Abuso de poder sob a ótica da moral kantiana

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Mariana Laporta Barbosa.

Em julho de 2014, o norte-americano Eric Garner morreu em Nova York após uma abordagem violenta da polícia, que tentou imobilizá-lo enquanto efetuava a prisão. Garner já havia sido preso por vender cigarros avulsos e sem pagar impostos, ação ilegal no país, e foi abordado por suspeita do mesmo crime. Enquanto era imobilizado, ele repetiu a frase “I can’t breathe” (não consigo respirar) onze vezes; palavras que, após a sua morte, se tornaram o grito de guerra de diversos protestos. Segundo a autópsia, Garner faleceu por causa de asfixia.

No Brasil, em fevereiro de 2019, um jovem de 19 anos sofreu uma parada respiratória e faleceu, após uma tentativa violenta de imobilização similar, mas por parte de um segurança privado de um supermercado no Rio de Janeiro. Segundo nota do supermercado, o jovem tentou pegar a arma de um vigilante e, por isso, foi necessária a ação. Clientes tentaram alertar que o rapaz estava desacordado, mas não foram ouvidos.

Em abril do mesmo ano, outro jovem foi morto, mas dessa vez na cidade de Florianópolis, no quintal da sua casa, após a polícia confundir a arma de pressão com a qual ele brincava, com uma arma de fogo. No mesmo mês, outro caso chamou a atenção, mas novamente no Rio de Janeiro: 80 tiros foram disparados em um carro, onde estavam Evaldo Rosa, que morreu na hora, seu filho de apenas sete anos, sua sobrinha, sua esposa e seu sogro. Os disparos vieram de militares do exército, que alegaram ter confundido o carro com o de assaltantes.

O que os quatro casos possuem em comum? Além da ação violenta da polícia, todos envolviam vítimas negras, que se viram em uma situação de vulnerabilidade. Nesse ensaio, buscarei analisar os casos, tendo em vista os argumentos do filósofo Kant e sua perspectiva de ética. Segundo Padovani e Castagnola (1990), Emanuel Kant é fundador da corrente filosófica chamada de criticismo, que representa uma síntese entre o racionalismo cartesiano e o empirismo de Bancon. Sendo um dos maiores filósofos do iluminismo, destaca-se pelas obras crítica da razão pura (1781), crítica da razão prática (1788) e crítica do juízo (1790).

Fonte: Beck (2019).
Para tratarmos de temas como ética, valores e moral, primeiramente precisamos entender o conceito de conhecimento para Kant. Padovani e Castagnola (1990) afirmam que a justificação da ciência foi o início da problematização do filósofo. Dessa sua primeira pesquisa, Kant afirma que o conhecimento não é inato e sim um produto dos sentidos, ou seja, depende da consciência normal de todos os homens (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990). Isso gerou o que se denomina como segunda revolução copernicana, onde o sujeito é posto no centro do mundo. E é esse sujeito que está refém de princípios universais e sensações particulares.

Ainda sobre o conhecimento, Kant (2015) diz que há duas formas de juízos, os analíticos e os sintéticos. Os primeiros são uma forma de conhecimento segura, lógica, sendo universais e necessários, enquanto os segundos estão ligados às sensações e percepções não seguras. Uma forma de juntar os dois juízos anteriormente citados é o juízo sintético a priori, que estão contidos como princípios em todas as ciências teóricas da razão (KANT, 2015).

Diferentemente de Aristóteles, Kant acreditava que a felicidade era passageira e, por isso, deve-se dividir o estudo em dois imperativos, os hipotéticos e os categóricos. Os hipotéticos são os movidos pela paixão e entusiasmo, enquanto os categóricos dizem respeito a ações movidas pela razão, que precisamos pensar, e é aqui que a ética kantiana se encontra.

A ética de Kant encontra-se na razão pura e, por isso, seria como um dever universal, igualitário para todos os seres humanos. Para ponderar se uma atitude é ética ou não, você poderia imaginar a sua atitude sendo tomada por toda a sociedade. Seria uma coisa boa ou não? O agir deve ser segundo um princípio que você queira que se torne universal, ou seja, faça ao próximo o que queira que façam contigo (KANT, 2015). Tendo isso em vista, um policial que trata alguém com violência, aceita ser tratado da mesma forma.

Outro conceito fundamental do autor é o da moralidade, que seria dada a priori, de um modo absoluto, universal e necessário, por um hiperativo categórico (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990). A moral é imposta pela sociedade (em forma de lei, cultura ou dogmas), imune aos elementos sensíveis. Como é universal, a mesma moralidade de um é a moralidade de outro. Sendo você um ser humano (que para Kant seria alguém dotado de racionalidade), a moralidade é a mesma. Sendo assim, seria irracional pensar em uma hierarquia social da moral. Nos casos apresentados neste ensaio, a moralidade foi violada por meio do abuso de poder das autoridades, perante um grupo da população classificado por sua cor de pele.

A ética kantiana nos diz que todos devemos ser tratados igualmente perante a moral, logo, uma abordagem para uma pessoa branca que cometesse um crime e uma abordagem para um negro que cometesse o mesmo crime, deveriam ser idênticas. Infelizmente, essa não é a realidade que vivemos, já que das 4.222 pessoas mortas devido a intervenções policiais civis e militares entre 2015 e 2016, 76,2% das vítimas eram negras (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2017, p. 7). Essa violação não é apenas da dignidade humana, mas também da liberdade do próximo.

Outra questão que Padovani e Castagnola (1990) apresentam é a relação de Kant com os conceitos de Deus, alma e da vida futura, que se apresentam na dialética transcendental. O filósofo afirma que a preocupação deveria ser com os fenômenos, com os objetos que se apresentam, não com os noumenons, que são conceitos que não podem ser analisados. Mas apesar de Kant afirmar que não se pode conhecer intuitivamente Deus, ele recorre aos postulados da razão prática (Deus, alma e liberdade) para afirmar que a virtude deve ser reconhecida, premiada (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990). 

Nesse sentido, ao matar uma pessoa, o policial, além de ir contra o imperativo categórico, também ofende aos princípios judaico-cristãos dos dez mandamentos, onde se encontra o “não matar”. Para Kant, uma ação assim seria julgada por um Deus juiz; não no mundo empírico, mas no mundo dos noumenos, onde a punição do vício seria dada.

Independente da obra kantiana que se use para analisar os casos, é importante não esquecer a fala do autor acerca da necessidade de tratar as pessoas como fins em si mesmas, nunca como meio. Isso porque as pessoas merecem um tratamento justo e não devem ser usadas. O filósofo diz que somos livres apenas ao agir de acordo com a nossa melhor natureza e somos escravos ao agir sob comando das emoções próprias ou alheias. 

As imagens, os relatos e as testemunhas estão entre nós para a verificação da ação policial, mas a impunidade da atualidade não nos traz uma sensação moral nos julgamentos deste mundo. Quem sabe em um outro? Só aguardando para saber.

Referências:

BECK, A. [Imagem da tirinha 3129/19 do personagem Armandinho.] Disponível em: <https://www.facebook.com/tirasarmandinho/photos/a.4883616 71209144/2689209634457659/?type=3&theater>. Acesso em: 30/09/19.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública 2017. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br /wp-content/uploads/2019/01/ANUARIO_11_2017.pdf>. Acesso em: 10 de set. de 2019.
KANT, I. Crítica da razão pura. 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. 
PADOVANI, U.; CASTAGNOLA, L. O criticismo kantiano e o positivismo In: PADOVANI, U.; CASTAGNOLA, L. História da filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990.

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