Fake news: uma reflexão a partir de Demo, Bacon e Dewey

Pequeno ensaio produzido pela acadêmica de mestrado Bárbara Ferrari Gonzaga.

A eleição presidencial que vivemos no último ano fez emergir um tema que hoje, quase 1 ano após o seu fim, ainda continua em alta e sendo bastante utilizado: as fake news (notícias falsas). Durante a eleição, inúmeros foram os casos de uso das fake news – pela grande maioria dos candidatos ou por seus apoiadores –, para defender o candidato de sua preferência e/ou criticar os seus adversários. A prática virou quase uma marca da eleição de 2018 e ainda hoje se perpetua, atingindo, também, outras áreas, como saúde, meio ambiente, ciência, etc.

Demo (1985) define ciência através da exclusão, isto é, aquilo que não é ciência, colocando-a num contínuo entre senso comum e ideologia. Traz, ainda, os critérios de distinção entre eles: entre a ciência e o senso comum “seria o conhecimento acrítico, imediatista, que acredita na superficialidade das coisas” (DEMO, 1985, p. 14) e entre ciência e ideologia “será o caráter justificador” deste último, ou seja, o fato de buscarem, muitas vezes na ciência, uma justificativa para defenderem a sua visão. Além disso, ele coloca que a ideologia “inclui sempre a deturpação dos fatos em favor da posição a ser defendida, e chega mesmo à falsificação, quando atinge o nível da própria mentira” (DEMO, 1985, p. 14-15). Esta última afirmação nos remete muito à questão das fake news e de como, na maioria das vezes, elas são utilizadas em favor de uma ideologia, como pôde ser visto nas últimas eleições em ambos os lados.

Também vale apontar a relação entre fake news e senso comum: ao acreditar em uma notícia veiculada na mídia sem uma visão crítica, vemos o acontecimento apenas de maneira superficial, tomando isso como verdade absoluta, sem comprovar a fonte da informação e se existem provas que a confirmem.

Ao realizar a leitura do texto de Francis Bacon (1979, p. 65), Novo Organum, no trecho onde destaca que “os doutos, homens indolentes e crédulos, acolheram para estabelecer ou confirmar a sua filosofia certos rumores, quase mesmo sussurros ou brisas de experiência, a que, apesar de tudo, atribuíram valor de legítimo testemunho” e comparar a afirmação com a realidade atual do país, é inevitável não relacioná-la à grande disseminação das fake news, em que o indivíduo se utiliza de argumentos e notícias que comprovam a sua teoria/sua opinião, sem se preocupar com a veracidade dos fatos e de, até mesmo, quando possível, comprovar por si mesmo a realidade.

Veja (2018)
As notícias falsas na área da saúde e da ciência são um belo exemplo da realidade e atualidade da citação anterior. Algumas pessoas fizeram suas próprias “experiências”, talvez sem nenhum método científico sistemático, apenas com intuito de provar suas teorias, e outras as tomaram como verdade absoluta, fazendo com que anos de pesquisa e experimentação científica real e sistemática passassem a ser menos considerados do que essas notícias com base científica duvidosa. É um problema grave, que tem levado cada vez mais pessoas ao médico (com enfermidades piores do que tinham inicialmente) e que tem causado um grande aumento no número de doenças (antes consideradas erradicadas) devido à falta de vacinação.

Alguns exemplos das fake news mais difundidas, mapeadas pelo Ministério da Saúde (2018), são: água de coco cura o câncer, bananas contaminadas com vírus HIV, exame de mamografia causa câncer de tireoide, vacina contra sarampo causa autismo, dentre outras (CONASEMS, 2019). Podemos pensar: como alguém poderia acreditar em qualquer uma dessas notícias? Será que não percebem o quão absurdas elas são? Aqui se faz importante considerar dois pontos: o primeiro é que uma parcela da população não tem acesso à informação de qualidade e/ou não tem acesso à educação, estudo e incentivo ao pensamento crítico, o que aumenta a possibilidade de essas pessoas estarem expostas a acreditarem nessas fake news e a disseminá-las. O segundo é que, devido ao fato exposto anteriormente, as pessoas podem considerar a ciência como uma área distante da sua realidade, uma espécie de “bolha inalcançável” onde apenas os “cientistas oficiais” fazem ciência, afastando esta e a produção científica cada vez mais da população em geral.

Esses dois pontos se ligam à obra la opinión pública y sus problemas, de John Dewey (2004). Ao considerar que o conhecimento tem papel fundamental para a associação e a comunicação, o autor também diz que, no entanto, este tem circulado de maneira lenta e desigual na sociedade, apontando alguns dos motivos para tanto. Entre eles, aponta o fato de que “a ciência nasceu em meio ao estabelecimento dos especialistas que concentram o saber para si, através de instrumentos e linguagem própria” (DEWEY, 2004, apud DIAS, 2010, p. 110).

Assim, o conhecimento não seria obrigatoriamente produzido para a população em geral, que teria acesso a apenas alguns âmbitos desse saber, mas não todos, ficando parte dele, restrito aos especialistas. O autor defende, dessa maneira, a importância da socialização do conhecimento, especialmente aquele que pode influenciar a opinião e a ação pública, que não devem ser pautadas em “impressões vagas, em concepções do senso comum, em emoções fáceis” (DEWEY, 2004, apud DIAS, 2010, p. 110). Isto posto, o conhecimento deveria capacitar a sociedade para debater, questionar e ter um olhar crítico sobre os problemas sociais, e não ficar confinado e ser dominado pelos peritos da ciência, pois a democracia só se consolidará de verdade quanto os indivíduos tiverem domínio sobre a sua opinião, que depende da comunicação e da circulação do conhecimento (DIAS, 2010).

Referências:

BACON, Francis. Novum organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza; Nova Atlântida. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
CONSELHO NACIONAL DE SECRETARIAS MUNICIPAIS DE SAÚDE (CONASEMS). Fake news agravam surtos de doenças no país. 2019. Disponível em: <https://www.conasems.org.br/fake-news-agravam-surtos-de-doencas-no-pais/>. Acesso em: 17 ago. 2019.
DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1985.
DIAS, Vanessa Tavares. Resenha de la opinión publica y sus problemas, de John Dewey. Revista Estudos Políticos, Niterói, n. 1, 2010/02, p. 105-111. Disponível em: <http://revistaestudospoliticos.com/wp-content/uploads/2010/12/1p105-111.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2019.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Fake news. 2018. Disponível em: <www.saude.gov.br/fakenews>. Acesso em: ago. 2019.
VEJA. [Imagem de marionete.] In: VEJA. Fakenews: o golpe das notícias falsas. Revista Veja, São Paulo, ano 52, n. 3, ed. 2565, jan. 2018, capa. Disponível em: https://veja.abril.com.br/edicoes-veja/2565/. Acesso em: 02/9/2019.

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