O bem comum e a lógica do utilitarismo

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Julia De Marchi.

Um trem, seguindo seu caminho, vai atingir cinco pessoas que trabalham sobre a linha. Você tem a possibilidade de evitar a tragédia acionando uma alavanca que desviará o trem para a outra linha, na qual há uma pessoa trabalhando, e que será atingida por ele. Você mudaria o trajeto, salvando cinco pessoas e matando uma?

Esse dilema moral é bastante conhecido e pode ser analisado com base em diversas teorias filosóficas, uma delas é o utilitarismo de Bentham (1979) e Mill (2007). Com base nos postulados de Bentham (1979), a ação correta seria aquela que acarretasse em uma maior felicidade a um maior número de pessoas possível. Nesse caso, a decisão mais adequada seria a mudança de trajeto do trem. Segundo ele, a utilidade

é a propriedade existente em qualquer coisa, propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade, ou a impedir que aconteça dano, dor, o mal ou a infelicidade para a parte cujo interesse está em pauta. Se esta parte for a comunidade em geral, tratar-se-á da felicidade da comunidade, ao passo que, em se tratando de um indivíduo particular, estará em jogo a felicidade do mencionado indivíduo. (BENTHAN, 1979, p. 4).

Ou seja, Bentham (1979) apresenta uma noção de bem comum baseada em uma lógica quantitativa. Trazendo essa lógica para os dias atuais, podemos analisar as políticas públicas a luz do utilitarismo. Um gestor, ao elaborar políticas públicas para o seu governo, tem diversas possibilidades de ação. Para escolher qual é a melhor alternativa, ele pode calcular a utilidade, ou o valor da felicidade que cada uma gerará, e escolher aquela que atenda ao maior número de pessoas. 

Como exemplo, um prefeito de uma determinada cidade conta com um orçamento bastante limitado e possui verba para a construção de apenas uma creche na municipalidade. Há três bairros que necessitam com urgência de uma creche. Como tomar a decisão sobre qual bairro ele deve realizar a obra? Seguindo a premissa do utilitarismo, de forma bastante simples, ele provavelmente escolherá aquele com maior número de famílias e crianças precisando de vaga. 

Mill (2007), por outro lado, fundamentou os seus pensamentos não apenas na maximização da felicidade de forma quantitativa, mas também qualitativa. “Enquanto na avaliação de todas as outras coisas a qualidade é levada em consideração tanto quanto a utilidade, seria absurdo supor que a avaliação dos prazeres devesse depender da quantidade apenas.” (MILL, 2007, p. 23). Ele distingue, ainda, os prazeres em maiores ou menores; e diz que se deve verificar qual ação gerará uma maior felicidade em termos de qualidade, ainda que esta gere um descontentamento para uma quantidade maior de pessoas. “É bastante compatível com o princípio da utilidade reconhecer o fato, que alguns tipos de prazer sejam mais desejáveis e mais valiosos que outros.” (MILL, 2007, p. 23).

Ao analisarmos a elaboração de políticas públicas mais complexas, como para populações em situação de rua ou a construção de penitenciárias, as decisões ficam mais difíceis. Se em um determinado município há a necessidade de construção de uma nova penitenciária, pois as existentes já não suprem as demandas recebidas, como escolher em qual bairro será construída? 

O município de São José, em Santa Catarina, tem enfrentado esse dilema há cinco anos. Os moradores do bairro Potecas, que está prestes a receber as obras do novo cadeião da região, alegam que a comunidade “não merece conviver com todos os percalços de um presídio, como aumento do consumo de drogas, tentativas de fugas de presos, ambiente de muita periculosidade, poluição sonora e sirene de viaturas, que terão circulação 24 horas na região, a serviço do sistema carcerário” (AMARAL, 2018). 
Fonte: NSC Total (2018).
Contudo, seguindo a lógica de Mill (2007), não se deve analisar quantas pessoas ficarão descontes com a implantação dessa penitenciária, e sim, a qualidade da felicidade e os benefícios que essa política trará. Ele salienta, ainda, que o bem-estar geral deve ser prioridade em detrimento do bem-estar individual. Deve-se analisar as consequências das ações e será considerada certa aquela que dê lugar ao coletivo. Ele considera que,

quando se trata de uma questão de saber qual dos dois prazeres vale mais a pena possuir, ou qual dos dois modos de existência é o mais agradável aos sentidos, sem considerar seus atributos e suas consequências morais, o julgamento daqueles que são mais qualificados por conhecer ambos, ou, se divergirem, da maioria dentre eles, deve ser admitido como final. (MILL, 2007, p. 26)

Ou seja, considerando os postulados acima expostos, o papel fundamental de um gestor público é colocar-se como um intermediador de ambos os lados e analisar as consequências de cada decisão a ser tomada. Dessa forma, poderá fazer um juízo de qual é a melhor política pública, de tal maneira que possa atingir o bem público sob todos os aspectos. Muitas decisões são arriscadas e impopulares, mas é a missão do legislador e do gestor buscar a maximização da felicidade e do bem comum, ainda que nem sempre de forma abrangente.

Referências:

BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. In: BENTHAM, J. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 
AMARAL, E. Moradores de Potecas, em São José, não querem cadeião. 2018. Disponível em: <https://www.nsctotal.com.br/colunistas/edsoul/moradores-de-potecas-em-sao-jose-nao-querem-cadeiao>. Acesso em: 24 set. 2019.
MILL, S. O que é o utilitarismo? In: MILL, S. Utilitarismo. São Paulo: Escala, 2007.
NSC TOTAL. [Imagem da comunidade de Potecas fazendo protesto pelas ruas do bairro.] In: EDSOUL. Moradores de Potecas, em São José, não querem cadeião. 21/11/2018. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/colunistas/ edsoul/moradores-de-potecas-em-sao-jose-nao-querem-cadeiao. Acesso em: 12/10/2019.

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