O criticismo de Kant a luz da música clássica

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Julia De Marchi.

Se Descartes, Bacon e Kant se pusessem a ouvir a Quinta Sinfonia de Bethoven, poderiam eles chegar a um consenso sobre a qualidade da obra? Provavelmente não. Apesar de a composição ter os mesmos acordes, notas e melodias, nem todos a perceberiam e a entenderiam da mesma maneira. 

Usando a música como uma analogia às principais correntes de pensamento da ciência moderna, poderíamos dizer que Descartes, um dos formuladores do racionalismo, analisaria a música segundo a razão. Afinal, os nossos sentidos podem nos confundir e, portanto, essa não é a melhor opção para formulação do conhecimento. Complementaria sua afirmação, alegando que a razão, pura e simplesmente, é suficiente para a produção do conhecimento e da verdade e que “havendo apenas uma verdade de cada coisa, todo aquele que a encontrar sabe a seu respeito tanto quanto se pode saber” (DESCARTES, 1979, p. 40). 

Assim, havendo uma única verdade, aplicando-se as regras para a composição de uma melodia e havendo ritmo e simetria nesta, chegar-se-ia à verdade indubitável da coisa, a exatidão da composição e de sua qualidade. Portanto, para os racionalistas, o foco do conhecimento está no sujeito e em sua racionalidade, ou seja, sua capacidade de aplicação das regras aritméticas para averiguação do objeto. 

Contudo, Bacon, precursor do experimentalismo, discordaria desse pressuposto. Ele analisaria a música com base nos seus sentidos, ou melhor, na experimentação. E afirmaria que esta, sim, é a única maneira pela qual o conhecimento é possível. Entretanto, os sentidos, puro e simplesmente, não devem ser o guia do conhecimento “(...) as próprias impressões dos sentidos são viciosas. Os sentidos não só desencaminham como levam ao erro.” (BACON, 1979, p. 38). Ele afirma que a melhor maneira é, portanto, a experiência, desde que esta esteja fundamentada na experimentação metodológica (BACON, 1979). 

Ou seja, para o conhecimento seria necessária a aplicação rigorosa do método que lhe pudesse dar as respostas. Em se tratando da obra de Bethoven, não haveria uma receita universal (aritmética) que pudesse ser aplicada para lhe atestar a sua qualidade; os sentidos seriam a porta de entrada, devendo a obra ser exposta a testes rigorosos para verificação e avaliação. Bacon traz um contraponto ao discurso de Descartes, pondo o foco no objeto, neste caso, na música e não no ouvinte. 

Fonte: Mota (2018).
Nesse momento, Kant interromperia a discussão afirmando que nem Descartes nem Bacon estão certos, ou melhor, que ambos estão certos. Afinal, segundo seu postulado, tanto “razão” quanto “sentidos’ são necessários para o conhecimento. Um é complementar ao outro. Para ele, não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência; pois de que outro modo poderia a nossa faculdade de conhecimento ser despertada para o exercício, não fosse por meio de objetos que estimulam nossos sentidos e, em parte, produzem representações por si mesmos, em parte colocam em movimento a atividade de nosso entendimento, levando-a a compará-las, conectá-las ou separá-las e, assim, transformar a matéria bruta das impressões sensíveis em um conhecimento de objetos chamados experiência? No que diz respeito ao tempo, portanto, nenhum conhecimento antecede em nós à experiência, e com esta começam todos. (KANT, 2015)

Ou seja, ele afirma que apesar do conhecimento ter início na experiência, nos sentidos, e, portanto, estes serem condição necessária à sua formação, não se fazem suficientes. Assim, Kant supera essa dicotomia existente e afirma que o conhecimento só é possível através da união entre os sentidos e a razão. Para isso, o sujeito volta a ser o meio pelo qual o conhecimento é possível, retoma o seu papel central, é “colocado no centro do mundo cognitivo não o objeto – como era na metafísica tradicional – e sim o sujeito. De sorte que não é o sujeito que espelha o objeto, mas este depende daquele.” (KANT, 2015, p. 363). 

Quer dizer, a verdade está no objeto, mas pertence ao sujeito, é através dele que os dados são captados e absorvidos pelo intelecto, para que estes sejam processados. O objeto é um atributo do sujeito e não do mundo, não o vemos como a coisa em si, mas como as nossas faculdades nos permitem vê-lo. 

Contudo, nem todos são capazes de compreender perfeitamente os objetos, sendo necessário um sujeito transcendental, que possua a capacidade de experiência e de união da sensibilidade e do entendimento. Ou seja, o criticismo não acredita que seja possível obter a verdade sem submeter os dados, obtidos através dos sentidos, à crítica da razão. 

Ainda ao som de Bethoven, Kant diria, então, que seria necessário absorver a música através de sua sensibilidade, para então submetê-la à razão. E que apenas após ambas as etapas cumpridas poderíamos chegar a uma conclusão. Esta, contudo, não é definitiva e universal, afinal, o processo do conhecimento só é possível através da interação entre o sujeito e o mundo objetivo.  

A verdade seria então subjetiva? Para Kant, jamais conheceremos a realidade pura, esta é inalcançável. Tudo o que conhecemos é aquilo que nos é apresentado, organizado e então entendido pelo nosso pensamento. As ideias tidas como universais passam pela cultura, ou seja, pelo espaço e tempo. “A este propósito tenta ele mostrar que o tempo e o espaço não derivam nem das sensações, nem das coisas, mas são formas constitutivas a priori do nosso espírito, isto é, são formas transcendentais (transcendem a sensibilidade, mas não o sujeito).” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990, p. 364). 

Desta composição de Bethoven podem-se ter várias representações, em tempos e lugares diferentes. “Intervém, então, a categoria da substância, para formar das várias representações (...) aquela unidade superior, que constitui precisamente um objeto, uma substância.” (PADOVANI; CASTAGNOLA, 1990, p. 365). Assim, pode-se entender que há uma substância comum, derivada de uma cadeia causal, que irá compor a substância dos objetos, sendo esta superior aos seus desdobramentos. Havendo, contudo, a possibilidade e a necessidade de se derivar essa substância segundo a sensibilidade e a crítica da consciência, considerando-se o tempo e o espaço. 

Referências: 

BACON, F. Novum organum In: BACON, F. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 
DESCARTES, R. Discurso do método. In:  DESCARTES, R. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
KANT, I. Crítica da razão pura. 4. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. 
MOTA, Uraniano. [Imagem de notas músicas sobre a cabeça.] In: MOTA, Uraniano. Um instante de música em nossas vidas. 23/11/2018. Disponível em:  https://www.google.com/url?sa=i&source=images&cd=&ved=2ahUKEwid2s_Q6O rkAhVBA9QKHR0rCzYQjRx6BAgBEAQ&url=https%3A%2F%2Fwww.brasil247.com%2Fblog%2Fum-instante-de-musica-em-nossas-vidas&psig=AOvVaw1NPoj5PX tImfHLrEL-TQwY&ust=156946115529446. Acesso em: 24/9/2019.
PADOVANI, U.; CASTAGNOLA, L. O criticismo kantiano e o positivismo In: PADOVANI, U.; CASTAGNOLA, L. História da filosofia. São Paulo: Melhoramentos, 1990.

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