O que a fenomenologia de Husserl pode nos ensinar sobre as diferenças culturais

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Julia De Marchi.

Estima-se que 1,57 bilhão de pessoas, o equivalente a 23% da população mundial, identifiquem-se como muçulmanos. Em 53 países do mundo a maioria religiosa é muçulmana. Segundo a Associação Nacional de Entidades Islâmicas, um milhão e meio de muçulmanos vivem no Brasil (MARCOS HERMANSON, 2019). Apesar disso, vemos diariamente notícias com relatos de intolerância religiosa e cultural no Brasil. 

Em entrevista ao G1 (LIMA, ARCHANJO e PEREZ, 2018), Fatima Cheaitou, estudante muçulmana que vive no Brasil, conta que já foi alvo de preconceito e recebeu insultos relacionados ao terrorismo. "Às vezes, eu atravessava a rua no Brasil e faziam barulho de bomba”, afirma. Ela acredita que a desinformação e a distorção dos fatos constroem uma imagem negativa das mulheres islâmicas no Ocidente.

Manal Ounkhir, também muçulmana, relata que já ouviu comentários preconceituosos no Brasil, assim como olhares discriminatórios (NELSON URT, 2019). Ela é autora de um projeto de extensão, com estudo e discussões em torno dos estereótipos formados a partir de princípios religiosos islâmicos, e busca estudar mais sobre os estereótipos que são criados em torno da religião islâmica, ajudando as pessoas a compreenderem essa questão. 

Para a antropóloga Francirosy Campos, em entrevista ao portal de notícias G1, casos como esses são reflexo de uma visão etnocêntrica. A sociedade ocidental comprou a ideia de que as roupas das muçulmanas representam subjugação. “Vivemos, na verdade, realidades muito diferentes, e temos muita dificuldade de compreender essas diferenças sociais, de contextos religiosos. Para nós, tudo o que é nosso é melhor, e tudo que não diz respeito a nós é ruim, opressor e primitivo”. (LIMA, ARCHANJO e PEREZ, 2018).

Fonte: Cox & Forkum (2005).
Contudo, como podemos superar essas diferenças culturais e acabarmos com o preconceito?  Husserl, através da teoria fenomenológica, nos mostra um caminho. Ele apresenta a fenomenologia como um método de investigação que tem o propósito de compreender o fenômeno, que nada mais é do que o “descobrimento” ou “desvelamento” das coisas pela nossa consciência. Ou seja, é o estudo do objeto pela forma como ele se apresenta, é seu aparecimento na consciência. 

Porém, a consciência não existe por si só, mas sim na intencionalidade, no movimento de olhar para as coisas. Esse princípio afirma, portanto, que a consciência é consciência de alguma coisa. E como o objeto só pode ser apreendido pela consciência, um depende do outro.  Assim, sendo a consciência inerente a cada ser, pessoas diferentes tenderão a pensar de forma diferente, ainda que tenham como base um mesmo objeto. Schutz evidencia isso ao afirmar que

a origem e a fonte de toda realidade, seja de um ponto de vista absoluto, seja prático, sempre está, portanto, em nós mesmos. Consequentemente, existe um número considerável, provavelmente mesmo infinito, de diferentes ordens da realidade, cada uma das quais com seu estilo peculiar de existência e separada das outras. (SCHUTZ, 2002, p. 751).

Portanto, para que possamos verdadeiramente ver e entender uma cultura diferente da nossa, precisamos intencionalmente olhar para ela, despidos de crenças e preconceitos existentes em nós. Consequentemente, o foco será a experiência, possibilitando que o fenômeno observado fale por si mesmo. A essa prática Husserl chama de epoché, que pode ser traduzida como a ‘suspensão’ do juízo a respeito das coisas, ou ainda a suspensão das nossas atitudes naturais, a forma habitual pela qual olhamos o mundo. Essa atitude possibilitará ver a cultura como ela realmente é (ou melhor, como ela se revela), de maneira direta, sem deixar que conceitos prévios influenciem na experimentação do fenômeno. 

Ou seja, as diferenças culturais se apresentam como barreiras simplesmente pela nossa dificuldade de encarar realidades diferentes, achar a essência das coisas, sem os nossos pré-conceitos. Afinal, como podemos crer que sabemos a respeito do outro se não o conhecemos? Tudo o que podemos saber a respeito do mundo depende desses fenômenos e só existem na mente. Diante disso, Husserl (2008) traz uma posposta para que olhemos para o mundo pela primeira vez, como se nunca o tivéssemos visto. Aliás, será que já o vimos?

Referências:

COX & FORKUM. [Imagem com charge the real suicide bomb] 20/07/2005. Disponível em: http://www.coxandforkum.com/archives/2005_07.html. Acesso em: 30/10/2019.
HUSSERL, E. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2008.
LIMA, Isabella; ARCHANJO, Nathália; PEREZ, Nathalia. (São Paulo) G1. 'Youtubers' muçulmanas dão voz à religião e rompem com estereótipos e preconceito. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/educacao/noticia/2018/10/27/youtubers-muculmanas-dao-voz-a-religiao-e-rompem-com-estereotipos-e-preconceito.ghtml>. Acesso em: 08 out. 2019.
MARCOS HERMANSON (São Paulo). Brasil de Fato. A intolerância religiosa na visão de muçulmanos que vivem na periferia de São Paulo. 2019. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2019/01/21/a-intolerancia-religiosa-na-visao-de-muculmanos-que-vivem-na-periferia-de-sao-paulo/>. Acesso em: 08 out. 2019.
NELSON URT (Mato Grosso do Sul). Jornal Diário Corumbaense. 241 anos: estudante usa véu como identidade e combate estereótipos. 2019. Disponível em: <https://diarionline.com.br/?s=noticia&id=112510>. Acesso em: 08 out. 2019.
SCHUTZ, A. Fundamentos da fenomenologia. In: WAGNER, H. R Fenomenologia e relações sociais. Textos escolhidos de Alfred Schutz. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
______. Don Quixote e o problema da realidade In: LIMA, L. C. Teoria da literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

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