Dondi. Frederick Taylor deu eficiência ao sistema e aos movimentos dos trabalhos industriais, tomando por referência um cronômetro. Maslow esquematizou os desejos e categorizou as necessidades humanas buscando a eficiência. William Deming, por sua vez, deu método à qualidade produtiva, em nome da mesma eficiência. E na busca desta eficiência, o espírito positivista se fortaleceu, foi se imiscuindo nas milhares de almas modernas.

Fonte: Hotson (2008).
Mas e quanto à alma? E quanto ao empobrecimento das línguas? A mudez do espírito humano? Steiner (1988) lembra que foram estas obscuridades que fizeram os cenários de Franz Kafka parecerem penumbras, separados de qualquer valor moral, um pesaroso controle científico, uma secura mórbida que descoloriu todo o campo real e cercou o indivíduo com aprisionamentos. Ironicamente, Comte (1976) chamou de humanidade esta racionalização do real. A humanidade é mais real que os indivíduos, diria Comte, apud Padovani e Castagnola (1990).

Era este mesmo espírito positivista que em parte ordenava o discurso do Fuhrer, o controle estatal de Stalin e os acenos fascistas de Mussolini. Todos buscavam a unificação do Estado para que a sociedade alcançasse algum tipo de progresso. Ou devemos ignorar que a Alemanha nazista ergueu-se também sob as forças de uma indústria tecnocrata conduzidas por engenheiros, técnicos e administradores? Ou mesmo o Estado comunista de Stalin e Mao-Dzedong, que usou a racionalidade para justificar suas incursões? 

Esqueça o passado, avance para o futuro. Está escrito na bandeira brasileira “ordem e progresso”, nada mais positivo do que esta insígnia. Os desmandos sociais da ciência positivista são definitivamente perturbadores, assim. Durkheim (2007) bem que tentou salvar esta ideologia descabida, desenvolvendo um método científico para averiguar os fenômenos sociais, o qual ainda hoje serve de base para os estudos científicos. No entanto, como bem descreveu Latour (1994), os fenômenos híbridos seguem proliferando descontroladamente. E atribula as almas modernas e pós modernas. 

Comte (1976) se orgulha em dizer que o espírito positivista está longe do misticismo e do empirismo e, evidentemente, do lado oposto à teologia. Seu avanço racional, olhando firmemente o humano, suplanta o transcendente, o divino, e resgata o homem. A humanidade agora deixou o seu período infantil e adentrou na razão amadurecida, um mundo de experiências sensoriais, conflitos de forças, progresso histórico, quantificação social e dados empíricos, conforme lembram Padovani e Castagnola (1990). 

De fato, o relógio de Dondi fez do tempo um peso insuportável para a sociedade. Os milésimos de segundos dos dispositivos digitais podem determinar a vida e a morte das gentes. O tempo mecanizado que passou para forma de bits e qubits abriu um portal de dores da alma e do corpo que assolam a todo homem. James Watts, Comte, Durkeim, Taylor, Ford, Hitler, Stalin, e tantos outros, foram reforçando este espírito do progresso como num fio de Ariadne, para usar a alegoria de Latour (1994), que em nosso pescoço pesa como correntes.

Nesta cena aterrorizante, o positivismo apenas recrudesceu os ferrolhos da corrente, nos dando a falta de tempo, estresse, depressões e doenças psicossomáticas de todos os tipos. Inúmeras guerras, violências e distúrbios na esteira do progresso científico, expondo-nos às moléstias biológicas e do espírito, descrentes de Deus e das pessoas e, sobretudo, dependentes de efemeridades e daquilo que é superficial. Como já disse, verdadeiros desmandos sociais da ciência positiva, o preço do progresso científico. 

Referências bibliográficas:

COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. Porto Alegre: Editora Globo; São Paulo: Editora da USP, 1976. 
DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HOTSON, Howard. [Imagem de réplica do relógio de Dondi.] In: HOTSON, Howard. Reconstruction (1961-3) of the astrarium of Giovanni Dondi (1348-1364). May 2018. Disponível em: https://www.cabinet.ox.ac.uk/giovanni-dondis-astrarium-1364. Acesso em: 10/10/2019.  
GIMPEL, Jean. A revolução industrial da idade média. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
MUNFORD, Lewis. Technics and civilization. Londres: Lowe and Brydone, 1967.
PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. O criticismo kantiano e o positivismo In: PADOVANI, U. CASTAGNOLA, L. História da filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990.
STEINER, George. Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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